"Como um
presente de Natal, um texto lindíssimo de Jorge de Sena", assim escreveu Diana Andringa na sua pg de Facebook.
Vou partilhá-lo aqui no meu blogue. É fantástico!
Super
Flumina Babylonis
A ascensão
da estreita escada escura, e tão a pino, com os degraus muito altos e cambaios,
era, sempre que voltava a casa, uma tortura. À força de equilíbrios, meio
encostado à parede, cuja cal já se esvaíra havia muito e até nas suas costas, e
apoiando em viés uma das muletas no extremo oposto do degrau de cima, ia
subindo cuidadosamente, num resfolegar de raiva pela lentidão. Toda a unção
adquirida na conversa com os frades de S. Domingos, a cujas prelecções
regularmente assistia, ficando depois a discretear com eles, se perdia naquele
regresso a casa, ao fim da tarde, e mal se recompunha no repouso à janela,
sentado no banquinho baixo, comido o caldo, e ruminando memórias e tristezas,
enquanto a velha mãe prosseguia intermináveis arrumos pontuados de começos de
conversa, a que respondia com sorrisos e distraídos monossílabos ou com frases
secas em que ripostava mais a si próprio que a ela mesma. Às vezes, ela
insistia, repetindo um comentário, por uma resposta sua. Mas mesmo essa
insistência não significava comunicação efectiva: ela apenas pretendia
tranquilizar a própria consciência e o seu dó do filho envelhecido e doente,
que a vida destruíra, com algumas palavras que lhe dirigisse, simulando uma
conversa que não o deixasse entregue, perigosamente, aos solitários
pensamentos, onde é sabido que o Inimigo especialmente se insinua. E não era
dos pensamentos que ele tinha medo, mas dos vazios cada vez maiores que, entre
os pensamentos, se faziam. Quando ela lhe falava, e sobretudo quando ela
insistia, precisava não se deixar distrair pelas palavras que ouvia: ou logo,
no fio interrompido das ideias que continuamente deslizavam como um rio
revolto, se abria um vácuo tenebroso, um vórtice sombrio em que flutuavam
farrapos de versos e de coisas vistas, e, mais no fundo, como que uma pequenina
porta iluminada, ou um vidro posto sobre estranhas águas em que nadavam
esquisitos seres, e que parecia um olho fito nele, pestanejando ou palpitando,
não sabia bem, talvez que, sim, nem mesmo um olho, mas uma transparência marinha
como os reflexos das ondas ao luar. A pequenina porta, que lhe fazia vertigens,
nem sempre se mostrava. Na maior parte das vezes não havia mais que o poço em
que se debruçava, ansioso de que a portinha se abrisse e tremente até ao
arrepio pela frialdade que dela vinha. Fechando os olhos, cerrando-os com
bastante força, conseguia então afugentar aquelas visões» ou aquela visão,
sempre a mesma, que sonhava acordado. Porque dos sonhos tinha ódio. Pensar,
devanear, lembrar, imaginar, mesmo supor como tudo poderia ter sido numa vida
triunfante e num outro mundo, não era sonho, mas a certeza de que existia, de
que as coisas se arrumavam por sua vontade, que a ordem delas e do Mundo era um
desconcerto que ele organizava mentalmente. Quando dormia, não sonhava nunca.
Não eram sonhos as coisas que então via, mas a continuação do mesmo poder e da
mesma certeza, ou então tentações do demónio, como diziam os padres. Mas as
tentações ele conhecia bem.. Não eram tentações da sua alma que Deus não
deixaria que se perdesse nunca, a não ser naquele vórtice estranho onde parecia
que Ele não penetrava. Como tentações? Que tentação era ter nos braços uma
mulher que lhe escapara? Que tentação era matar, dormindo, um inimigo poderoso
e inacessível? Que tentação era ver-se feliz num palácio, rico, respeitado,
rodeado de servos e de admiradores, com uma mesa farta de bons petiscos e de
bons vinhos, e com saúde e vigor para uns jogos de armas ou para uma bela
amante pescada na rua, todos os dias uma diferente? Que tentação ver-se na
Corte, com bom gibão de veludo e a gola de finas rendas, ouvindo os elogios dos
seus pares, e recitando ou lendo o último poema escrito? Não eram tentações
estas coisas, não, mas consolações piedosas da sua alma, a satisfação do que
lhe fugira, a plenitude do que não tivera, a saciedade do que não bastara, a
conquista do que jamais pudera ter sido seu. Pecado é sonhar com o futuro:
desejar a mulher que se viu neste instante, querer com fúria o que é dado a
outros, invejar furiosamente, como coisa que nos foi roubada, a felicidade
alheia que está dançando, sem vergonha e sem respeito pela nossa miséria,
diante dos nossos olhos que param a vê-la. Mas imaginar-se feliz no passado,
com aquilo que fugidiamente o perpassara, e não fora nunca do tamanho da sua
fome, não era tentação, não era um pecado, era, sim, a sua única riqueza, a sua
única razão de esperar a morte, seco de amor, exangue de entusiasmos, descrente
da pátria, destituído até da alegria de fazer versos. Os seus versos, agora,
haviam-no abandonado. Haviam-se desfeito, como açúcar, no rio ininterrupto do
pensamento, aonde antigamente flutuavam de súbito, como pedaços de ardente
gelo, que um a um se atrelavam para dar um poema. E não tinha deles saudade
alguma. Não fora nunca para si próprio que os escrevera. Para os outros, sim.
Para que o ouvissem, para que o admirassem, para que o entendessem, para que
vissem como tudo, na vida, tinha um sentido exacto que só ele era capaz de
achar, uma arquitectura que não teria tido sem ele, uma beleza que não existe
senão como a ideia que primeiro é pensada por quem é digno dela.
Empurrou a
porta, e entrou. Contra o costume, a mãe não lhe apareceu, nem ele sentiu na
casa ruído algum. Fechou a porta, foi até à mesa, e sentou-se na cadeira,
encostando as muletas. Sentar-se era um alívio do cansaço, e uma nova tortura
também. Mas a ausência da mãe, tão inabitual, tornou menos tortura a tortura de
sentar-se ajeitando as partes inchadas e doloridas, acto que, com uma vergonha
infinita, era obrigado a fazer diante dela, e que por isso não ajeitava bem,
sentindo os olhos da velhinha fitos nele, horrorizados com a monstruosidade dos
castigos reservados a quem se entrega aos pecados da carne, sem se manter puro
como veio ao mundo. Ela, que, quando o marido voltava de uma viagem, só deixava
que ele a beijasse depois de ter a certeza que não havia desembarcado em porto
algum, desde muitos meses… Suspirando, sorriu para si mesmo. Na primeira viagem
que fizera, ao embarcar-se para a Índia, ainda derrancado das orgias de noites
consecutivas, destinadas a prevenir-se para tanto tempo de céu e mar e de
conversa de homens, ele… Benzeu-se. Estas memórias eram tentações da carne. E
nisso estava a diferença da poesia que escrevera na vida. Umas vezes escrevera
na verdade para saber o que pensava. Mas outras vezes escrevera para possuir
efectivamente, como, quando era moço, repetia de seguida o acto do amor, não
porque desejasse, mas para sentir melhor que possuía, para ter a certeza de que
possuía mesmo a marafona de que se esquecera durante a primeira vez. Agora,
assim alquebrado e impotente, tudo o que pensava, se o escrevesse, lhe parecia
que era só desta poesia que pecava contra o Santo Espírito, e que não era uma
dádiva, uma oferta do seu corpo ao corpo em que entrava, mas uma rapina, uma
avareza, uma maneira de devorar o próximo. E mesmo de tudo o que escrevera lhe
parecia incerto que o tivesse sido abnegadamente, já que sempre ansiara pelo
reconhecimento alheio, pelo triunfo, pela glória, pelos prémios, a ponto de
contentar-se com o sorriso constrangido dos ignorantes a quem lia os poemas.
Levantou o
olhar para a janela. No prédio fronteiro, viu o calafate sentado à mesa, que o
observava amigavelmente por cima da escudela fumegante. Acenou-lhe de cabeça, e
o outro fez com a mão um gesto largo, que terminou apontando o caldo numa
oferta gentil. Correspondeu com um gesto como que de adeus, e desviou a vista.
À varanda vieram encostar-se as duas crianças; não precisava de fitar Para
saber. Nunca gostara de crianças, nunca pensara em tomar estado para tê-las
suas. Talvez por isso mesmo é que tanto ou tudo da sua poesia ficara como
aqueles filhos que não quisemos ter, e que depois se despegam de nós
adivinhando um desapego de que nos arrependemos, mas que não deixa de ser um
desapego mesmo arrependido. O amor para ele fora carne e espírito, tão carne,
que nenhum espírito podia estar presente, e tão espírito, que nem toda a carne
do mundo, usada dia e noite, chegava para contentá-lo. Até o fastio, que às
vezes o afastava longamente de contactos carnais, era uma ardência
insatisfeita, que se continha, suspensa e ameaçadora, à espera de esquecer que
a carne era sempre igual, e os gestos do amor tão poucos que os sabia já de
cor. Mas depois, ao fazê-los, era sempre, como na primeira vez, uma surpresa,
uma ignorância curiosa, um receio tímido, uma insegurança doce, um pasmo
juvenil, uma alegria nova, um encantamento frenético; era como na primeira
iniciação, mas sem a perplexidade e a decepção de o amor não ser mais do que
isso, quando a virtude do amor não está em ser mais do que é, mas em ser o
prazer de não ser isso mesmo.
Novamente
ergueu os olhos para a varanda fronteira. As crianças não estavam lá, e o
homem, curvado para a escudela, comia o seu caldo. Aquele mistério da
Encarnação, o frade hoje falara muito bem, explicando com eloquência o seu
sentido. Mas o sentido da Encarnação não precisava ele que lho explicassem.
Quem amara com a carne e com o pensamento como ele, quem escrevera do Amor como
ele escrevera, e quem não gostara nunca de crianças, como ele, tinha da
Encarnação uma experiência que o frade não tinha. Precisamente porque tudo se
encarnara nele sem encarnar-se, e lhe devorara a própria carne, deixando-o
aquele farrapo imundo que era agora, quem melhor sabia o que era a Encarnação?
Ou, pelo menos, tanto quanto um homem pode sabê-lo? Sentir-se grávido de um
poema, sentir-se fecundado por um relâmpago entrevisto, e ser um homem — é o
mais que pode saber-se. Não o sabe a mulher que dá à luz, porque é delas dar à
luz, às vezes sem ter amado. Não o sabe o homem que quer ter filhos, porque os
pode fazer sem amor. Mas o poeta que praticou o amor até à destruição da carne,
e escreveu poemas até que o espírito acha pouco a poesia, esse, sim, esse sabe
o que Encarnação seja. Apenas, porém, o sabe. Mas não viveu a Encarnação, foi a
Encarnação quem o viveu a ele. E é este o grande mistério, não o outro. E é a
grande diferença entre um deus que se encarna, e o homem em quem a Encarnação
se representa. Uma diferença que é, afinal, uma comédia, ou pode ser vista como
uma comédia, porque todo o homem a quem isso aconteça é Anfitrião, um marido
enganado pelo Júpiter que há nele.
Ficou vendo
diante de si o palco iluminado, e as figuras declamando os versos. A porta
rangeu, e os passinhos leves soaram atrás dele. A voz fininha e aguda começou a
sua declamação desafinada.
— Esteve
hoje cá o Padre Manuel à tua procura, e eu disse-lhe que hoje era dia de ires a
São Domingos, e ele disse-me que não se tinha lembrado, e eu perguntei-lhe
quando voltava, e ele respondeu que precisava perguntar-te do teu livro, mas
não era pressa, voltava noutro dia, ou tu fosses procurá-lo amanhã ou depois.
Que é que ele anda a fazer com o teu livro, sempre a perguntar-te coisas? Então
um livro desses, que não é de coisas de Deus Nosso Senhor e da nossa santa
religião, precisa que tu estejas sempre a explicar o que é isto e o que é
aquilo, e a contar a tua vida, nem que ele fosse o teu evangelista? A Virgem
Santíssima me perdoe, mas parece-me um grande pecado. E contar a vida às outras
pessoas é um grande pecado da vaidade. A vida conta-se ao padre confessor, e
faz-se a penitência que ele manda pelas nossas más palavras e obras, e pronto.
E, à hora da morte, a gente conta o que ainda lembra ou fez entretanto, e o
padre dá a absolvição, se fomos virtuosos e piedosos, e nunca faltámos aos
nossos deveres para com Deus e a sua Igreja. Ah, veio também o criado do Senhor
Rui Dias, do mando deste senhor, que tão teu amigo é, perguntar pela encomenda
que te fez daquelas poesias del-rei David que Deus haja. E eu disse que tu
ainda não acabaste e que logo acabas, e que tens trabalhado muito e até tens
estudado com o Padre Manuel para que as palavras santas fiquem todas certas e
nos seus lugares. E ele disse que o amo estava muito arreliado contigo, que
havia mais que muitos meses que tinha feito a encomenda, e que tu não fazias
nada, e que já tinha pago adiantado uma parte do trabalho. E eu disse que era
verdade, que ele já tinha pago, mas que nestas coisas pagar adiantado alguma
coisa é como dar o pano ao alfaiate, porque o alfaiate não pode fazer o gibão
sem o pano, e tu não podias escrever sem comer. E disse-lhe que a tua tença
estava atrasada e que não a pagavam, e que eu esperava muito da bondade do seu
amo e do grande poder que lá tem no Paço que a tença fosse paga em dia, que bem
a tinhas merecido de Sua Alteza pelos muitos serviços de teu pai que Deus tenha
em descanso, e também pelos teus serviços, que se tinhas sido um rapaz sem
juízo, e não tiveste sorte na vida, também eras um homem que escrevia livros, e
sabias muitas coisas divinas e humanas, como o Senhor Padre Manuel me disse, e
Frei Bartolomeu escreveu na licença que te deu…
— Frei
Bartolomeu só disse que eu sabia muito de coisas humanas.
— Pois é.
Porque saber de coisas divinas tu podias ter aprendido se tivesses estudado a
valer, e tido juízo, que podias hoje até ser bispo e mais do que eles dois. Mas
meteste-te com más mulheres e más companhias, e hoje é isso que se vê, e, em
vez de seres tu a dar as licenças, és tu quem as vai pedir a eles. Se não
fossem teus amigos e tu não lhes moesses a paciência, e não mostrasses como és
um homem arrependido da má vida que teve, não ta davam, que isto de frades,
Nossa Senhora me perdoe, se alguém me ouve. O teu pai é que se ria deles, e dizia
que eram todos uns vadios, que só queriam comer e ter as mulheres dos outros.
Abrenúncio, e por isso Deus o castigou com aquela desgraçada morte, que nem
teve sepultura cristã. Mas tu podias ir procurar o Senhor Duque ou o Senhor D.
Manuel, e lembrar-lhes que a tua tença está atrasada, e eles não há que não
consigam, de tão grandes senhores que são, primos del-rei. Eu tive de sair para
visitar a nossa comadre Joaquina que está outra vez com a sua dor e não tem
ninguém que cuide dela, mas logo lhe disse que não podia demorar-me, porque
hoje era dia de ires a São Domingos santificar a alma, que bem precisas, e logo
voltavas com fome e querias a tua ceia, e ficavas aborrecido se eu não
estivesse em casa quando chegasses, para te dar o caldo, e ela respondeu que
não eras nenhuma criança que chorasse pelo peito da mãe, e eu disse-lhe que tu
nunca tinhas chorado pelo peito da tua mãe, e é verdade também porque eu te
dava logo de mamar mal tu abrias a boca para gritar. Mas que nunca choraste
para mamar é a verdade, e só choravas depois, porque o meu leite era fraco e
foi preciso trazer uma ama, e o teu pai queria que tu fosses criado com ama,
porque não era da nossa condição que tu fosses criado ao peito de uma senhora
como eu, esposa de um homem como ele, tudo gente de condição. Mas a condição
que nós tínhamos era só o que ele ganhava, e Deus sabe como eu vivi depois que
teu pai faltou e tu andavas lá por essas terras de gentios e de infiéis, por
tanto tempo e eu sem saber se eras vivo ou morto, e só sabia quando chegavam as
armadas e vinha alguém conhecido que me dava notícias tuas, e me dizia que tu
tinhas ido para aqui e para ali, ou estavas não sei onde, que para mim todas
aquelas Índias são o mesmo, e os nomes das terras são mesmo coisa do demónio,
cruzes, de arrenegados para se entenderem. Muitas vezes eu pensava que me
escrevias, mas tu nunca escrevias, e muitas pessoas me diziam que tu lá
escrevias as cartas dos outros, que escrever bem tu sempre escreveste desde
muito pequeno] mas punhas as coisas bonitas no papel para eles, e para mim
nada. E eu ficava rezando a Sant’Ana e a Nossa Senhora e às vezes até mudava de
santo para que nenhum se cansasse de me ouvir, sempre temendo que morresses nas
guerras e nos naufrágios, ou dessas doenças que há lá, e a pensar que às vezes
eu podia estar a rezar pela tua boa sorte e as rezas afinal servirem para te
descontar os dias de Purgatório pelos teus pecados e leviandades, e o corpo que
eu dei à luz estar comido dos peixes ou do gentio, sem sepultura cristã, como
teu pobre pai que Deus haja e eu só soube tanto tempo depois. E a comadre
Joaquina deu-me este pastel que aqui trago e que é de uma galinha que lhe deu a
vizinha, ou uma meia galinha só, de que ela fez este pastel, e me disse que
tinha outro e que te mandava este, mas queria que tu lhes escrevesses uma
oração em verso a S. Crispim de que é muito devota, e eu disse que tu havias de
escrever depois de comeres o pastel.
— Eu como o
pastel, mas versos aos santos não faço.
— Deus meu,
se alguém te ouve e pensa que tu não acreditas nos santos. A Santa Inquisição
que nos livrou da maldade e da malícia dos inimigos da nossa Fé manda que se
acredite nos santos, e eu bem sei que tu não acreditas, nunca te encomendas a
eles, e é por pecado de orgulho, ao que me disse o Padre Manuel, quando eu lhe
falei da minha aflição por tu não acreditares nos santos, e ele me respondeu
que tu achas os santos pequenos de mais para ti, e não te contentas senão com
Deus Nosso Senhor. Eu até fiquei arrepiada de pensar no perigo que é não ter um
santo que nos proteja. Se não fossem o Senhor Duque e o Senhor D. Manuel e o
Senhor Rui Dias e outros senhores assim, eu queria ver de que é que tu vivias,
que el-rei nem saberia da tua existência. Deus me perdoe, mas não é que Deus
não saiba de ti, porque ele sabe de todos nós e é um pai amantíssimo que não
tira os olhos de nós. Mas está na sua divina majestade, ocupado em reger o
Mundo, e nunca ninguém ganhou causas sem advogado. A mim a Senhora Sant’Ana
nunca me desampara, eu nem sei o que seria de mim e de ti sem ela. Que este
pastel é um milagre dela. Quando eu saí para visitar a comadre Joaquina, ia
dizendo comigo que a Senhora Sant’Ana fizesse que eu não voltasse para casa com
as mãos vazias e trouxesse algum petisco para o meu filho, e pedi mesmo um
pastel de galinha, que era o mais certo, porque a comadre Joaquina sempre tem
pastéis de galinha. E eu não prometi à Senhora Sant’Ana que tu farias o que a
comadre pedisse, porque já te conheço, e não há contar contigo para coisa
nenhuma que não seja comer o pastel. E por isso não faz mal que não faças os
versos a S. Crispim, porque não foi promessa minha. A comadre é que disse que
tu, se quisesses, podias fazer, que toda a gente dizia que eras muito bom
dizedor, e que fazias logo os versos que te pediam. E eu respondi que isso
seria dantes, porque agora tinhas uma encomenda muito boa, de grande
rendimento, do Senhor Rui Dias, que nos fazia a honra de ser teu amigo, de pôr
em verso os Salmos del-rei David que Deus haja, e que tu não escrevias nada, e
até hoje o criado dele cá estivera a reclamar por causa do pagamento adiantado.
Tu estás a dormir, tu não ouves o que eu digo? Come o teu caldo enquanto está
quente e depois o pastel que é bem gostoso se for igual ao outro que a comadre
tinha. Eu já ceei em casa dela, e estou sem apetite só de ver-te nesse estado,
um rapaz tão forte e tão bonito como tu eras, que não havia moça que não se
voltasse para te ver, nem homem que não se mordesse de inveja. E, quando o sol
dava no teu cabelo, eu dizia comigo que o meu filho era como um rei com a coroa
na cabeça, ou, Deus me perdoe, como um grande santo de resplendor dourado em
dia de procissão. E ficava a ver-te ir pela rua abaixo, tão vaidoso que nem
olhavas para trás, com a mão no punho da espada, e os passos tão firmes, Deus
meu, que parecia que a terra era toda tua. Por essas e por outras é que as tuas
desgraças começaram, com as arruaças e as brigas, e o mau feito, desgraça maior
que todas, de acutilares o homem em Dia de Corpus Christi, aquele patife sem
vergonha que te desgraçou e fez ir para a Índia e que merecia morrer em pecado,
Deus me perdoe se sou eu quem peca. Está tão escuro já que vou acender a
candeia. Mas o lume apagou-se e vou descer à vizinha a pedir-lhe lume. Deus
Nosso Senhor tenha piedade de mim, velha e cansada, e com um filho homem, e sou
eu quem tem de descer a escada para buscar o fogo que não há na minha casa.
Abriu o olhar às trevas e ao silêncio. Conhecia tão bem os cantos da quadra,
que era como se estivesse vendo a arca e o oratório com o raminho entalado, os
quadrinhos de santos pendurados, a prateleira com os pratos em pé, a enxerga ao
canto, onde ele dormia, a porta da alcova de sua mãe e a porta da cozinha. Via
tudo com a mesma certeza e a mesma minúcia com que vira as naus do Gama navegando
no mar, lá em baixo, vistas do Empíreo, com que vira Vénus abraçada a Júpiter e
chorando, com que vira o Adamastor sair da nuvem grossa, com que vira o Veloso
correndo pelo monte abaixo. Mas ele acutilara o Borges, porquê? Para que a vida
lhe mudasse de rumo, para que ela tomasse um rumo de fatalidade, para que as
índias lhe fossem impostas pela sua estrela, para que a sua estrela existisse.
Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros
e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente. Perdição. Amor
somente. Como a poesia é falsa e verdadeira. Como ela diz não dizendo, e é não
dizendo que diz. Como da nossa alma não sabemos nada antes de escrevê-la, e
como não é dela que sabemos depois de ter escrito. A perdição procura-se, como
um homem se despe para banhar–se no mar, a modos que Leandro atravessando o
Helesponto. E o amor somente bastaria, como o momento em que tudo se esquece,
tudo desaparece, tudo se evapora, ao calor que abrasa e que só dura um instante
mas um instante em que o tempo se suspende, se petrifica num espaço e numa
forma, e todo o verdadeiro espaço foge velozmente, correndo pelos tempos fora
até que é ele o tempo que se suspendeu. Apenas como isso, porque é uma imagem
do supremo amor, aquele que existe além do tempo e do espaço, além das esferas,
além daquele poço terrível. Além ou aquém? E se esse amor não fosse mais do que
uma imagem, uma essência última da sua própria vida?
Estranhamente,
no silêncio e no fluxo dos pensamentos, o poço abriu-se insólito e translúcido
na sua profundeza negra, com as pequeninas formas flutuantes, e uma subia,
subia, tomando cor e feições de uma medusa terrífica. Mas a porta rangeu, e uma
vaga claridade fez emergirem os objectos, como formas planas, sem sombras na luz
fraca. Os passinhos soaram leves.
— A vizinha
diz que, no intervalo antes de tu chegares, quando eu já tinha saído, veio cá
também aquele doutor que te pediu as poesias para aquele senhor que não tem
nome cristão, o Senhor D. Leonis. Hoje veio cá todo o mundo, até parece o Dia
de Juízo. E ele que vai de viagem ficou com muita pena de não te ver, e
disse-lhe que te deixava muitas lembranças e que queria muito que tu
melhorasses de saúde, e ela respondeu que tu estavas mesmo muito acabado, e ele
disse que tu não acabavas nunca, porque tu eras um grande poeta, um dos maiores
que já tinha havido no mundo, assim uma coisa como nem sei quem ele disse. E
ela riu-se muito, e disse-lhe que o Senhor Padre Manuel também dizia o mesmo, e
que era tudo bondade deles, porque isso de poesias nunca davam nada a ninguém.
Só que a ti deram a tença, mas foi por causa do livro impresso e pelos muitos
serviços a el-rei que o teu pai prestou em sua pobre vida, e tu também. E ele
respondeu que era sempre assim que as coisas aconteciam, que a glória só vinha
muito tarde, e que os prémios, quando eram dados, nunca vinham pelo que a gente
merecia mais. Eu acho que isto é descrer da infinita bondade de Deus Nosso
Senhor, e não é muito respeitoso para com Sua Alteza que te deu a tença. O que
é preciso é que tu vás ao Paço reclamar que não te pagam a tempo e horas, que
estou cansada de me arrastar até lá, e sempre me perguntam porque tu não vais,
e o outro dia o tesoureiro até me disse que era tudo história, que não ias
porque tinhas morrido, e eu, se queria receber, tinha de pedir a el-rei a tença
em meu nome. E tu não vais porque tens esse pecado de orgulho, e não queres que
te vejam de muletas, a pedir que te paguem o que te devem. Eu é que estou
cansada, e vou-me deitar que não posso mais comigo. Tem cuidado com a candeia,
não gastes muito azeite, que está pela hora da morte, e bem sabes que tenho
medo dos fogos e podes adormecer aí na mesa, não era a primeira vez, e a
candeia pegar fogo à tua papelada, e à casa, Deus nos acuda e Santa Bárbara nos
proteja. Se voltar cá o criado do Senhor Rui Dias, o que é que lhe digo? Nem me
respondes, estás a cair de sono em cima da mesa. Tem cuidado com a candeia…
Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia fazia, como uma auréola à
volta de um centro ardente. Se o criado de Rui Dias lhe aparecesse, ou ele
mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e namorado, querido e
estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e damas, com que o calor
poético se aumentava, e que agora não tinha espírito nem contentamento para
nada… Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como uma via sacra da
vida, 73 quintilhas como…
Levantou-se
impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que
multiplicava a pequenina luz da candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à
outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um
canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se
habituara, desde o primeiro embarque, a guardar assim. De joelhos, com as dores
neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os
dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um
momento, de olhos fechados, arquejando. Já as palavras tumultuavam nele,
confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que tentara. Eram como
uma tremura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves,
concentrando-se em pequenas zonas da pele. Debruçando-se da mesa a que se
apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor
frio escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das
mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o inundou, em sacões ansiosos. Os
olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o
abandonara, receosa dos seus olhos de alma penetrantes que viam o fundo das
coisas. O poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta, transformava
em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o
abandono da poesia. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou a
escrever… Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei… Riscou,
desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde
sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei…
E ficou
escrevendo pela noite adiante.
Araraquara,
27 de Março de 1964.