Mostrar mensagens com a etiqueta Livros. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Livros. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

José Gomes Ferreira e o ensino da História




Ocasionalmente, apareceu-me este vídeo... https://www.msn.com/pt-pt/entretenimento/tv/novo-livro-de-jos%C3%A9-gomes-ferreira-%C3%A9-um-grito-de-revolta-contra-a-maneira-como-a-nossa-hist%C3%B3ria-%C3%A9-contada/vi-AA14JI3r?rc=1&ocid=winp1taskbar&cvid=efadb45d04e54cf39f098277b4b2e47f

Santa ignorância, quer do autor quer, até, da apresentadora!...

Este jornalista, que habitualmente faz um programa sobre Economia/Finanças na SIC, anda agora a vestir a roupagem de historiador e a revisitar a História, à sua maneira, claro, criticando a torto e a direito (como é habitual nas suas intervenções) desconhecendo, efetivamente, os programas atuais de História/os conteúdos e a forma crítica como os mesmos são dados e até referenciados pelo Ministério da Educação. 

Nem 8 nem 80! 

Não escondemos a verdade histórica mas também não mentimos aos nossos alunos nem mascaramos a realidade histórica ao nosso gosto ou ao gosto da nossa ideologia político-partidária.

A visão deste jornalista, que revela o desconhecimento daquilo que se faz neste âmbito, integra-se claramente numa perspetiva saudosista, imperialista, colonialista… Já é o 2º livro que escreve desta forma sensacionalista-nacionalista, como se o que ele escreve ("investigou") tenha que ser, agora, uma verdade científica comumente aceite e uma espécie de cartilha para o seguidismo de má memória.

Que pedantismo! Que desconhecimento da realidade! 

Fala em manuais, manuais... Que manuais? De que anos de escolaridade?

Que fontes históricas consultou para apresentar este discurso?

Leu as orientações do Ministério da Educação relativamente ao ensino da História? 

Por exemplo:

- as aprendizagens essenciais da História A - 10º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/10_historia_a.pdf; 

- as aprendizagens essenciais da História A - 11º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/11_historia_a.pdf

as aprendizagens essenciais da História A - 12º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/12_historia_a.pdf

- as aprendizagens essenciais da História B - 10º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/10_historia_b.pdf

- as aprendizagens essenciais da História B - 11º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/11_historia_b.pdf



Nazaré Oliveira


sábado, 2 de março de 2019

Os Loucos da Rua Mazur



Despojos de dignidade. Talvez seja esta uma forma arriscadamente simplista para apresentar o mais recente romance de João Pinto Coelho, que retrata a vida de uma pequena comunidade situada na Polónia antes, durante e depois da guerra e o contexto de um massacre perpetrado por cristãos relativamente a judeus, gente que antes convivia e se relacionava em contextos intimistas e pacíficos.
Muito se tem escrito e romanceado sobre a II Guerra Mundial, quase sempre a partir do comportamento invasor alemão, quase sempre com papeis consensualmente atribuídos a vítimas e a agressores. “Os Loucos da Rua Mazur” (Leya, 2017), de João Pinto Coelho (Prémio Leya 2017), apresenta uma abordagem diferente deste momento da história.
No nordeste da Polónia, entre 1935 e 1941, acompanhamos a vida de três amigos, jovens adolescentes, que vêm as suas vidas clivadas pelos acontecimentos geopolíticos de então e pela herança religiosa e cultural que transportavam consigo. Yankel, judeu, cego, torna-se décadas mais tarde livreiro em Paris, capaz de encontrar imagens para retratar a realidade.
Eryk, católico, maquiavélico, revela-se um improvável escritor que se disfarça nas personagens que cria, ensaiando a própria vida nos romances. Shionka, uma muda funcional que se torna relatora e editora, voz de memórias que agridem quem as recupera. O foco é surpreendente, indo com detalhe a parcelas da vida de um povo que se viu duplamente invadido e dividido pelos dois invasores, alemães e russos, como pela fragmentação social e religiosa surgida na própria sociedade polaca.
Entre Setembro de 1939 e o fim do conflito mundial, a Polónia viu-se multiplamente dividida entre o ressentimento dirigido às forças alemãs e soviéticas, o registo de alianças e a sobrevivência relativamente aos invasores, vítima de um terror em massa e de um esquema de dilação e denúncia.
Durante anos, os polacos viram-se privados de dignidade e de confiança a determinada altura em si próprios, tal o efeito pernicioso da dilação, perseguição e aniquilação promovida pelos ocupantes e efectivada, em certos momentos, por eles próprios, sabendo que a qualquer momento qualquer pessoa poderia ser alvo do extermínio, fosse qual fosse o pretexto, religioso, genético, étnico ou tão só estético, qual busca da perfeição. Apontam-se para cerca de seis milhões de pessoas as vítimas polacas mortas durante a invasão do país no período de 1939 a 1945. Muitos sobreviveram tornando-se refugiados no seu próprio país.
“Os Loucos da Rua Mazur” dá voz e visibilidade a uma forma especialmente perversa do domínio ocupante, nazi e soviético, aquela que conseguiu corromper as bases da convivência e confiança comunitária, substituindo-a por dilação, denúncia e anti-semitismo levado ao extremo, entre os próprios polacos, retratando a forma como muitos foram exterminados fora dos campos e dos guetos. Já em 2001, em Paris, cada um dos três protagonistas, fisicamente sobreviventes, mas emocionalmente esfarrapados, dão corpo à resiliência, reserva e dignidade do povo polaco. Ao recuperarem as memórias da inverosimilhança de episódios passados, vividos pelos próprios constatam que “quem viu de frente o inferno, não pode querer lá voltar nem contar o que encontrou”.
Longe de ser consensual, especialmente pela visão que o autor apresenta da fragmentação da sociedade polaca, trata-se de um livro que rompe com a unilateralidade dominante de apresentação destes acontecimentos históricos. Fá-lo depois de, entre outros projectos na área, ter integrado acções do Conselho da Europa em Auschwitz e trabalhado de perto com vários investigadores do Holocausto. 
Como relato com fundamento histórico, a narrativa de João Pinto Coelho serve-se da magia das palavras e da escrita, das letras e dos sons, independentemente da sua forma, como forma de sobrevivência e renovação de uma memória que se deseja imparcial e profundamente subjectiva. Contraditório? Talvez. Impossível? Não necessariamente. Leiamos “Os Loucos da Rua Mazur” e constatemos a forma como as cinzas desta memória assentaram.


Por Francisca Moura , in http://deusmelivro.com/mil-folhas/os-loucos-da-rua-mazur-joao-pinto-coelho-28-12-2017/em 28/12/2017.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Miguel Torga

Foto da minha coleção (Nature, my love, no Google+)




Coimbra, 14 de Junho de 1973 – Continuo numa espécie de sonambulismo, maravilhado diante de cada árvore, de cada pássaro, de cada flor, de cada mulher vestida e perfumada. Os sentidos como que convalescem das violências sofridas. Numa sensação reconfortante, reencontro pouco a pouco a medida familiar das coisas familiares, o ritmo da respiração e do sangue. (...) Vou vendo casas, caras conhecidas, monumentos, pombas, jardins. E tudo está certo dentro de mim, arrumado no seu compartimento emotivo ou sensorial. Sou mesmo um homem civilizado. Não parece, mas sou”.

Miguel Torga, Diário XII

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Um texto lindíssimo de Jorge de Sena



"Como um presente de Natal, um texto lindíssimo de Jorge de Sena", assim escreveu Diana Andringa na sua pg de Facebook.

Vou partilhá-lo aqui no meu blogue. É fantástico!



Super Flumina Babylonis

A ascensão da estreita escada escura, e tão a pino, com os degraus muito altos e cambaios, era, sempre que voltava a casa, uma tortura. À força de equilíbrios, meio encostado à parede, cuja cal já se esvaíra havia muito e até nas suas costas, e apoiando em viés uma das muletas no extremo oposto do degrau de cima, ia subindo cuidadosamente, num resfolegar de raiva pela lentidão. Toda a unção adquirida na conversa com os frades de S. Domingos, a cujas prelecções regularmente assistia, ficando depois a discretear com eles, se perdia naquele regresso a casa, ao fim da tarde, e mal se recompunha no repouso à janela, sentado no banquinho baixo, comido o caldo, e ruminando memórias e tristezas, enquanto a velha mãe prosseguia intermináveis arrumos pontuados de começos de conversa, a que respondia com sorrisos e distraídos monossílabos ou com frases secas em que ripostava mais a si próprio que a ela mesma. Às vezes, ela insistia, repetindo um comentário, por uma resposta sua. Mas mesmo essa insistência não significava comunicação efectiva: ela apenas pretendia tranquilizar a própria consciência e o seu dó do filho envelhecido e doente, que a vida destruíra, com algumas palavras que lhe dirigisse, simulando uma conversa que não o deixasse entregue, perigosamente, aos solitários pensamentos, onde é sabido que o Inimigo especialmente se insinua. E não era dos pensamentos que ele tinha medo, mas dos vazios cada vez maiores que, entre os pensamentos, se faziam. Quando ela lhe falava, e sobretudo quando ela insistia, precisava não se deixar distrair pelas palavras que ouvia: ou logo, no fio interrompido das ideias que continuamente deslizavam como um rio revolto, se abria um vácuo tenebroso, um vórtice sombrio em que flutuavam farrapos de versos e de coisas vistas, e, mais no fundo, como que uma pequenina porta iluminada, ou um vidro posto sobre estranhas águas em que nadavam esquisitos seres, e que parecia um olho fito nele, pestanejando ou palpitando, não sabia bem, talvez que, sim, nem mesmo um olho, mas uma transparência marinha como os reflexos das ondas ao luar. A pequenina porta, que lhe fazia vertigens, nem sempre se mostrava. Na maior parte das vezes não havia mais que o poço em que se debruçava, ansioso de que a portinha se abrisse e tremente até ao arrepio pela frialdade que dela vinha. Fechando os olhos, cerrando-os com bastante força, conseguia então afugentar aquelas visões» ou aquela visão, sempre a mesma, que sonhava acordado. Porque dos sonhos tinha ódio. Pensar, devanear, lembrar, imaginar, mesmo supor como tudo poderia ter sido numa vida triunfante e num outro mundo, não era sonho, mas a certeza de que existia, de que as coisas se arrumavam por sua vontade, que a ordem delas e do Mundo era um desconcerto que ele organizava mentalmente. Quando dormia, não sonhava nunca. Não eram sonhos as coisas que então via, mas a continuação do mesmo poder e da mesma certeza, ou então tentações do demónio, como diziam os padres. Mas as tentações ele conhecia bem.. Não eram tentações da sua alma que Deus não deixaria que se perdesse nunca, a não ser naquele vórtice estranho onde parecia que Ele não penetrava. Como tentações? Que tentação era ter nos braços uma mulher que lhe escapara? Que tentação era matar, dormindo, um inimigo poderoso e inacessível? Que tentação era ver-se feliz num palácio, rico, respeitado, rodeado de servos e de admiradores, com uma mesa farta de bons petiscos e de bons vinhos, e com saúde e vigor para uns jogos de armas ou para uma bela amante pescada na rua, todos os dias uma diferente? Que tentação ver-se na Corte, com bom gibão de veludo e a gola de finas rendas, ouvindo os elogios dos seus pares, e recitando ou lendo o último poema escrito? Não eram tentações estas coisas, não, mas consolações piedosas da sua alma, a satisfação do que lhe fugira, a plenitude do que não tivera, a saciedade do que não bastara, a conquista do que jamais pudera ter sido seu. Pecado é sonhar com o futuro: desejar a mulher que se viu neste instante, querer com fúria o que é dado a outros, invejar furiosamente, como coisa que nos foi roubada, a felicidade alheia que está dançando, sem vergonha e sem respeito pela nossa miséria, diante dos nossos olhos que param a vê-la. Mas imaginar-se feliz no passado, com aquilo que fugidiamente o perpassara, e não fora nunca do tamanho da sua fome, não era tentação, não era um pecado, era, sim, a sua única riqueza, a sua única razão de esperar a morte, seco de amor, exangue de entusiasmos, descrente da pátria, destituído até da alegria de fazer versos. Os seus versos, agora, haviam-no abandonado. Haviam-se desfeito, como açúcar, no rio ininterrupto do pensamento, aonde antigamente flutuavam de súbito, como pedaços de ardente gelo, que um a um se atrelavam para dar um poema. E não tinha deles saudade alguma. Não fora nunca para si próprio que os escrevera. Para os outros, sim. Para que o ouvissem, para que o admirassem, para que o entendessem, para que vissem como tudo, na vida, tinha um sentido exacto que só ele era capaz de achar, uma arquitectura que não teria tido sem ele, uma beleza que não existe senão como a ideia que primeiro é pensada por quem é digno dela.
Empurrou a porta, e entrou. Contra o costume, a mãe não lhe apareceu, nem ele sentiu na casa ruído algum. Fechou a porta, foi até à mesa, e sentou-se na cadeira, encostando as muletas. Sentar-se era um alívio do cansaço, e uma nova tortura também. Mas a ausência da mãe, tão inabitual, tornou menos tortura a tortura de sentar-se ajeitando as partes inchadas e doloridas, acto que, com uma vergonha infinita, era obrigado a fazer diante dela, e que por isso não ajeitava bem, sentindo os olhos da velhinha fitos nele, horrorizados com a monstruosidade dos castigos reservados a quem se entrega aos pecados da carne, sem se manter puro como veio ao mundo. Ela, que, quando o marido voltava de uma viagem, só deixava que ele a beijasse depois de ter a certeza que não havia desembarcado em porto algum, desde muitos meses… Suspirando, sorriu para si mesmo. Na primeira viagem que fizera, ao embarcar-se para a Índia, ainda derrancado das orgias de noites consecutivas, destinadas a prevenir-se para tanto tempo de céu e mar e de conversa de homens, ele… Benzeu-se. Estas memórias eram tentações da carne. E nisso estava a diferença da poesia que escrevera na vida. Umas vezes escrevera na verdade para saber o que pensava. Mas outras vezes escrevera para possuir efectivamente, como, quando era moço, repetia de seguida o acto do amor, não porque desejasse, mas para sentir melhor que possuía, para ter a certeza de que possuía mesmo a marafona de que se esquecera durante a primeira vez. Agora, assim alquebrado e impotente, tudo o que pensava, se o escrevesse, lhe parecia que era só desta poesia que pecava contra o Santo Espírito, e que não era uma dádiva, uma oferta do seu corpo ao corpo em que entrava, mas uma rapina, uma avareza, uma maneira de devorar o próximo. E mesmo de tudo o que escrevera lhe parecia incerto que o tivesse sido abnegadamente, já que sempre ansiara pelo reconhecimento alheio, pelo triunfo, pela glória, pelos prémios, a ponto de contentar-se com o sorriso constrangido dos ignorantes a quem lia os poemas.
Levantou o olhar para a janela. No prédio fronteiro, viu o calafate sentado à mesa, que o observava amigavelmente por cima da escudela fumegante. Acenou-lhe de cabeça, e o outro fez com a mão um gesto largo, que terminou apontando o caldo numa oferta gentil. Correspondeu com um gesto como que de adeus, e desviou a vista. À varanda vieram encostar-se as duas crianças; não precisava de fitar Para saber. Nunca gostara de crianças, nunca pensara em tomar estado para tê-las suas. Talvez por isso mesmo é que tanto ou tudo da sua poesia ficara como aqueles filhos que não quisemos ter, e que depois se despegam de nós adivinhando um desapego de que nos arrependemos, mas que não deixa de ser um desapego mesmo arrependido. O amor para ele fora carne e espírito, tão carne, que nenhum espírito podia estar presente, e tão espírito, que nem toda a carne do mundo, usada dia e noite, chegava para contentá-lo. Até o fastio, que às vezes o afastava longamente de contactos carnais, era uma ardência insatisfeita, que se continha, suspensa e ameaçadora, à espera de esquecer que a carne era sempre igual, e os gestos do amor tão poucos que os sabia já de cor. Mas depois, ao fazê-los, era sempre, como na primeira vez, uma surpresa, uma ignorância curiosa, um receio tímido, uma insegurança doce, um pasmo juvenil, uma alegria nova, um encantamento frenético; era como na primeira iniciação, mas sem a perplexidade e a decepção de o amor não ser mais do que isso, quando a virtude do amor não está em ser mais do que é, mas em ser o prazer de não ser isso mesmo.
Novamente ergueu os olhos para a varanda fronteira. As crianças não estavam lá, e o homem, curvado para a escudela, comia o seu caldo. Aquele mistério da Encarnação, o frade hoje falara muito bem, explicando com eloquência o seu sentido. Mas o sentido da Encarnação não precisava ele que lho explicassem. Quem amara com a carne e com o pensamento como ele, quem escrevera do Amor como ele escrevera, e quem não gostara nunca de crianças, como ele, tinha da Encarnação uma experiência que o frade não tinha. Precisamente porque tudo se encarnara nele sem encarnar-se, e lhe devorara a própria carne, deixando-o aquele farrapo imundo que era agora, quem melhor sabia o que era a Encarnação? Ou, pelo menos, tanto quanto um homem pode sabê-lo? Sentir-se grávido de um poema, sentir-se fecundado por um relâmpago entrevisto, e ser um homem — é o mais que pode saber-se. Não o sabe a mulher que dá à luz, porque é delas dar à luz, às vezes sem ter amado. Não o sabe o homem que quer ter filhos, porque os pode fazer sem amor. Mas o poeta que praticou o amor até à destruição da carne, e escreveu poemas até que o espírito acha pouco a poesia, esse, sim, esse sabe o que Encarnação seja. Apenas, porém, o sabe. Mas não viveu a Encarnação, foi a Encarnação quem o viveu a ele. E é este o grande mistério, não o outro. E é a grande diferença entre um deus que se encarna, e o homem em quem a Encarnação se representa. Uma diferença que é, afinal, uma comédia, ou pode ser vista como uma comédia, porque todo o homem a quem isso aconteça é Anfitrião, um marido enganado pelo Júpiter que há nele.
Ficou vendo diante de si o palco iluminado, e as figuras declamando os versos. A porta rangeu, e os passinhos leves soaram atrás dele. A voz fininha e aguda começou a sua declamação desafinada.
— Esteve hoje cá o Padre Manuel à tua procura, e eu disse-lhe que hoje era dia de ires a São Domingos, e ele disse-me que não se tinha lembrado, e eu perguntei-lhe quando voltava, e ele respondeu que precisava perguntar-te do teu livro, mas não era pressa, voltava noutro dia, ou tu fosses procurá-lo amanhã ou depois. Que é que ele anda a fazer com o teu livro, sempre a perguntar-te coisas? Então um livro desses, que não é de coisas de Deus Nosso Senhor e da nossa santa religião, precisa que tu estejas sempre a explicar o que é isto e o que é aquilo, e a contar a tua vida, nem que ele fosse o teu evangelista? A Virgem Santíssima me perdoe, mas parece-me um grande pecado. E contar a vida às outras pessoas é um grande pecado da vaidade. A vida conta-se ao padre confessor, e faz-se a penitência que ele manda pelas nossas más palavras e obras, e pronto. E, à hora da morte, a gente conta o que ainda lembra ou fez entretanto, e o padre dá a absolvição, se fomos virtuosos e piedosos, e nunca faltámos aos nossos deveres para com Deus e a sua Igreja. Ah, veio também o criado do Senhor Rui Dias, do mando deste senhor, que tão teu amigo é, perguntar pela encomenda que te fez daquelas poesias del-rei David que Deus haja. E eu disse que tu ainda não acabaste e que logo acabas, e que tens trabalhado muito e até tens estudado com o Padre Manuel para que as palavras santas fiquem todas certas e nos seus lugares. E ele disse que o amo estava muito arreliado contigo, que havia mais que muitos meses que tinha feito a encomenda, e que tu não fazias nada, e que já tinha pago adiantado uma parte do trabalho. E eu disse que era verdade, que ele já tinha pago, mas que nestas coisas pagar adiantado alguma coisa é como dar o pano ao alfaiate, porque o alfaiate não pode fazer o gibão sem o pano, e tu não podias escrever sem comer. E disse-lhe que a tua tença estava atrasada e que não a pagavam, e que eu esperava muito da bondade do seu amo e do grande poder que lá tem no Paço que a tença fosse paga em dia, que bem a tinhas merecido de Sua Alteza pelos muitos serviços de teu pai que Deus tenha em descanso, e também pelos teus serviços, que se tinhas sido um rapaz sem juízo, e não tiveste sorte na vida, também eras um homem que escrevia livros, e sabias muitas coisas divinas e humanas, como o Senhor Padre Manuel me disse, e Frei Bartolomeu escreveu na licença que te deu…
— Frei Bartolomeu só disse que eu sabia muito de coisas humanas.
— Pois é. Porque saber de coisas divinas tu podias ter aprendido se tivesses estudado a valer, e tido juízo, que podias hoje até ser bispo e mais do que eles dois. Mas meteste-te com más mulheres e más companhias, e hoje é isso que se vê, e, em vez de seres tu a dar as licenças, és tu quem as vai pedir a eles. Se não fossem teus amigos e tu não lhes moesses a paciência, e não mostrasses como és um homem arrependido da má vida que teve, não ta davam, que isto de frades, Nossa Senhora me perdoe, se alguém me ouve. O teu pai é que se ria deles, e dizia que eram todos uns vadios, que só queriam comer e ter as mulheres dos outros. Abrenúncio, e por isso Deus o castigou com aquela desgraçada morte, que nem teve sepultura cristã. Mas tu podias ir procurar o Senhor Duque ou o Senhor D. Manuel, e lembrar-lhes que a tua tença está atrasada, e eles não há que não consigam, de tão grandes senhores que são, primos del-rei. Eu tive de sair para visitar a nossa comadre Joaquina que está outra vez com a sua dor e não tem ninguém que cuide dela, mas logo lhe disse que não podia demorar-me, porque hoje era dia de ires a São Domingos santificar a alma, que bem precisas, e logo voltavas com fome e querias a tua ceia, e ficavas aborrecido se eu não estivesse em casa quando chegasses, para te dar o caldo, e ela respondeu que não eras nenhuma criança que chorasse pelo peito da mãe, e eu disse-lhe que tu nunca tinhas chorado pelo peito da tua mãe, e é verdade também porque eu te dava logo de mamar mal tu abrias a boca para gritar. Mas que nunca choraste para mamar é a verdade, e só choravas depois, porque o meu leite era fraco e foi preciso trazer uma ama, e o teu pai queria que tu fosses criado com ama, porque não era da nossa condição que tu fosses criado ao peito de uma senhora como eu, esposa de um homem como ele, tudo gente de condição. Mas a condição que nós tínhamos era só o que ele ganhava, e Deus sabe como eu vivi depois que teu pai faltou e tu andavas lá por essas terras de gentios e de infiéis, por tanto tempo e eu sem saber se eras vivo ou morto, e só sabia quando chegavam as armadas e vinha alguém conhecido que me dava notícias tuas, e me dizia que tu tinhas ido para aqui e para ali, ou estavas não sei onde, que para mim todas aquelas Índias são o mesmo, e os nomes das terras são mesmo coisa do demónio, cruzes, de arrenegados para se entenderem. Muitas vezes eu pensava que me escrevias, mas tu nunca escrevias, e muitas pessoas me diziam que tu lá escrevias as cartas dos outros, que escrever bem tu sempre escreveste desde muito pequeno] mas punhas as coisas bonitas no papel para eles, e para mim nada. E eu ficava rezando a Sant’Ana e a Nossa Senhora e às vezes até mudava de santo para que nenhum se cansasse de me ouvir, sempre temendo que morresses nas guerras e nos naufrágios, ou dessas doenças que há lá, e a pensar que às vezes eu podia estar a rezar pela tua boa sorte e as rezas afinal servirem para te descontar os dias de Purgatório pelos teus pecados e leviandades, e o corpo que eu dei à luz estar comido dos peixes ou do gentio, sem sepultura cristã, como teu pobre pai que Deus haja e eu só soube tanto tempo depois. E a comadre Joaquina deu-me este pastel que aqui trago e que é de uma galinha que lhe deu a vizinha, ou uma meia galinha só, de que ela fez este pastel, e me disse que tinha outro e que te mandava este, mas queria que tu lhes escrevesses uma oração em verso a S. Crispim de que é muito devota, e eu disse que tu havias de escrever depois de comeres o pastel.
— Eu como o pastel, mas versos aos santos não faço.
— Deus meu, se alguém te ouve e pensa que tu não acreditas nos santos. A Santa Inquisição que nos livrou da maldade e da malícia dos inimigos da nossa Fé manda que se acredite nos santos, e eu bem sei que tu não acreditas, nunca te encomendas a eles, e é por pecado de orgulho, ao que me disse o Padre Manuel, quando eu lhe falei da minha aflição por tu não acreditares nos santos, e ele me respondeu que tu achas os santos pequenos de mais para ti, e não te contentas senão com Deus Nosso Senhor. Eu até fiquei arrepiada de pensar no perigo que é não ter um santo que nos proteja. Se não fossem o Senhor Duque e o Senhor D. Manuel e o Senhor Rui Dias e outros senhores assim, eu queria ver de que é que tu vivias, que el-rei nem saberia da tua existência. Deus me perdoe, mas não é que Deus não saiba de ti, porque ele sabe de todos nós e é um pai amantíssimo que não tira os olhos de nós. Mas está na sua divina majestade, ocupado em reger o Mundo, e nunca ninguém ganhou causas sem advogado. A mim a Senhora Sant’Ana nunca me desampara, eu nem sei o que seria de mim e de ti sem ela. Que este pastel é um milagre dela. Quando eu saí para visitar a comadre Joaquina, ia dizendo comigo que a Senhora Sant’Ana fizesse que eu não voltasse para casa com as mãos vazias e trouxesse algum petisco para o meu filho, e pedi mesmo um pastel de galinha, que era o mais certo, porque a comadre Joaquina sempre tem pastéis de galinha. E eu não prometi à Senhora Sant’Ana que tu farias o que a comadre pedisse, porque já te conheço, e não há contar contigo para coisa nenhuma que não seja comer o pastel. E por isso não faz mal que não faças os versos a S. Crispim, porque não foi promessa minha. A comadre é que disse que tu, se quisesses, podias fazer, que toda a gente dizia que eras muito bom dizedor, e que fazias logo os versos que te pediam. E eu respondi que isso seria dantes, porque agora tinhas uma encomenda muito boa, de grande rendimento, do Senhor Rui Dias, que nos fazia a honra de ser teu amigo, de pôr em verso os Salmos del-rei David que Deus haja, e que tu não escrevias nada, e até hoje o criado dele cá estivera a reclamar por causa do pagamento adiantado. Tu estás a dormir, tu não ouves o que eu digo? Come o teu caldo enquanto está quente e depois o pastel que é bem gostoso se for igual ao outro que a comadre tinha. Eu já ceei em casa dela, e estou sem apetite só de ver-te nesse estado, um rapaz tão forte e tão bonito como tu eras, que não havia moça que não se voltasse para te ver, nem homem que não se mordesse de inveja. E, quando o sol dava no teu cabelo, eu dizia comigo que o meu filho era como um rei com a coroa na cabeça, ou, Deus me perdoe, como um grande santo de resplendor dourado em dia de procissão. E ficava a ver-te ir pela rua abaixo, tão vaidoso que nem olhavas para trás, com a mão no punho da espada, e os passos tão firmes, Deus meu, que parecia que a terra era toda tua. Por essas e por outras é que as tuas desgraças começaram, com as arruaças e as brigas, e o mau feito, desgraça maior que todas, de acutilares o homem em Dia de Corpus Christi, aquele patife sem vergonha que te desgraçou e fez ir para a Índia e que merecia morrer em pecado, Deus me perdoe se sou eu quem peca. Está tão escuro já que vou acender a candeia. Mas o lume apagou-se e vou descer à vizinha a pedir-lhe lume. Deus Nosso Senhor tenha piedade de mim, velha e cansada, e com um filho homem, e sou eu quem tem de descer a escada para buscar o fogo que não há na minha casa. Abriu o olhar às trevas e ao silêncio. Conhecia tão bem os cantos da quadra, que era como se estivesse vendo a arca e o oratório com o raminho entalado, os quadrinhos de santos pendurados, a prateleira com os pratos em pé, a enxerga ao canto, onde ele dormia, a porta da alcova de sua mãe e a porta da cozinha. Via tudo com a mesma certeza e a mesma minúcia com que vira as naus do Gama navegando no mar, lá em baixo, vistas do Empíreo, com que vira Vénus abraçada a Júpiter e chorando, com que vira o Adamastor sair da nuvem grossa, com que vira o Veloso correndo pelo monte abaixo. Mas ele acutilara o Borges, porquê? Para que a vida lhe mudasse de rumo, para que ela tomasse um rumo de fatalidade, para que as índias lhe fossem impostas pela sua estrela, para que a sua estrela existisse. Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente. Perdição. Amor somente. Como a poesia é falsa e verdadeira. Como ela diz não dizendo, e é não dizendo que diz. Como da nossa alma não sabemos nada antes de escrevê-la, e como não é dela que sabemos depois de ter escrito. A perdição procura-se, como um homem se despe para banhar–se no mar, a modos que Leandro atravessando o Helesponto. E o amor somente bastaria, como o momento em que tudo se esquece, tudo desaparece, tudo se evapora, ao calor que abrasa e que só dura um instante mas um instante em que o tempo se suspende, se petrifica num espaço e numa forma, e todo o verdadeiro espaço foge velozmente, correndo pelos tempos fora até que é ele o tempo que se suspendeu. Apenas como isso, porque é uma imagem do supremo amor, aquele que existe além do tempo e do espaço, além das esferas, além daquele poço terrível. Além ou aquém? E se esse amor não fosse mais do que uma imagem, uma essência última da sua própria vida?
Estranhamente, no silêncio e no fluxo dos pensamentos, o poço abriu-se insólito e translúcido na sua profundeza negra, com as pequeninas formas flutuantes, e uma subia, subia, tomando cor e feições de uma medusa terrífica. Mas a porta rangeu, e uma vaga claridade fez emergirem os objectos, como formas planas, sem sombras na luz fraca. Os passinhos soaram leves.
— A vizinha diz que, no intervalo antes de tu chegares, quando eu já tinha saído, veio cá também aquele doutor que te pediu as poesias para aquele senhor que não tem nome cristão, o Senhor D. Leonis. Hoje veio cá todo o mundo, até parece o Dia de Juízo. E ele que vai de viagem ficou com muita pena de não te ver, e disse-lhe que te deixava muitas lembranças e que queria muito que tu melhorasses de saúde, e ela respondeu que tu estavas mesmo muito acabado, e ele disse que tu não acabavas nunca, porque tu eras um grande poeta, um dos maiores que já tinha havido no mundo, assim uma coisa como nem sei quem ele disse. E ela riu-se muito, e disse-lhe que o Senhor Padre Manuel também dizia o mesmo, e que era tudo bondade deles, porque isso de poesias nunca davam nada a ninguém. Só que a ti deram a tença, mas foi por causa do livro impresso e pelos muitos serviços a el-rei que o teu pai prestou em sua pobre vida, e tu também. E ele respondeu que era sempre assim que as coisas aconteciam, que a glória só vinha muito tarde, e que os prémios, quando eram dados, nunca vinham pelo que a gente merecia mais. Eu acho que isto é descrer da infinita bondade de Deus Nosso Senhor, e não é muito respeitoso para com Sua Alteza que te deu a tença. O que é preciso é que tu vás ao Paço reclamar que não te pagam a tempo e horas, que estou cansada de me arrastar até lá, e sempre me perguntam porque tu não vais, e o outro dia o tesoureiro até me disse que era tudo história, que não ias porque tinhas morrido, e eu, se queria receber, tinha de pedir a el-rei a tença em meu nome. E tu não vais porque tens esse pecado de orgulho, e não queres que te vejam de muletas, a pedir que te paguem o que te devem. Eu é que estou cansada, e vou-me deitar que não posso mais comigo. Tem cuidado com a candeia, não gastes muito azeite, que está pela hora da morte, e bem sabes que tenho medo dos fogos e podes adormecer aí na mesa, não era a primeira vez, e a candeia pegar fogo à tua papelada, e à casa, Deus nos acuda e Santa Bárbara nos proteja. Se voltar cá o criado do Senhor Rui Dias, o que é que lhe digo? Nem me respondes, estás a cair de sono em cima da mesa. Tem cuidado com a candeia… Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia fazia, como uma auréola à volta de um centro ardente. Se o criado de Rui Dias lhe aparecesse, ou ele mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e namorado, querido e estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e damas, com que o calor poético se aumentava, e que agora não tinha espírito nem contentamento para nada… Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como uma via sacra da vida, 73 quintilhas como…
Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma tremura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele. Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o abandonara, receosa dos seus olhos de alma penetrantes que viam o fundo das coisas. O poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou a escrever… Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei… Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei…
E ficou escrevendo pela noite adiante.


Araraquara, 27 de Março de 1964.

A democratização dos textos primeiros da cultura portuguesa: O acontecimento editorial do ano



Com a devida vénia transcrevo o artigo de Beja Santos que saiu no programa "Vida Alternativa" da Rádio Zero:


Esperei até meados de Dezembro para avaliar a importância dos projetos editoriais mais relevantes. De tudo quanto apareceu no mercado livreiro nada se aproxima das “Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa”, com direção de José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, edição do Círculo de Leitores, início em 2017, projeto de fôlego, constituído por 80 obras em 30 volumes. O que aqui se dá à estampa são textos e documentos que revelam o pioneirismo em Portugal nos domínios da arte, ciências exatas e ciências humanas, na literatura, na música e noutros domínios do conhecimento. Falamos do mesmo Círculo de Leitores que anos atrás publicou pela primeira vez em Portugal todas as obras do padre António Vieira, empreendimento grandioso que estranhamente nem uma menção ou prémio recebeu. Este projeto envolveu um grande exército, 174 elementos entre investigadores, coordenadores dos volumes, consultores nacionais e internacionais, envolveu universidades nacionais e internacionais, centros de investigação e academias. Um labor sem precedentes e com resultados surpreendentes: os textos de todas as obras foram transcritos, fixados e criteriosamente atualizados a partir das suas versões primeiras.
Trinta volumes com uma seleção dos primeiros textos em português, de história, heráldica edificação moral e crónica biográfica, viagens e descobrimento, ética social e política, geografia e ecologia, e muitíssimo mais. É um registo admirável de 800 anos de história comum, estão aqui os fundamentos que podem permitir uma maior amplitude para o conhecimento da cultura portuguesa, ao alcance do chamado leitor médio., que em circunstância alguma teria acesso a estes textos primigénios. A propósito deste projeto, Carlos Fiolhais esclareceu numa entrevista o que há de transcendente nesta articulação entre a produção cultural e a ciência na história de Portugal: “Os Descobrimentos Portugueses dos séculos XV e XVI constituíram um prelúdio da Revolução Científica, que se deu no século XVII, com Galileu, Newton e outros grandes nomes. No empreendimento marítimo dos portugueses, que pode ser considerado uma primeira globalização, estavam já presentes a observação e a experiência, fundadas na curiosidade, que haveriam de presidir à Revolução Científica. Os portugueses encontraram novas terras, novas espécies minerais, zoológicas e botânicas e novas gentes, com culturas assaz distintas, e souberam reportar o que viram e o que viveram. Alguns instrumentos científicos introduzidos por cientistas seiscentistas, como o telescópio e o relógio mecânico, foram introduzidos na Índia, na China e no Japão pelos navegadores lusos. O mesmo se passou com os conhecimentos matemáticos, astronómicos e físicos do Ocidente, que foram nalguns casos traduzidos para línguas orientais. Mais tardem, no Iluminismo, ocorreu em Portugal uma ressuscitação da Ciência. E foi nessa altura que foram escritos em português os primeiros tratados de anatomia, de física, de química e de engenharia, que não estavam muito desfasados de obras similares que então surgiram noutras línguas nacionais”. O meso investigador dirá mais adiante que “a nossa preocupação foi mesmo oferecer os originais, pedindo a especialistas uma introdução integradora e as notas explicativas necessárias. Cada época histórica tem direito a uma leitura renovada dos textos fundadores da sua cultura e estava na hora de dar aos portugueses e a outros interessados um acesso fácil a esses textos, de modo a que pudessem fazer um juízo atualizado”.
No prefácio ao primeiro livro destas obras pioneiras, e dedicado a cantigas trovadorescas, prosa literária e documentação instrumental, os coordenadores lembram a dificuldade que existe em encontrar nas livrarias edições contemporâneas das obras dos sábios do Renascimento português, que se traduzia numa perda de autoestima cultural, classificado por muitos como o “atraso português”. E esclarece a organização dos 30 volumes, para aguçar o apetite aos leitores. E não se esquecem de anunciar a contingência deste projeto, a seleção não é definitiva nem completa, nele não entraram mais obras das disciplinas aqui representadas, e deixam uma mensagem para um projeto futuro: “Seria interessante fazer uma outra série com obras pioneiras de boa parte dos séculos XIX e XX, de modo a abarcar as áreas do saber que emergiram nessa época, nomeadamente as ciências naturais, a sociologia, a psicologia, a antropologia, a ciências políticas, entre outras”.
Falando dos primeiros textos em português, constata-se a preocupação em enquadrar o leitor quanto à seleção dos textos, situando a lírica, as suas origens, os poetas, as cantigas de diferentes tipos e temas, a prosa literária e os testemunhos escritos que têm a ver com compras-vendas, permutas, doações, testamentos, arrendamentos, e algo mais. O leitor será surpreendido pela beleza das cantigas profanas, pelas cantigas de Santa Maria, pela prosa literária e por um conjunto de documentos que registam a matriz da língua. Lê-se com emoção a cantiga de amigo “Eu, velida, não dormia” onde aparece uma expressão de todo enigmática “Edoi lelia doura”, que Herberto Helder escolheu para título de uma antologia de poesia portuguesa por ele organizada, entende-se que essa expressão era proveniente do árabe e significaria “hoje é a minha vez”. E é bem português o testamento de D. Afonso II, com data de 1214, que assim começa: “Eno nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e salvo, temente o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier reina dona Urraca, e de meus filios, e de meus vassalos e de todo meu reino, fiz mia manda per que, depois mia morte, mia molier e meus filios e meus vassalos e meu reino e todas aquelas cosas que Deus me deu en poder sten en paz e en folgancia”.
Há muitas décadas atrás, havia um recurso para suprir, com seríssimas lacunas, estas obras pioneiras, líamos alguns dos Clássicos da Sá da Costa, de saudosa memória. Este projeto é do maior alento, é um ambicioso grande arco sobre a nossa língua e a vastidão dos nossos conhecimentos.
Para um acontecimento editorial desta grandeza, o nosso agradecimento é coisa menor, um importante é chegar à biblioteca de todos nós.

Beja Santos, December 15th, 2017









in http://dererummundi.blogspot.pt/


domingo, 25 de junho de 2017

A Verdadeira Origem da crise financeira e o futuro da economia global



Neste livro excepcional, o ex-ministro grego das Finanças no governo do Syriza, Yanis Varoufakis, um dos maiores expoentes antiausteridade na Europa, destrói o mito de que a regulamentação dos bancos é ruim para a saúde económica. Com rigor e profundidade, ele demonstra como a ganância global do sector financeiro foi a principal causa da última crise económica. Para ilustrar, Varoufakis recorre à imagem mitológica do Minotauro: uma monstruosidade financeira que não deveria existir e, por tal motivo, vive reclusa em um labirinto, exigindo periódicos sacrifícios dos humanos. Após a bulimia que causou o colapso de 2008 – uma crise pior que a Grande Depressão de 1929 e mais dramática internacionalmente que a crise do petróleo nos anos 1970 –, a besta se reergue levantando junto novas dúvidas: como os principais responsáveis pela crise saíram ainda mais poderosos? O que levou os Estados a torrarem suas reservas e comprometerem seus orçamentos para salvá-los? Varoufakis explica com clareza a falência deste complexo sistema que nos jogou na presente crise. E mais do que identificar o caminho deste processo kafkiano, aponta as saídas para reintroduzir a racionalidade numa ordem económica altamente irracional, jogando luzes neste labirinto histórico no qual se encontram não apenas os gregos, mas também todo mundo, inclusive os brasileiros.

Os economistas heterodoxos estão em moda. Primeiro o Pikkety, sobre a desigualdade, e agora é o Varoufakis, com um relato alternativo sobre a crise económica. – El País

Um escritor lúcido e cativante que faz críticas astutas ao modelo económico que causou o colapso financeiro e a amarga recessão mundial. Seu argumento tem uma envergadura ambiciosa. – The Times


Um livro espirituoso. O Minotauro Global é uma besta económica mantida enjaulada só pela constante movimentação mundial de dinheiro via Wall Street. – The New Yorker


Um ciclo económico está chegando ao fim. Ele começou no início dos anos 1970 com o nascimento do que Varoufakis chamou de “Minotauro Global”, o monstro motor que fez a economia mundial funcionar entre o começo dos anos 1980 até 2008. - Slavoj Zizek


O livro é uma daquelas publicações raríssimas que podemos dizer ser urgente, oportuna e absolutamente necessária. - Terry Eagleton



Sobre o autor
Yanis Varoufakis é um economista académico e blogueiro,  greco-australiano, nascido em 24 de março de 1961 em Atenas, na Grécia.
Realizou seus estudos superiores nas universidades de Essex e Birmingham, no Reino Unido, entre 1978 e 1987, mantendo em paralelo ativa militância política. Lecionou em importantes instituições de ensino superior britânicas, destacando-se nas áreas de Economia Política e Teoria dos Jogos, até se radicar na Austrália, em 1987, onde obteve cidadania.
 Retornou à Grécia em 2000. Tornou-se professor da Universidade de Atenas e ativo membro da esquerda do Partido Socialista Pan-helénico (Pasok), com o qual rompeu devido à guinada ideológica da agremiação que resultou no desastroso governo do primeiro-ministro Georgios Papandreu. Com o estouro da crise económica global, em 2008, Varoufakis passou a ser uma das vozes mais firmes contra as políticas de austeridade. No  seu blog, intitulado Thoughts for the post-2008 world (hospedado no endereço yanisvaroufakis.eu), criticou ferozmente as medidas governamentais que puniram populações mais carentes.
 Filiou-se na Coligação da Esquerda Radical (Syriza), colaborando com os esforços contrários às medidas de austeridade que foram particularmente perversas na Grécia.
No início de 2015, foi eleito membro do parlamento grego e logo convidado pelo PM Alexis Tsipras para ocupar o cargo de ministro das Finanças, enquanto seu país vivia às voltas com a asfixia económica promovida pela troika – como é conhecido o grupo formado pela Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu.
Sem o apoio do resto do governo para enfrentar as imposições da troika, deixou o governo na esteira da vitória do “não” na famosa consulta popular realizada em 5 de julho de 2015, quando os gregos se recusaram a aprofundar as medidas de austeridade impostas pelas autoridades europeias.
Nas eleições antecipadas de setembro de 2015, resolveu não integrar o seu antigo partido e apoiou deputados da recém-criada Unidade Popular (um racha anti austeridade do Syriza).
Convicto de que a solução para a crise europeia não será resolvida isoladamente por cada país, Varoufakis empenhou-se nos últimos meses na construção do Democracy in Europe Movement 2025, o DiEM (diem25.org/), uma iniciativa pan-europeia, horizontal e em rede que visa democratizar o continente ao longo dos próximos dez anos, lutando ao lado dos movimentos sociais contra a extrema-direita nacionalista e a tecnocracia da atual União Europeia.

O Minotauro Global – A Verdadeira Origem Da Crise Financeira E O Futuro Da Economia Global, de Yánis Varoufákis.


Ver artigo sobre esta obra em http://www.outraspalavras.net/outroslivros/para-entender-o-coracao-da-crise/


                        

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Hanna Arendt explica Trump



Por que se recorre a Hannah Arendt para explicar Trump e não só ele. O mundo esta prestes a reproduzir os processos sociais magistralmente analisados por Hanna Arendt no clássico “As origens do totalitarismo”.
O clássico de George Orwell “1984” não é o único que está celebrando o retorno: o ensaio filosófico “As origens do totalitarismo” também vem chamando atenção. Entenda por que a autora é tão relevante.
De origem judaica, Hannah Arendt (1906-1975) nasceu na Alemanha e deixou o país quando Adolf Hitler assumiu o poder em 1933. Ela passou um período como refugiada apátrida na França e foi deportada para um campo de internamento sob o regime Vichy. Em 1941, Arendt emigrou para os EUA, assumindo mais tarde a cidadania americana.
Tendo vivenciado de perto o quase colapso de uma civilização avançada, ela também se tornou uma das primeiras teóricas políticas a analisar como o totalitarismo pôde se desenvolver no início do século 20. As raízes do nazismo e do stalinismo estão descritas em seu primeiro grande livro, As origens do totalitarismo, publicado originalmente em inglês em 1951.
Desde então, o livro se tornou leitura obrigatória para muitos estudantes, e agora a densa obra política de mais de 500 páginas se tornou um best-seller. Ele tem voado das prateleiras americanas desde que Donald Trump subiu ao poder no país. Esses novos fãs de Arendt estão, presumivelmente, tentando entender para onde pode levar a presidência do republicano.
“Na compreensão de Hannah Arendt, Trump não é um totalitário; ele incorpora o que ela chama de ‘elementos’ do totalitarismo”, explicou recentemente à DW Roger Berkowitz, professor e chefe do Centro Hannah Arendt de Política e Humanidade no Bard College em Nova York.
Berkowitz disse, no entanto, que fortes sinais de alerta não devem ser ignorados: “Arendt acreditava que um dos elementos centrais do totalitarismo é que ele é baseado num movimento (…) e Trump afirmou explicitamente que seria o porta-voz de um movimento. Essa é uma posição muito perigosa para um político.”
Soluções fáceis em tempos de ansiedade mundial
A análise de Arendt se concentra sobre os acontecimentos do período em que viveu. Embora as suas observações não possam explicar, obviamente, tudo sobre os complexos desenvolvimentos políticos de hoje, muitas delas ainda são bastante reveladoras: o populismo de direita a se espalhar pela Europa e EUA é uma reminiscência, em diferentes formas, da situação nos anos 1920 e 1930 que permitiu que nazistas e comunistas subissem ao poder.
Os livros de Arendt proporcionam uma visão sobre os mecanismos que levam tantas pessoas a aceitar prontamente mentiras, em tempos de incerteza global. Enquanto grandes jornais, como o New York Times e Washington Post, estão resgatando os escritos da filósofa, os usuários nas redes sociais compartilham amplamente frases como esta de As origens do totalitarismo:
“Num mundo incompreensível e sempre em mutação, as massas chegariam a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditariam em tudo e nada, pensariam que tudo seria possível e nada seria verdade.”
Narrativas simplificadas, repetidas
Em tal contexto, narrativas simplificadas, repetidas – e falsas –, que põem a culpa em bodes expiatórios e oferecem soluções fáceis, têm preferência sobre análises mais profundas que levam a opiniões informadas. Essa abordagem foi aplicada por líderes totalitários como Hitler, escreveu Arendt.
Neste sentido, não é nenhuma novidade a estratégia de Trump de colocar a culpa generalizada em muçulmanos e mexicanos pelo terrorismo, crime ou desemprego, e reivindicar um veto de viagem ou um muro como uma solução fácil.
Segundo Arendt, no início do século 20, os líderes totalitários basearam a sua propaganda nesta suposição explicitada em As origens do totalitarismo: “Pode-se fazer com que as pessoas acreditem em determinado dia nas mais fantásticas declarações, e esperar que, no dia seguinte, elas se refugiem no cinismo ao receber provas irrefutáveis da falsidade dessas afirmações; em vez de abandonar os líderes que mentiram para elas, as pessoas iriam clamar que sabiam o tempo todo que a declaração era uma mentira e admirariam os líderes por sua esperteza tática superior.”
Agora, Trump eleva essa abordagem a novos extremos. Mesmo que nunca tenha havido tantas pessoas dedicadas a expor as mentiras do novo presidente americano, a astuta tática presidencial é fazer com que tais relatos sejam desacreditados como vindos da mídia tradicional e “desonesta”. Atualmente, as crenças do movimento liderado pelo magnata são apoiadas por fontes alternativas amplamente disponíveis.
Em 1974, Hannah Arendt declarou em entrevista: “Se todo mundo sempre mentir para você, a consequência não é que você vai acreditar em mentiras, mas sobretudo que ninguém passe a acreditar mais em nada.”
A “banalidade do mal”
Num relato de Arendt, de 1961, sobre o julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto, ela ganhou fama com a expressão “a banalidade do mal” ao descrever o seu ponto de vista que a maldade poderia não ser algo tão radical quanto se espera.
Em seu livro Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, Arendt explica como crimes foram cometidos por pessoas que obedeciam a ordens cegamente, para estar em conformidade com as massas. “Há uma estranha interdependência entre a irreflexão e o mal”, escreveu a filósofa em seu clássico.
A definição de irreflexão elaborada num primeiro trabalho publicado em 1958, A condição humana, poderia muito bem ter sido escrita para descrever as ordens executivas assinadas apressadamente por Trump, como também os seus esforços para justificá-las: “Irreflexão – a imprudência negligente ou desesperançada confusão ou repetição complacente de ‘verdades’ que se tornaram triviais e vãs – parece ser uma das características mais notáveis de nosso tempo.”
Desobediência civil
Claro, tais citações fora de seu contexto podem ser fáceis e confortáveis de compartilhar online, mas elas não refletem a totalidade das ideias de Arendt. Da mesma forma, aqueles que quiserem encontrar todas as respostas em As origens do totalitarismo estão fadados a se decepcionar.
Não foi Arendt quem escolheu o título, mas seu editor. Segundo Berkowitz, ela acreditava que o mundo era complexo e confuso demais para se identificar as raízes do totalitarismo.
Ao revisitar os escritos de Arendt, tentando impossivelmente prever se seremos tomados por novas formas de totalitarismo no futuro, pode-se encontrar consolo em outras observações da filósofa: ela considerava a desobediência civil uma parte essencial do sistema político americano – e os fortes movimentos de protesto atualmente no país demonstram isso novamente. Como na famosa frase da escritora: “Ninguém tem o direito de obedecer.”
in http://www.revistaprosaversoearte.com/por-que-se-recorre-hannah-arendt-para-explicar-trump/

sábado, 6 de agosto de 2016

O Islão e o Ocidente - A grande discórdia



O ataque ao semanário Charlie Hebdo, em 7 de Janeiro, moveu e comoveu mais os europeus do que as mulheres escravizadas ou massacradas do Boko Haram na Nigéria, do que os egípcios coptas decapitados ritualmente, do que os cristãos crucificados às centenas no Iraque e na Síria.
De onde vem toda esta desalmada violência, esta orgia de sangue e exibicionismo, a lembrar cenas da Antiguidade, limites da perversidade humana?
Quem são os seus autores? Em que acreditam, o que querem e a que reagem? Alguém os comanda?
De que fundas histórias e raízes vêm tão complexas divisões e seitas? Onde está a realidade e onde está o mito? Onde está a verdade e onde está o cliché?


Islão e o Ocidente - A Grande Discórdia

Autor: Jaime Nogueira Pinto

Editora Dom Quixote

quinta-feira, 7 de julho de 2016

O confronto do olhar



Quando peguei no livro O CONFRONTO DO OLHAR1 senti-me desde logo motivada a lê-lo, uma vez que o subtítulo – o encontro dos povos na época das navegações portuguesas - deixava antever uma matéria particularmente interessante no âmbito do expansionismo marítimo do nosso país. De facto, muito para além de interesses religiosos, económicos e políticos, houve o interesse pelas gentes, pelo outro, pela novidade que o outro constituía, fosse pela fisionomia, pelos trajes, língua, rituais, alimentação, entre outros.
A descoberta dos outros era, também, a descoberta de si mesmos, pois, se há um mundo que “descobre” há outro que é “descoberto”.
Os autores deste livro, de uma forma muito interessante, levam-nos nesta viagem de descoberta das cores, sons e cheiros, ao encontro dos povos com os quais os portugueses contactaram ao longo da sua odisseia marítima quinhentista: africanos, asiáticos e ameríndios.  Numa escrita rigorosa, sob o ponto de vista histórico, articulam magnificamente os seus textos explicativos com excertos de grandes obras históricas, por exemplo, a “Carta” de Pêro Vaz de Caminha, e outro documentos,  fazendo-o de uma forma empolgante, despretensiosa  e com sentido crítico.
Levam-nos até lá e integram-nos nesse encontro. Olhamos e somos olhados. Retratamos e percepcionamos  toda uma realidade cultural e civilizacional diferente da nossa, enriquecedora, gratificante, ás vezes  assustadora, sobretudo quando estamos perante determinadas práticas, como por exemplo, a antropofagia, rituais religiosos ou outras. Como referem os autores, o que conta é o Homem,  como se soubéssemos  o que é o Homem, justamente num momento como o que vivemos, de uma sociedade profundamente desumanizada.  Consideram que esse encontro foi, por isso,  marcado por uma certa ambiguidade, uma vez que a alteridade humana é simultaneamente revelada e recusada.
Para quem gosta de História mas, sobretudo, para quem gosta de esclarecer dúvidas sobre particularidades daquele encontro de povos e de culturas, que  os livros nem sempre revelam ou  explicam, recomendo  este livro.

Alguns excertos do mesmo:

- “(…) a imagem do Africano, e particularmente do negro (…) enquadra-se (…) na visão do ocidente tardo-medieval coevo, em particular na iconografia. É marcada pela permanência de estereótipos (…) associados à cor negra e ao Negro – demónio negro (…)”.
- “(…) os povos africanos convidaram os portugueses para uma refeição. Acto que naquelas paragens significa bom acolhimento e amizade. Quando os nautas de Vasco da Gama desembarcaram e viram a comida, recusaram-na, o que originou um conflito (…)”.
- Sobre o encontro com o índio brasileiro:
 “Morto o triste levam-no a uma fogueira (…)”.Citação da obra cit. do Pe. Fernão Cardim. “(…) Algum braço ou perna ou outro qualquer pedaço de carne, costumam assar no forno e tê-lo guardado alguns meses, para depois, quando o quiserem comer, fazerem novas festas (…) renovar outra vez o gosto (…) como no dia em que o mataram (…)”. Citação da obra cit. de Pêro de Magalhães de Gândavo
 “Os buracos nos beiços, as tatuagens, eram a sua lei escrita – uma lei da igualdade. (…) A lei escrita sobre o corpo era uma recordação inesquecível – não terás o desejo de poder, não terás o desejo de submissão (…) estas marcas transformam-se na memória da igualdade”.
- “As boas mulheres são muito veneradas de seus maridos. Os maridos são mandados por elas”. (referência às mulheres japonesas).

           
Maria Nazaré Oliveira


1O Confronto do Olhar (1991) de Luís de Albuquerque, António L. Ferronha, José da S. Horta e Rui Loureiro, ed. Caminho.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Palavras de Guerra Junqueiro em 1896



"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta (…)
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro (…)."

Guerra Junqueiro, A Pátria, 1896.