domingo, 14 de abril de 2024

Mulheres, em casa, a reproduzir filhos e preconceitos

 



14 de abril de 2024 

Mulheres, em casa, a reproduzir filhos e preconceitos

Bárbara Wong

Passaram quase 30 anos. Estávamos sentadas no bar da faculdade, a um semestre de terminar o curso, cheias de dúvidas sobre o que iríamos fazer a seguir, se iríamos trabalhar, onde, a fazer o quê. Ela, com uma écharpe e umas argolas pejadas de pérolas disse, segura, com a sua voz anasalada: "Eu vou casar, bem, e ficar em casa a educar os meus filhos." Houve quem se risse, quem gozasse. Eu fiquei atónita porque percebi que aquele era mesmo o plano: casar, "bem", ficar em casa e ter filhos.

Anos depois, encontrei-a na praia, num fato de banho preto com bolas brancas, escondido por detrás de um páreo branco, não trazia pérolas nas orelhas, mas ao pescoço, e tentava controlar uma ninhada, toda vestida aos quadradinhos, eles de azul-bebé, elas de rosa clarinho e folhos. Atrapalhadíssima e nuns decibéis acima das ondas que batiam na areia, chamava, com a sua voz anasalada, petit nom atrás de petit nom, tratando-os por "você" — já se sabe, como contam Ana e Isabel Stilwell, há sempre guerras entre irmãos. Com os olhos varri a praia, à procura do pai (que não conhecia), percebi mais tarde que estava sentado debaixo do toldo da família.

Reconhecemo-nos, mas não falámos. Eu só tinha uma pergunta em mente, "sempre cumpriste o teu plano?", e achei por bem não a fazer. Sorrimos e acenámos. Mas tinha de colocar a questão a alguém. Liguei a uma amiga comum, que me respondeu que o marido da colega das pérolas era um advogado de sucesso, que eram uma família ultraconservadora (a indumentária de mãe e filhos já o tinha denunciado) e que, quando ela tinha um jantar de amigas, ele ligava e mandava mensagens a pedir-lhe para voltar para casa, que ele e os filhos estavam "cheios de saudades".

Vivemos um momento em que, aparentemente, os homens se sentem inseguros e têm medo das mulheres, têm medo da sua inteligência (elas estudam mais que eles, é certo), da sua independência e, Liliana Carona acrescenta, da sua beleza. Na sua crónica, a jornalista cita estudos norte-americanos que revelam que "os homens distanciam-se e mostram menos interesse pelas mulheres que os ultrapassavam, a nível de inteligência/capacidades". E assistimos a este movimento entre os jovens rapazes, muitos votantes na extrema-direita não democrática.

Lembrei-me da colega das pérolas quando, nesta semana, se deu a apresentação do livro Identidade e Família — é possível que ela lá estivesse —, e ouvimos tantas palavras vindas do passado, sobre famílias tradicionais e da função da mulher dona de casa. Lembrei-me dela ao ler o texto de Monica Hesse sobre mulheres que ficam em casa e o lazer feminino. A jornalista norte-americana destaca as mulheres que perceberam que a vida pode ser mais fácil se ficarem dependentes de alguém. Se casarem "bem", acreditam que não terão problemas. Há um movimento de influencers nas redes sociais que louvam os benefícios de ser dona de casa. O que Hesse não refere é que muitas destas mulheres são evangélicas ou apoiadas por movimentos evangélicos, os mesmos que apoiam Trump, os mesmos que, por cá, aparentemente estão por detrás do ADN, como escreveu Carmen Garcia há umas semanas.

Mas Hesse foca também a falta de tempo das mulheres trabalhadoras para o lazer (queixa que os homens também terão). No fundo, tudo isto é um pau de dois bicos. Por um lado, conquistámos o direito ao trabalho fora de casa; por outro, o de dentro de casa mantém-se. Por um lado, conquistámos o direito a uma carreira; por outro, somos mal remuneradas — é entre os jovens que o fosso salarial é mais grave. Por um lado, sonhamos com promoções; por outro, estamos exaustas quando chegamos a casa. Diz Monica Hesse: "As mulheres que foram educadas sobre as virtudes da independência feminina foram enganadas. Sim, podemos ter carreiras de sucesso. Mas ninguém diminuiu a quantidade de roupa suja ou de tarefas que ainda precisam de ser feitas. Ninguém acrescentou mais horas ao relógio.​"

Fomos enganadas porque ainda há homens que "ajudam" lá em casa e não percebem que têm de dividir tarefas. Monica Hesse dá exemplos de mulheres que optaram pela casa até sonharem com um trabalho. "E ela é feliz?", perguntei à minha amiga sobre a colega das pérolas. Fez-se um silêncio: "Eu acredito que o feminismo também é isto, o teres liberdade para viveres a vida que planeaste." Sem dúvida, eu concordo que tens liberdade para viveres o teu sonho, mas não tens de o impor aos outros, não tens de pôr em causa todos os direitos conquistados e quereres que todas tenhamos de ficar em casa, a reproduzir filhos e preconceitos. Além disso, não foi isso que perguntei. "Não a vejo a ter momentos de dúvida. Eles são ultraconservadores", responde a nossa amiga comum. 

Assustam-me sempre as pessoas que não têm dúvidas (ou raramente as têm), como é o caso do "cara valente" sobre o qual Ana Lázaro escreve, em mais um dos seus contos. É um homem capaz de tudo, menos de viver emoções — porque os homens não são educados para falarem sobre as suas emoções. "Faltava-lhe o atrevimento, a coragem para o amor. Porque para o amor é preciso bravura. É preciso audácia para mergulhar no desconhecido de uma escuridão profunda que se esconde para dentro de nós." Foi mais uma relação que não resultou na vida da nossa narradora.

Inês Meneses fala-nos da "prateleira da vergonha", aquela onde colocamos as relações que não foram felizes, mas como essas foram importantes para crescermos: "É preciso rir para que o amor possa ser sempre melhor e nos tornemos mais exigentes com ele. Connosco." O psicólogo Jason Wu explica como combater a vergonha pode ajudar a construir um sentido de identidade saudável. Por isso, cara colega das pérolas, se algum dia tiveres dúvidas, não tenhas vergonha e sabe que podes pedir uma indemnização pelo trabalho em casa não remunerado e recomeçar uma nova vida. 

Boa semana!

Bárbara Wong

bwong@publico.pt

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

domingo, 18 de junho de 2023

Metsola na Assembleia da República

A tragédia de Pedrógão e o esquecimento do governo

 



16 de junho de 2023 - Memorial aberto sem inauguração. Seis anos depois, Pedrógão Grande sente-se esquecido


Para espanto e mágoa dos que ainda choram a tragédia do fogo de 2017, a abertura do memorial às vítimas aconteceu sem a presença dos mais altos representantes da nação

 Memorial aberto sem inauguração. Seis anos depois, Pedrógão Grande sente-se esquecido

Silêncio, lágrimas e suspiros. A primeira reacção de quem perdeu familiares ou amigos no fogo de 2017, assim que dá de caras com o muro no qual foram gravados os nomes das vítimas, oscila entre a saudade e o respeito. “Ainda mexe muito, está tudo muito presente”, confessava Maria Graciete, depois de reconhecer vários nomes de amigos e vizinhos, de Castanheira de Pêra, cravados naquele bloco de pedra cinzenta. Não que eles estivessem esquecidos. Pelo contrário. “Não temos outra estrada para passar e não há dia em que não me lembre deles”, reforçava, com os olhos postos no grande lago artificial que, juntamente com o mural, constitui o memorial de homenagem às vítimas dos incêndios de 2017.

https://www.publico.pt/2023/06/16/sociedade/reportagem/memorial-aberto-inauguracao-seis-anos-pedrogao-sentese-esquecido-2053629


Maria José Santana (Texto) e Adriano Miranda (Fotos)

sábado, 15 de abril de 2023

Democracia não é assim tão simples


Estará a democracia a morrer? Que desafios enfrenta hoje? E como poderá vencê-los? Para responder a estas questões, Pedro Pinto entrevista o professor da Universidade de Harvard e perito em democracias Daniel Ziblatt, neste episódio de «Isto Não É Assim Tão Simples». Nesta conversa, o autor do livro «How Democracies Die», um best-seller do «The New York Times», os sinais de alerta de uma democracia que está sob ameaça, não através de um golpe de estado, mas por parte de políticos autoritários que «minam» os seus alicerces a partir do poder. Ziblatt dá também exemplos de países onde a democracia está de boa saúde. Analisa ainda o impacto da guerra da Rússia contra a Ucrânia nas democracias mundiais e o que poderá acontecer no futuro. Ziblatt aborda também as tentativas fracassadas – nos EUA e no Brasil – de anular o resultado das suas eleições presidenciais, e o que essas tentativas nos dizem sobre o futuro da democracia. Finalmente, Ziblatt debruça-se sobre Portugal e o crescimento da extrema-direita populista, discutindo como os principais partidos nas democracias ocidentais podem lidar com essa ameaça, numa conversa que vale a pena ouvir.

terça-feira, 14 de março de 2023

Debate sobre a extinção das touradas em 1821


Na sessão de 4 de agosto de 1821 das Cortes Constituintes, as touradas estiveram em debate.

Borges Carneiro apresentou um projeto de lei para a proibição dos espetáculos tauromáquicos, entendidos como contrários “às luzes do século, e à natureza humana”. Em causa, estava um entretenimento baseado no sofrimento dos animais, criados para servir o homem, mas não para serem martirizados.

 “Os homens não devem combater com os brutos, e é horroroso estar martirizando o animal, cravando-lhe farpas, fazendo-lhe mil feridas, e queimando-lhe estas com fogo: tão bárbaro espetáculo não é digno de nós, nem da nossa civilização.”

 Também o Deputado Teixeira Girão classifica as touradas como um” bárbaro divertimento”, uma “tolice em expor a vida sem fim útil, sem necessidade, uma “traição em inutilizar aos touros as armas que lhes deu a natureza” e uma “crueldade e cobardia em atormentá-los depois”.

 Em sentido contrário, vários Deputados argumentam com a tradição e popularidade do espetáculo, mas também pela existência de outros costumes que agridem os animais, como a caça ou, noutros países as “carreiras de cavalos e o combate dos galos”. Referindo-se ao projeto de lei de Borges Carneiro, Lemos Bettencourt afirma:

 “Admira-me, como levado de tão filosóficas tenções, não incluiu no mesmo projeto a proibição da caça, pois sendo todos os animais e aves entes sensitivos, não deviam ser objeto de divertimento do homem; e não devia o caçador matar a ave inocente”.

 Outros Deputados entendem que a sociedade portuguesa não está ainda preparada para a decisão de extinguir as corridas de touros. Assim pensa Serpa Machado, que defende ainda a diminuição da barbaridade do espetáculo e a abolição dos “touros de morte”:

 “Eu não seria de opinião que desde já fossem proibidas as festas de touros, porque ainda não é tempo; é necessário ir preparando os costumes. Entretanto apoio que o projeto vá à discussão, não para se abolir esse espetáculo, senão para diminuir a sua barbaridade. Vamos por ora preparando os costumes, que lá virá tempo em que ele caia por si mesmo.”

 Manuel Fernandes Tomás, confessando ser “amigo deste divertimento” e espetador semanal de touradas, refere que não se pode, de repente, transformar o país numa “Nação de filósofos”, sendo necessário preparar a sociedade:

 “Para extinguir-se aqui este espetáculo, é preciso que os costumes se vão preparando, querer de repente reduzir uma Nação a Nação de filósofos não me parece correto, nem sensato; este costume há de acabar entre nós, quando se extinguir na Espanha. Eu o declaro francamente, sou amigo deste divertimento; não é por ser valoroso, nem deixar de o ser, nem querer que os outros o sejam, senão porque fui criado com isso. Na teoria sou dos mesmos sentimentos filantrópicos; mas na prática não posso. Confesso a minha fraqueza: vou ver os touros todos os domingos. Eu não pugnarei porque os haja; mas tão pouco me oporei diretamente a que deixe de havê-los."

 O projeto de lei de Borges Carneiro para a extinção das touradas seria rejeitado.

 

in https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/Debate-sobre-a-extincao-das-touradas-1821.aspx

 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

José Gomes Ferreira e o ensino da História




Ocasionalmente, apareceu-me este vídeo... https://www.msn.com/pt-pt/entretenimento/tv/novo-livro-de-jos%C3%A9-gomes-ferreira-%C3%A9-um-grito-de-revolta-contra-a-maneira-como-a-nossa-hist%C3%B3ria-%C3%A9-contada/vi-AA14JI3r?rc=1&ocid=winp1taskbar&cvid=efadb45d04e54cf39f098277b4b2e47f

Santa ignorância, quer do autor quer, até, da apresentadora!...

Este jornalista, que habitualmente faz um programa sobre Economia/Finanças na SIC, anda agora a vestir a roupagem de historiador e a revisitar a História, à sua maneira, claro, criticando a torto e a direito (como é habitual nas suas intervenções) desconhecendo, efetivamente, os programas atuais de História/os conteúdos e a forma crítica como os mesmos são dados e até referenciados pelo Ministério da Educação. 

Nem 8 nem 80! 

Não escondemos a verdade histórica mas também não mentimos aos nossos alunos nem mascaramos a realidade histórica ao nosso gosto ou ao gosto da nossa ideologia político-partidária.

A visão deste jornalista, que revela o desconhecimento daquilo que se faz neste âmbito, integra-se claramente numa perspetiva saudosista, imperialista, colonialista… Já é o 2º livro que escreve desta forma sensacionalista-nacionalista, como se o que ele escreve ("investigou") tenha que ser, agora, uma verdade científica comumente aceite e uma espécie de cartilha para o seguidismo de má memória.

Que pedantismo! Que desconhecimento da realidade! 

Fala em manuais, manuais... Que manuais? De que anos de escolaridade?

Que fontes históricas consultou para apresentar este discurso?

Leu as orientações do Ministério da Educação relativamente ao ensino da História? 

Por exemplo:

- as aprendizagens essenciais da História A - 10º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/10_historia_a.pdf; 

- as aprendizagens essenciais da História A - 11º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/11_historia_a.pdf

as aprendizagens essenciais da História A - 12º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/12_historia_a.pdf

- as aprendizagens essenciais da História B - 10º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/10_historia_b.pdf

- as aprendizagens essenciais da História B - 11º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/11_historia_b.pdf



Nazaré Oliveira