sábado, 16 de novembro de 2013

Sobre a marginalização das HUMANIDADES no ensino secundário



Caros amigos,


Em face de uma notícia que recebi anteontem, fiquei escandalizada. A notícia é esta:
«Sabe-se que a FALTA das HUMANIDADES no Ensino é 1 das causas da crise actual. Mas a Presidente da Assoc Professores Português acha q os alunos que vão para Ciências não precisam de estudar Literatura. Achará ela que Literatura não é Português? Ou entenderá, como muitos dirigentes políticos, que quanto mais iliteracia houver na população, mais fácil é des-governá-la? Quanto mais inculto é o povo, melhor, não é?
Maria Alzira Seixo»

Não se pode ser mais retrógrado do que esta Presidente da Associação dos Professores de Português, pois os programas tem vindo a diminuir de qualidade, com cada vez menor recurso a textos literários, pois se entendia que o texto literário é um «género» especial de texto, como o anúncio, o slogan, a entrevista, a carta, o requerimento e outros. Deixou-se de entender o carácter modelar desse texto, a sua aptidão para cativar os alunos para a leitura e para a boa escrita.
Ora destas qualidades todos precisam, alunos de letras e de ciências: lembremos apenas os ilustríssimos exemplos de escritores «de ciências»: de Júlio Dinis, a Lobo Antunes (aos vários médicos irmãos), a Fernando Namora, António Gedeão, etc., etc..

Ora, pela 1ª vez, com o trabalho solicitado a óptimas professoras do ensino secundário e superior, o Ministério está a estabelecer as METAS CURRICULARES que repõem as coisas nos eixos, e reflectem na prática as boas normas que coincidem com a sensatez da maioria.
Peço-vos assim , por favor, que façam cair uma chuva de protestos,  e pareceres para a DGE. É mesmo necessário, porque já sabemos quias os pareceres que vamos receber da Associação de Professores de Português...
É preciso apoiar esta nova orientação do Ministério, a bem dos nossos filhos e netos.
Proponho que envio um texto como est e

Repudio o parecer emitido pela Presidente da Associação dos Professores de Português que entende que  os alunos que vão para Ciências não precisam de estudar Literatura.
Os estudantes de Ciências necessitam de Literatura e de cultura, como toda a gente!
Assinem e enviem para a Dir. Geral competente  do Ministério Educação

Anexo um breve texto tirado do site do ME sobre este assunto, e onde poderão seleccionar a Dir. Deral ou a Secretaria de estado a que quiserem enviar o vosso protesto. Eu vou mandar para o gabinete do Secretário de estado do Ensino Básico e Secundário.

Não fiquem passivos! Lembrem-se dos vossos filhos e netos, e da cultura deste país que está dominada pelo futebol. Pouco pão… mas muito circo.


 

Maria Vitalina Leal de Matos

Professores, chegou a hora!


Vale a pena ler este artigo, sim, e refletir sobre o que se tem andado a fazer e a pensar fazer sobre os professores.



Chegou a hora!

Hoje alguém que conheço e por quem até tenho imensa consideração disse-me, por piada ou ignorância (não sei), que os professores não querem fazer a prova, porque têm medo de reprovar. Não lhe levei a mal o que disse, porque aquelas palavras, embora sejam, para mim, uma abominação, são aquilo que a generalidade da opinião pública pensa. Por isso, chegou a hora! Achei, durante muito tempo, que gastar o meu tempo a escrever fosse o que fosse sobre este assunto era "chover no molhado" e que não há nada que eu possa escrever que não tenha sido já escrito. Porém, por alguma razão, trazer a opinião pública para o lado dos professores parece impossível. Por muitos bons professores que os portugueses tenham tido no seu percurso, parecem guardar-nos um enorme rancor e guardam como se de uma pedra preciosa se tratasse, aqueles exemplos do(a) professor(a) que ia ler o jornal para a aula ou daquele(a) que chegava sempre atrasado ou daquele(a) outro(a) que batia nos alunos. Todos os outros professores (que, parto eu do princípio, constituíam uma maioria) parecem ter caído no esquecimento.

Temos um mérito inquestionável: somos a única classe profissional que, ao lutar contra as medidas do governo, consegue fazer da opinião pública, cúmplice desse governo. Azar o nosso - o governo também já descobriu isto e, como tal, "bate no ceguinho" até ele cair para o lado. Azar o nosso - escolhemos tirar o curso de "saco de pancada".

Tenho andado à procura das pessoas que, indignadíssimas, apregoavam aos sete ventos que a greve dos professores aos exames prejudicava os alunos. Não as encontrei! Queria perguntar-lhes que opinião tinham acerca dos milhares de escolas encerradas, dos quilómetros que isso implica a milhares de crianças, dos milhares de turmas sem professores de Apoio e sem professores de Educação Especial; queria perguntar-lhes o que achavam das turmas com mais de 30 alunos; queria perguntar-lhes sobre o financiamento escandaloso aos colégios privados; queria perguntar-lhes por que raio é que faço parte da única profissão que tem de fazer uma prova de acesso à profissão (atenção, eu sei que médicos, advogados, engenheiros, arquitectos e enfermeiros fazem uma prova, mas é de acesso a uma Ordem); queria perguntar-lhes o que acham da "Parque Escolar" e dos milhões de euros que ficaram empatados em obras inacabadas. Queria perguntar-lhes imensa coisa, mas essas pessoas, nesses assuntos, parecem ser acérrimos defensores das políticas do governo. Os enfermeiros, os médicos, os funcionários da CP, STCP, TAP, Metro e restantes empresas de transportes públicos, os estivadores, os controladores aéreos, entre muitas outras classes profissionais, têm todo o direito à greve (e têm, de facto e deixem-me ressalvá-lo, antes que seja mal interpretado). Os professores, não! Os professores conseguem ser aquela classe profissional que conseguem arrancar às pessoas aquela expressão sentida: "Bem feito..."!

Licenciei-me numa universidade pública, num curso validado e aprovado pelo mesmo Ministério que, agora, se lembrou que, afinal, eu posso não estar preparado para ser professor. Eu explico melhor: o currículo dos cursos superiores tem de passar pelo crivo do Ministério e a licenciatura (pré-Bolonha) supõe uma profissionalização que confere o acesso à profissão de professor (cf. Dec.-Lei XPTO de um dia qualquer do D.R.).

Chegou a hora de agir segundo os nossos princípios! Lá teremos o Miguel Sousa Tavares a insultar-nos de todas as formas (ele pode chamar "palhaço" ao Presidente da República, por isso, a nós, nem imagino o que raio vai ele dizer); lá teremos os colunistas dos jornais a bradar aos céus pela desobediência dos professores, lá teremos o "homem-cujo-nome-não-pronuncio" a reclamar a legitimidade da prova, fundada no "medo" dos professores contratados.

Chegou a hora!


Nuno Vital (aparentemente futuro-ex-professor)

domingo, 27 de outubro de 2013

País atrasado

 
 
 
 

Quando  olho para imagens como estas, concluo sempre que a distância que nos separa de um povo verdadeiramente desenvolvido é cada vez maior, pois essa distância em valores humanistas se medirá e num querer coletivo se afirmará, quer pela compaixão para com os mais vulneráveis quer por uma cultura de respeito pelo outro que, seguramente, pelo sangue e pelo sofrimento infligido jamais se concretizará.

Um país que isto ainda permite é um país de sadismo e crueldade, prisioneiro de um passado histórico bafiento e medonho que de falsas glórias se alimenta, estático, esclerosado, indiferente à mudança e ao progresso dos tempos.

Um país que isto ainda permite é um país onde a cultura de sangue permitida também é, miseravelmente escudado numa tradição histórica que pela sua crueldade banida foi mas que desumanamente continua a aceitar.

As tradições cruéis têm de ser banidas.
Banidas não por serem tradição mas por serem cruéis.

São contrárias ao progresso, à mudança, e fazem-se da dor que ao outro provocam e do seu sofrimento atroz.

País de cobardolas e de cínicos que bem cedo se iniciam nestas práticas desumanas de exploração e tortura dos mais vulneráveis!

País de merdosos que provam deste modo a existência de uma virilidade que provavelmente nunca terão!

País de gente ruim, perversa, baixa, muito baixa, que a estes tristes espetáculos acorre para exorcizar os seus medos, frustrações e recalcamentos.

País atrasado, sistematicamente adiado pela prática de uma cidadania cada vez mais ausente e de uma cultura cívica pouco ou mal interiorizada.

Que país!


Nazaré Oliveira



Já agora, visitem:

sábado, 19 de outubro de 2013

Mães heroínas



“Heroínas são as mães que acordam de madrugada, andam em transportes públicos durante horas e repetem tarefas sempre iguais até à exaustão para regressar de noite a casa e não parar. Cozinhar, passar a ferro, limpar e dormir poucas horas para recomeçar o ciclo na manhã seguinte.
Heroínas são as mães que contam cêntimos e fazem escolhas no supermercado para levar só o estritamente necessário, que não comem para que os filhos comam.
Heroínas são as mães com filhos doentes e que sofrem por os ver sofrer, mas que têm de manter a coragem.”
 
 
Bárbara Wong

A fome e os poderosos

(Clicar nos mapas p ampliar)



 

 


Dizem-me sempre que a fome no mundo sempre existirá. Mas eu não concordo. Não concordo porque sei que a fome no mundo, tal como as desigualdades sociais e o fosso cada vez maior entre os que têm tudo e até tudo esbanjam e os que nada têm ou que cada vez mais vão perdendo, depende seguramente dos poderosos, dos que através do poder do capital em tudo mandam e a todos condenam a uma sobrevivência cada vez mais penosa e humilhante.

Veja-se no mundo, no mundo e concretamente nos países de onde são originárias, os montantes e asfortunas multimilionárias que esta gente tem!

Incrível! Tanto dinheiro, tanto poder, tanta falta de vontade para erradicar a pobreza e a fome do mundo! Tanta falta de humanidade, de sensibilidade! Tanta hipocrisia e falsidade! Quanta injustiça!
De acordo com o Índice de Bilionários da Bloomberg, a fortuna somada dos sete mais ricos “imperadores do dinheiro do mundo” chega a 259,9 biliões de Dólares.
Sete!
Com 17% da fortuna destes 7 bilionários, ou seja, 44 biliões de dólares, resolver-se-ia o problema da fome espalhada pelo mundo. Duvidam?
A cada minuto que passa morre uma criança com menos de 5 anos por subnutrição, sem falar da falta de medicamentos básicos.
Que realidade tão cruel, esta, e que horror continuar a assistir a este massacre, a esta tragédia que nos dilacera a alma e o coração e nos faz chorar, gritar, de raiva, de impotência, mas sobretudo de indignação, por sabermos que outra vida seria possível para estes povos, estas crianças, estes inocentes, se vontade houvesse da parte de quem o capital possui mas dele não abdica a favor do outro e da sua condição humana.
14% da população mundial, um em cada seis habitantes, passa fome. Nada come.
Vivemos cada vez mais com os contrastes sociais violentíssimos, com as desigualdades, mas não tem que ser assim. Não tem.
As decisões políticas, a vontade política, os grandes centros de decisão política e financeira têm que agir (deviam agir) prontamente,  em todos os países e lugares da terra onde esta afronta aos mais elementares Direitos Humanos se vai agigantando, olhada como se de uma inevitabilidade se tratasse.
A fome e a pobreza não podem ser olhadas numa perspetiva economicista como se de um negócio ou contrato se trate e dele ganhos se tenham de obter ou lucros não se percam. Não. Tem de haver compaixão, solidariedade, exigência e transparência na Justiça, Relações Internacionais humanizadas e sérias e afastamento dos tiranos que persistem, seja onde for, como ladrões à solta e assassinos sem escrúpulos a mando de um capitalismo selvagem que da globalização se tem servido para nela se engrandecer.
Envergonha-me saber que há milhões e milhões de pessoas que morrem de fome e centenas de pessoas que espatifam numa noite, numa festa, milhares e milhares de dólares ou euros para futilidades, luxúria, mordomias e outras afrontas à pobreza.
Envergonha-me saber que tudo isto podia não acontecer mas acontece.
Sofro com tudo isto mas anima-me a esperança de uma mudança que surgirá e pela qual luto.
De uma mudança e de um novo paradigma para a Humanidade.









Nazaré Oliveira




Em Portugal há salários que aumentaram 65%





 
Conforme noticia hoje o Correio da Manhã, com o País a braços com uma crise, o Governo deu aumentos milionários às administrações de três empresas estatais, todas elas com prejuízos.
Os presidentes e os vogais da Carris e da CP viram os respetivos vencimentos aumentados em mais de 50%, enquanto no porto de Lisboa as atualizações rondaram os 30%. A situação foi denunciada ontem por Marques Mendes, ex-líder do PSD.
José Manuel Rodrigues, presidente da Carris, foi quem teve o maior aumento salarial, 65%, passando a receber 6.923,26 euros.
A mesma percentagem de subida teve os vogais da empresa de transportes públicos que ficaram a auferir 6.028,52 euros.
Em 2008, a Carris apresentou um prejuízo de 17 milhões de euros e em 2009 esse montante ascendeu aos 41 milhões de euros. Na CP, os prejuízos ascenderam em 2008 aos 190 milhões de euros, mas isso não impediu a atualização do vencimento de José Benoliel em 52%, para 7.225,60 euros.
Os vogais da administração viram os seus salários aumentados em quase 60% para 6719,81 euros.
A atualização ocorreu em Julho de 2009, tendo, no final desse ano, a CP apresentado prejuízos de 217 milhões de euros.
Na Administração do Porto de Lisboa, os aumentos foram menores, mas igualmente milionários: Natércia Cabral, a presidente, passou a ganhar 6.357,48 euros e os vogais 5438,52 euros, uma subida de 34% e de 29%, respetivamente.


Incrível este descalabro e esta roubalheira! Estes crimes sistematicamente cometidos e impunes, a maioria deles escondidos do povo e bem guardados nos bolsos dos que sorrindo nos exploram e humilham, desde governantes e deputados que isto permitem, passando pelo Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas, Presidente da República e outros que tais, que calando consentem ou com mão branda justiça julgam fazer.

Como é que o povo não se há-de revoltar!

Pena é que não se revolte a sério nas ruas, na Assembleia da República, tirando do poder e das empresas do Estado quem do poder se tem aproveitado para as suas clientelas partidárias e clubes de amigos.

Isto não pode continuar porque já é a grande criminalidade a controlar o nosso país, criminalidade que já não é só a dos colarinhos brancos mas também a dos que sedentos de poder tudo fazem para o ter, estejam onde estiverem, matando, roubando, violando as mais elementares regras do Estado de Direito e destruindo de forma vil e inadmissível a Constituição Portuguesa.
 
Quais Máfias  instaladas, ameaçadoras e intimidatórias, cruéis e desumanas,  esta gente que ainda está nas empresas do estado, no governo, e mesmo os que já lá estiveram e dele continuam injustamente a comer cada vez mais e de forma cada vez mais contrastante com o comum dos cidadãos, absolutamente atentatória aos direitos humanos e, neste caso, às desigualdades sociais que se acentuam de forma assustadora e preocupante, esta gente tem de ser combatida.
 
Combatida e punida. Exemplarmente.
 
E assim se vai afundando Portugal mas não eles.

E assim se destroem vidas e se rouba quem pobre sempre foi.

E assim se mata e se fere um país, lentamente, com a crueldade e o cinismo de quem insensível sempre foi à dor alheia e  indiferente aos compromissos com o povo se mantém.
 
 
Nazaré Oliveira
 
 


sábado, 12 de outubro de 2013

Malala




O recente discurso de Malala nas Nações Unidas tem um enorme significado. Malala era já um símbolo da luta pelo direito à educação. Desde os 11 anos que escrevia diariamente um blog e passou a ser muito conhecida como ativista, desde que a BBC lhe deu divulgação. O atentado que sofreu, em Outubro de 2012, dirigiu-se às suas ideias e à sua luta, pois que entre 2003 e 2009, na Região onde vivia, no Paquistão, as meninas haviam sido proibidas de frequentar a escola. Malala nunca se conformou com essa proibição e utilizou um meio poderoso para combatê-la: o seu pensamento e a sua palavra. Foi por isso que foi baleada. Sobreviveu e mantém a mesma vontade inabalável. A iniciativa das Nações Unidas de convidar Malala a discursar na Assembleia da Juventude no dia dos seus 16 anos é de saudar. As suas palavras ecoaram pelo mundo e revelam bem como é sentida a sua determinação e como é profundo o seu pensamento. Todos sabem da força da educação e da cultura, como sabem da força da palavra. Por isso é que tem sido tão frequente nas ditaduras a decisão de proibir a educação e a liberdade de expressão. E Malala mostrou saber isto quando disse que os extremistas têm medo dos livros e têm medo também das mulheres, fazendo um apelo aos dirigentes dos Países para garantirem às crianças o seu dierito à educação. Estima-se que haja 57 milhões de crianças e 69 milhões de adolescentes do sexo feminino, privados de frequentar a escola. Claro que o facto de ser uma rapariga a protagonizar esta luta é ainda mais notável. É um chamamento dirigido aos poderes constituídos, com repercussões ainda mais fortes porque os excluídos se identificam com a autora dos escritos e das comunicações. E Malala, que é já uma heroína, apela a valores nobres, da não-discriminação, mas também da tolerância, como fez Mandela, outro grande herói do nosso tempo. A sua frase “uma criança, um professor, um livro, uma caneta, podem mudar o mundo!” percorreu as rádios, as televisões e as redes sociais. Corre agora na Internet uma petição para que Malala seja candidata ao Prémio Nobel da Paz. Creio que será de inteira Justiça! Bem-hajas Malala pela tua energia, pelo teu entusiasmo e pelo teu exemplo!

 
Um artigo da Dra. Dulce Rocha


Discurso de Malala na ONU:

 
 

Hannah Arendt


 
Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, estreou na quinta-feira – o filme retrata uma das filósofas mais importantes do século XX, defensora da liberdade de pensamento e que cunhou o conceito da banalidade do mal, a propósito de Adolf Eichmann, oficial nazi julgado e executado em Israel.

A cena poderia passar-se em qualquer redacção do mundo. Neste caso, aconteceu na da célebre revista New Yorker. O director, William Shawn, sabe que está perante um momento histórico, o julgamento de Adolf Eichmann, oficial nazi célebre por ser um dos rostos da ‘solução final’ desenhada por Hitler, o do extermínio dos judeus. E tem à sua frente, caída do céu, uma proposta para a cobertura desse julgamento – que, se não foi o ‘do século’, na época, andou lá perto – por parte de Hannah Arendt, filósofa judia alemã exilada nos EUA e ela própria com uma passagem por um campo de concentração enquanto fugia do holocausto nazi.
A chefe de redacção, céptica, pergunta-lhe: “É mais uma filósofa europeia? Sabes que eles não têm limites para escrever e não são conhecidos por cumprirem prazos”. Shawn defende Arendt e segue com a aposta: “É um privilégio”.

O diálogo terá acontecido assim naquela redacção, em 1961, ano do julgamento de Eichmann em Jerusalém, onde estava detido depois de ser raptado pelos serviços secretos israelitas na Argentina. E foi reproduzido no mais recente filme de Margarethe von Trotta, estreado o ano passado na Europa e que só agora (na próxima quinta-feira) chega às salas portuguesas. A produção leva o nome da filósofa, uma das pensadoras mais marcantes do século XX pela originalidade e independência, interpretada pela actriz e cantora lírica Barbara Sukowa, outra referência do cinema alemão contemporâneo, como von Trotta.

Mas, ao contrário do que seria de esperar dos ditames da indústria cinematográfica, Margarethe von Trotta não se perde a fazer um filme biográfico e encerrar em duas horas estandardizadas uma vida tão complexa.

O filme centra-se nos anos entre a ida de Arendt a Israel para a cobertura do tal julgamento e a polémica que se seguiu à publicação do seu artigo na New Yorker. É que a ‘filósofa europeia’ não só cumpriu os prazos de entrega, desfazendo o medo dos responsáveis da redacção da revista, como partiu a loiça. Ao contrário do que seria de esperar, Hannah Arendt não descreve um monstro, nem sequer alguém mentalmente perturbado no julgamento. Ela tem pela frente um homem de uma banalidade desconcertante.

Se os actos praticados por Eichmann não encaixam na figura, então como foi possível este homem, que alega em sua defesa limitar-se a cumprir ordens, ser capaz de chefiar a temida Unidade IV D 4/4 e IV B 4 do exército nazi e ser pessoalmente responsável pela organização geral da deportação dos judeus da Alemanha e dos países europeus deportados? Longe de o desculpar, Hannah Arendt quer compreender. E é daí que lhe surge o conceito da banalidade do mal, um dos mais conhecidos do seu pensamento. Nesta altura, Arendt já tinha escrito duas obras de referência para a compreensão da génese dos regimes autoritários que floresceram na Europa no tempo da Segunda Guerra: As Origens do Totalitarismo (1951), em que denuncia a origem do nazismo e do estalinismo, e A Condição Humana (1958), na qual descreve a sua teoria política.

Qualquer um pode ser Eichmann?
A partir daí, entramos no clímax do filme. A dimensão humana de Arendt, que von Trotta retrata, dizem os entendidos, fielmente, é posta à prova logo após a publicação do artigo. A comunidade judia reprova-lhe a classificação de um criminoso de guerra nazi como um homem banal, mas não lhe perdoa de todo a denúncia que faz, no mesmo artigo, da inépcia dos líderes judeus da época, que viram a catástrofe a acontecer quase impavidamente.

A coragem custou-lhe até amizades de uma vida. Mais uma vez, interessava-lhe não perdoar, mas compreender sem crucificar previamente: “A banalidade do mal foi, no fundo, uma resposta à questão: ‘como foi possível acontecer?”, diz Sofia Roque, que está a trabalhar Numa tese de doutoramento sobre Arendt, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Se hoje aceitamos com alguma facilidade que qualquer pessoa, em qualquer época, pode ser um Eichmann ou um Hitler em potência, nos anos 60 isso não era assim. Quando Arendt formula a ideia, os acontecimentos ainda eram analisados muito a quente. No fundo, a ideia é coerente com o mais profundo dos pensamentos da filósofa: “A compreensão é o modo da política, sem ela não nos podemos situar no mundo”, acrescenta Sofia Roque, citando a autora. Arendt nem sequer parece à vontade, no filme, com o facto de se estar a fazer do nazi uma figura exemplar. Para ela, se uma pessoa abdicar, devido a determinadas circunstâncias históricas, de fazer o que a torna verdadeiramente humana – pensar – pode transformar-se num monstro.
Sofia, que viu o filme na única apresentação que teve em Portugal, a 25 de Maio no São Jorge (Lisboa), no âmbito da Judaica – 1.ª Mostra de Cinema e Cultura, recorda ainda o humanismo da personagem construída por von Trotta, que nem se esqueceu de pequenas conversas da filósofa com os muitos amigos que cultivou ou até o modo como Arendt se deitava no sofá, a fumar – era uma fumadora inveterada –, de olhos fechados, a organizar pensamentos.

Mas recorda-se do modo como Barbara Sukowa incarna a coragem da filósofa perante as críticas. Arendt chegou a receber um bilhete de um vizinho do próprio prédio onde morava em Nova Iorque, anónimo, que a chamava de ‘puta nazi’. Um dos seus amigos mais próximas, Hans Jonas, também exilado em Nova Iorque, diz-lhe que ela se tornou uma “intelectual arrogante alemã”. Mais tarde, seria convidada pelo departamento da universidade onde leccionava a não dar mais aulas. Resistiu sempre: “Ela procurou uma objectividade, distanciou-se da sua condição de judia e de um modo absolutamente corajoso tenta encontrar uma verdade num comportamento e enfrenta a comunidade judaica e os leitores da New Yorker”.

Pelo filme passam também duas histórias de amor. A relação de Arendt com o seu segundo marido, Heinrich Blücher, um filósofo autodidacta alemão, que fugiu com ela da França ocupada para os EUA através de Espanha e de Portugal, é apresentada nos pequenos gestos. Blücher nunca deixa de estar do seu lado.
Paixão impossível

Mas há uma outra, dada em flashbacks, quando a jovem Arendt, ainda estudante de filosofia na Alemanha, frequenta as aulas de Martin Heidegger, um dos maiores filósofos do século XX.

O fascínio da jovem Arendt transforma-se numa paixão ardente pelo professor, vários anos mais velho. Mas a história não ficaria completa sem polémica – Heidegger aderiu ao partido nazi em 1933 e estaria implicado no afastamento de académicos judeus da sua universidade, como se passou, de resto, em todas as áreas do conhecimento por toda a Alemanha e a Áustria.
Os dois separaram-se, Arendt conheceria Blücher já no exílio, e passaria pelo campo de concentração de Gurs, em França, perto dos Pirinéus, antes do ‘salto’ definitivo para os EUA. Mas a memória ficou. Hannah reataria a amizade entre ambos em 1950 e seria até responsável pela readmissão de Heidegger no meio universitário. O filme aborda a questão de leve, sem revelar a justificação do filósofo a Hannah, que lhe pede uma explicação. Mistérios insondáveis da alma humana? A explicação é quase impossível, mas Sofia Roque não vê aí mais do que algo privado, que a filósofa nunca chegaria a partilhar por completo: “Heidegger não era um cidadão comum, ele tinha os instrumentos suficientes para saber o que se estava a passar. Será que Hannah Arendt o perdoou? Não nos diz respeito”.

E qual será o lugar do pensamento de Hannah Arendt na actualidade?

São poucos hoje os que reclamam o modo como a filósofa pensa a tolerância, a humanidade, e sobretudo a acção política.

“Ela não define os objectivos da acção política, nunca se assumiu em nenhum ‘ismo’ ou disse se era de esquerda ou de direita”, esclarece Sofia Roque. Antes defende “a ideia de um sistema de pequenos conselhos, de órgãos cuja dimensão permitisse a participação directa” dos cidadãos nas decisões, um pouco como o espaço público da polis na democracia ateniense da Antiguidade. Para Arendt, a política é antes de tudo um espaço de liberdade entre plurais que podem discutir, a partir do momento em que são cidadãos livres, “o sistema social, de justiça e de igualdade”.

Se estivesse hoje entre nós, Hannah Arendt ficaria por certo agradada com os movimentos que saíram à rua um pouco por todo o mundo, a reclamar mais liberdade ou melhores condições sociais, fosse contra ditaduras – como no mundo árabe, num processo que ainda não acabou –, fosse contra políticas de austeridade, na Europa e nos EUA.
A filósofa de figura frágil e afável poderia ser uma indignada do século XXI?

Arendt analisou as revoluções, da americana à francesa, passando pela dos sovietes. Hoje, talvez estaria preocupada em “ligar estes fenómenos aos movimentos occupy”, aposta Sofia Roque.



Ricardo Nabais, Jornal Sol

Claudio Cavalcanti


 
 
Emociona ver esta foto, sim, esta homenagem.
Ser humano de excelência, Claudio Cavalcanti defendeu sempre os animais até ao fim dos seus dias. Lutou por eles.
Precisamos cada vez mais de pessoas que deem a cara por eles. Por eles e por todos os que como eles estão sujeitos às maiores humilhações e prepotência de certos "humanos"!

Ler notícia aqui.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Mujica critica sociedade capitalista em discurso na ONU


Um discurso que devia ser espalhado por todo o mundo! Refletido por toda a gente, com seriedade, respeito e muita atenção.
Admirável intervenção de um grande político, de um grande senhor, de um grande Presidente. Um socialista a sério que não desiste das suas ideias, dos seus valores, das suas convicções e que dá testemunho das mesmas ao mundo inteiro!
Notável!




   

O Presidente uruguaio lamentou o embargo a Cuba, o colonialismo nas Malvinas e a pobreza na América Latina

 
O presidente do Uruguai, José Mujica, criticou duramente o consumismo durante seu discurso na 68ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, nesta terça-feira (24/09). “O deus mercado organiza a economia, a vida, e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos frustração, pobreza e autoexclusão”, afirmou.

No discurso, que durou 40 minutos, ele também elogiou a utopia “de seu tempo”, mencionou a sua luta pelo antigo sonho de uma “sociedade libertária e sem classes” e destacou a importância da ONU, que se traduz para ele num “sonho de paz para a humanidade”.

Aos jornais uruguaios, Mujica prometeu um “discurso exótico” e fugiu do protocolo ao dizer que “tem angústia pelo futuro” e que a nossa “primeira tarefa é salvar a vida humana”.
“Sou do Sul (...) e carrego inequivocamente milhões de pessoas pobres na América Latina, carrego as culturas originárias esmagadas, o resto do colonialismo nas Malvinas, os bloqueios inúteis a Cuba, carrego a consequência da vigilância eletrónica, que gera desconfiança e que nos envenena inutilmente. Carrego a dívida social e a necessidade de defender a Amazónia, os nossos rios, de lutar por uma pátria para todos e que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, com o dever de lutar pela tolerância”.

A humanidade sacrificou os deuses imateriais e ocupou o templo com o “deus mercado, que organiza a economia, a vida, e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos a frustração, a pobreza, a autoexclusão”. No mesmo tom, ressaltou o fracasso do modelo adotado no capitalismo: “o certo hoje é que para a sociedade consumir como um americano médio seriam necessários três planetas. A nossa civilização montou um desafio mentiroso”.

Uruguaio criticou os altos gastos dos países com armamentos

Para o presidente, o atual modelo de civilização “é contra os ciclos naturais, contra a liberdade, que supõe ter tempo para viver, (…) é uma civilização contra o tempo livre, que não se paga, que não se compra e que é o que nos permite viver as relações humanas”, porque “só o amor, a amizade, a solidariedade, e a família transcendem”. “Arrasamos as selvas e implantamos selvas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insónia com remédios. E pensamos que somos felizes ao deixar o humano”.

Paz e guerra

“A cada 2 minutos gastam-se 2 milhões de dólares em materiais militares. As pesquisas médicas correspondem à quinta parte dos investimentos militares”, criticou o presidente ao sustentar que ainda estamos na pré-história: “enquanto o homem recorrer à guerra quando fracassar a política, estaremos na pré-história”, defendeu.

Assim, criamos “este processo do qual não podemos sair e causa ódio, fanatismo, desconfiança, novas guerras; eu sei que é fácil poeticamente autocriticarmos. Mas seria possível se firmássemos acordos de política planetária que nos garantam a paz”. Ao invés disso, “bloqueiam os espaços da ONU, que foi criada com um sonho de paz para a humanidade”.

O uruguaio também abordou a debilidade da ONU, que “se burocratiza por falta de poder e autonomia, de reconhecimento e de uma democracia e de um mundo que corresponda à maioria do planeta”.

“O nosso pequeno país tem a maior quantidade de soldados em missões de paz e estamos onde queiram que estejamos, e somos pequenos”. Dizemos com conhecimento de causa, garantiu o mandatário, que “estes sonhos, estes desafios que estão no horizonte, implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais para governar a nossa história e superar as ameaças à vida”. Para isso é “preciso entender que os indigentes do mundo não são da África, ou da América Latina e sim de toda humanidade que, globalizada, deve empenhar-se no desenvolvimento para a vida”.

“Pensem que a vida humana é um milagre e nada vale mais que a vida. E que o nosso dever biológico é acima de todas as coisas, impulsionar e multiplicar a vida e entendermos que a espécie somos nós” . E concluiu: “a espécie deveria ter um governo para a humanidade que supere o individualismo e crie cabeças políticas”.



*
com Vanessa Silva, do "Portal Vermelho"

sábado, 28 de setembro de 2013

Não vais votar?




Não querer votar nas eleições para os órgãos e instituições políticas do meu país, é deitar por terra, banalizar e renegar uns dos maiores direitos conquistados com a Revolução de Abril, que foi e continua a ser a liberdade de escolha através do meu voto.
Liberdade de escolha que nesse pequeno gesto, nessa cruz que se traça ou não, fará certamente a diferença, dela dependendo o aparecimento de minorias ou até maiorias parlamentares, governos e políticas cuja continuidade - a História nos ensina - ameaça se torna ao regime democrático, abrindo frequentemente lugar à prepotência política e à arbitrariedade na ação governativa e legislativa que não queremos, mas que, inevitavelmente,  sobretudo com a abstenção, a todos atingirá.

Quando voto, decido, julgo, avalio e até penalizo os partidos e as suas políticas. Sim, os partidos, sem os quais nenhuma democracia se constituirá. Por isso é que voto. Por isso é que deves votar.

Quando não votas, não existes. Escondes-te numa posição fácil de clara desresponsabilização pelo que do teu gesto possa resultar para o país e para a continuação do estado democrático. Demites-te, assim, daquilo que era legítimo e até obrigatório fazeres se fosses um tipo consciente do que estudaste e até ensinaste, porque muitos morreram a lutar por esse dia, essa liberdade, torturados e perseguidos que foram por travarem um combate do qual agora foges vergonhosamente.
Quando não votas, és como um desertor que abandona o país à sua sorte e nada dele quer saber.

Não, nada se fará ou mudará se não intervieres com o teu voto e ele falar por ti.

Quando não votas, acobardas-te porque foges a um dever e a uma responsabilidade cívica que a ti também cabe mas que não assumes, deixando perigosamente que outros por ti decidam, mal ou bem, os destinos do nosso país e da tua autarquia. Depois, de forma perversamente subtil, passas para os outros, falsamente envaidecido, um discurso oco, árido, sistematicamente oco, sistematicamente árido, próprio dos que à espreita sempre estarão só para criticar, nada fazendo ou tendo feito, sequer pensado em fazer, interessados somente em denegrir quem com seriedade o seu programa político fez e a sua ação pautou, entregando-o para sufrágio popular.
Estás descontente com os partidos? Com a Política? Com certos candidatos? Com a corrupção e o compadrio? Com o despesismo do Estado? Estás descontente? Que fizeste ou tens feito para acabar com isso?

Estiveste na Rua, nas manifestações contra a cada vez maior pobreza dos portugueses? Contra esta austeridade terrível que nos atormenta e mata lentamente? Estiveste na Rua, nas manifestações contra a delapidação das contas públicas, as mordomias das elites, de certos políticos, dos banqueiros, dos gestores públicos, contra as PPP, contra a falta de transparência da gestão do erário público, do roubo de salários e de direitos constitucionalmente adquiridos, da desigualdade social crescente, do desrespeito pela Constituição e conquistas dos trabalhadores? Onde tens estado quando lutamos contra o fim do Estado Social? Que tens feito? Falas, sim, mas nada fazes para combater aquilo que criticas. Aliás, só criticas e nem votar vais, entrincheirado que estás e continuas a estar no teu discurso de espetador passivo, sempre com as mesmas palavras, acomodado com as mesmas palavras, os mesmos gestos e a mesma atitude, agarrado aos erros do passado que outros cometeram mas nada fazendo hoje para que uma nova mudança na Política aconteça.
Que exemplo dás aos teus filhos, aos nossos jovens que pela primeira vez vão votar? Quantas vezes andaste na tua cidade, na tua freguesia, e viste o que foi feito ou não foi feito e devia ser? Quantas vezes contataste órgãos do teu país ou da tua autarquia sobre incumprimentos graves acontecidos mas prometidos nos seus programas eleitorais? Quantas vezes?

Não condenes os partidos porque sem partidos não tens democracia. Assume a sua existência como um sinal de desenvolvimento e maturidade política do teu país mas não lhes delegues, exclusivamente, uma discussão e uma responsabilidade da qual sistematicamente te excluis como cidadão crítico e ativo que se esperava que fosses e ás vezes dizes ser, tu, que nem interessado estás em votar.
Quem não vai votar não tem autoridade cívica nem moral para exigir ou criticar seja que governo, presidente ou autarquia for.

Todos deviam pensar no que fazem, melhor, no que não querem fazer para mudar aquilo que criticam.
Quem não vai votar não se importa com o seu país.

Eu importo-me.
Não me chega pertencer-lhe. Quero participar nele.
 
 
 
Nazaré Oliveira

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Grande José Régio!


De um dos primeiros livros de poesia que li, ainda adolescente.
Um dos poemas mais fantástico de um dos mais fantásticos poetas que existiram (e continuarão a existir) - CÂNTICO NEGRO de José Régio.

 


Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces

 Estendendo-me os braços, e seguros

 De que seria bom que eu os ouvisse

 Quando me dizem: "vem por aqui!"

 Eu olho-os com olhos lassos,

 (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

 E cruzo os braços,

 E nunca vou por ali...

 

 A minha glória é esta:

 Criar desumanidade!

 Não acompanhar ninguém.

 - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

 Com que rasguei o ventre à minha mãe

 

 Não, não vou por aí! Só vou por onde

 Me levam meus próprios passos...

 

 Se ao que busco saber nenhum de vós responde

 Por que me repetis: "vem por aqui!"?

 

 Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

 Redemoinhar aos ventos,

 Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

 A ir por aí...

 

 Se vim ao mundo, foi

 Só para desflorar florestas virgens,

 E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

 O mais que faço não vale nada.

 

 Como, pois sereis vós

 Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

 Para eu derrubar os meus obstáculos?...

 Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

 E vós amais o que é fácil!

 Eu amo o Longe e a Miragem,

 Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

 

 Ide! Tendes estradas,

 Tendes jardins, tendes canteiros,

 Tendes pátria, tendes tectos,

 E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

 Eu tenho a minha Loucura !

 Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

 E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

 

 Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

 Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

 Mas eu, que nunca principio nem acabo,

 Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 

 Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

 Ninguém me peça definições!

 Ninguém me diga: "vem por aqui"!

 A minha vida é um vendaval que se soltou.

 É uma onda que se alevantou.

 É um átomo a mais que se animou...

 Não sei por onde vou,

 Não sei para onde vou

- Sei que não vou por aí!

 

 

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'