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terça-feira, 11 de agosto de 2020

Monstros de pedra

 

Manifestantes derrubam a estátua do traficante de escravos Edward Colston no porto de Bristol, durante manifestação Black Lives Matter, em Bristol, na Inglaterra
- Foto: Ben Birchall/PA via AP - 



Monstros de pedra


Um artigo de João Camargo in EXPRESSO de 26.06.2020


Uma das expressões mais claras da revolta contra o racismo que começou nos Estados Unidos e se expandiu por todo o mundo ocidental, foi a remoção e ataque a estátuas que representam directamente ou indirectamente a história colonial, esclavagista e racista sobre a qual se construiu muito do Ocidente. Sectores mais conservadores, tradicionais e a extrema-direita criaram uma onda de indignação. Para estes sectores, a destruição de estátuas e símbolos desse passado configura-se como uma crime indesculpável, pois ataca as identidades criadas com base em feitos históricos (reais, mistificados ou inventados) afirmados no espaço público como imortais através desses símbolos.

Sem entrar em profundidade na questão específica das estátuas e monumentos, que foi discutida durante as últimas semanas, enquadro-a na promessa do “regresso ao passado”, tão utilizada nas últimas décadas pelos sectores conservadores e pela extrema-direita como ferramenta de recrutamento e mobilização. Esta promessa tenderá a ter um papel crescente na política nacional e internacional. A promessa que fazem é de um regresso a um passado seguro, idealizado e místico. Quando Donald Trump promete “fazer a América grande de novo”, quando Jair Bolsonaro defende a ditadura militar de 1964, quando Marine Le Pen defende “Voltar a pôr França na ordem” ou, de forma mais simples, Viktor Órban diz STOP com uma mão levantada, devemos perceber do que estão a falar: parar e voltar para trás. Mas este regresso ao passado requer que esqueçamos o que foi o passado ou que mantenhamos uma visão “higiénica” do que foi o passado. Por isso mesmo é-lhes tão ofensiva a ideia de olhar para o passado com uma visão crítica ou, ainda mais, que sejam tiradas das praças e dos espaços públicos algumas das estátuas que perpetuam essa visão higiénica.

A estratégia da promessa do regresso ao passado tem o seu maior potencial quando existem crises sistémicas e repetidas, que agravam as tensões sociais e colocam os campos políticos em oposição cada vez mais directa. Não é por isso de estranhar a sua ascensão agora. Mas esta estratégia é principalmente uma expressão do poder das elites para conservar o seu status. Por isso mesmo percebe-se a oposição a qualquer revisão histórica e ainda mais à reparação histórica aos povos que foram sistematicamente oprimidos. Há uma tentativa de cobrir a estratégia com uma capa popular, apostando em pequenos conflitos sociais e criminais de expressão muitas vezes insignificante na sociedade, enquanto se ignoram os grandes temas que afectam o conjunto da civilização humana. Este é o teste do algodão para explicar a natureza da promessa: o regresso ao passado é apenas o regresso ao passado dos poderosos, não o regresso ao passado do povo e das pessoas normais. É um isco para as pessoas normais.

A confusão que estas forças políticas pretendem manter institucionalizada é a de que a história das elites é igual à história dos povos, que a história dos colonos é a história dos colonizados, que a história dos homens é a história das mulheres. São histórias diferentes, divergentes e muitas vezes de sentido totalmente oposto: o sucesso da elites fez-se à custa da opressão dos povos, o sucesso do colonialismo fez-se à custa da destruição de povos e civilizações inteiras, a subjugação das mulheres aos homens implicou apagá-las da história. Construir uma ideia de futuro conjunta implica olhar para o mundo e para o passado com outros óculos, com muito mais informação. Implica também deixar de venerar monstros de pedra, que os há, e muitos, pelas ruas e praças de todo o mundo. Isso não significa apagar a história, pelo contrário. Significa deixar de defender acriticamente uma história de exclusões, omissões e obliteração, o que faz sentido especialmente quando, na enorme maioria, a população hoje viva é descendente de quem foi esmagado.

Quanto pior for a situação económica, quanto pior a degradação ambiental, quanto mais se forem potenciando fenómenos históricos como migrações de massas e escassez, com mais veemência será feita a promessa do regresso ao passado. A promessa será feita mais alto, a sua proposta política será feita com mais violência (oratória e física), será exigido com mais força o apagamento das vozes e da história que não batem certo com a história que é contada pelas estátuas. Essa estátuas imortalizam um passado cujas vitórias existiram para pouco mais do que uma minúscula minoria. Quanto mais estiver abalado o capitalismo global, mais promessas serão feitas para manter a sua estrutura de privilégio. Já vemos no últimos anos o reforço da aliança entre o conservadorismo e a extrema-direita para conservar esse privilégio. Perante o regresso da História, as elites do capitalismo prometem defender um passado que está esculpido na pedra.

É difícil defender que o colonialismo e a escravatura, com a sua expressão intelectualizada no racismo, não foram fenómenos monstruosos. Há quem o faça, há quem tente relativizar a destruição sistemática de povos inteiros, a depredação de territórios e destruição de modos de vida e culturas, enquadrando-as num espírito de época ou, ainda mais grave, numa “natureza humana”. Há até a defesa de que os povos colonizados e escravizados nem sequer tinham uma cultura, seriam folhas em branco à espera de uma impressão civilizadora e evangelizadora do ocidente. Na altura, a desumanização destas pessoas era institucionalizada na ideia de que não teriam alma, sendo apenas animais sem pensamento, e que portanto privá-las de qualquer réstia de dignidade humana seria aceitável. Tudo isto era afirmado para garantir que tudo o que podia ser extraído destas pessoas e destes territórios não seria crime, mas apenas um negócio como tantos outros. Legitimado pelos intelectuais da altura, pelo clero, pela nobreza, pela academia, pelos exploradores, esta desumanização precisava ser explicada ao povo que iria, na prática, fazer o trabalho sujo de manter os ricos ricos, fosse porque meios fosse. Muita dessa teorização manteve-se ao longo da história e o trabalho de desconstruí-la está por fazer. Para atrasar e travar esse trabalho há monstros de pedra erguidos e lançando longas sombras pelas ruas e praças de todo o mundo.

A promessa de um regresso ao passado como futuro é, literalmente, a promessa de um futuro de monstros. Muito mais do que aquelas estátuas que são derrubadas, que são contestadas ou grafitadas, o que o regresso ao passado promete é a criação de novas estátuas de monstros, de novos monstros e monstruosidades para responder a um tempo de enorme incerteza. A defesa dos poderosos, a falta de imaginação, de coragem e - também - um legítimo medo de um futuro cheio de incertezas, leva à promessa e à defesa de um regresso ao passado, de um regresso à monstruosidade do passado. A única coisa que o conservadorismo e a extrema-direita têm para oferecer hoje à Humanidade são monstruosidades.

O medo do futuro é compreensível. Vivemos no meio de uma pandemia, estamos na segunda grande recessão global desde o início do século, o sistema financeiro sorveu continuamente os rendimentos de Estados e populações inteiras, vivemos na 6ª extinção em massa de espécies na História do planeta, a crise climática ergue-se sobre toda esta realidade e, se não for travada, desmantelará os sistemas que foram montados para a existência de civilização. Nesta realidade, o regresso ao passado pode até ser um apelo que ecoa dentro da cabeça das pessoas, mas não passa de uma ratoeira, explorando o medo para institucionalizar monstruosidades. Um regresso ao passado não garantirá travar nenhum dos problemas existenciais em que vivemos. Pelo contrário, anexada a esse regresso ao passado está a garantia de ignorar todos estes problemas urgentes: a extrema-direita e a direita conservadora rejeitam ou menosprezam todas estas temáticas existenciais. Para manterem a sua ligação directa com os donos do capitalismo global, precisam ignorar a necessidade de acabar com este sistema, com estes monstros de pedra que bloqueiam qualquer caminho para o futuro. A obsessão pelo passado (especialmente um que não passa de um mito) é uma ratoeira que não nos serve enquanto espécie.




Nota:


A imagem que documenta este artigo foi escolhida por mim em https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/11/estatua-de-escravocrata-britanico-derrubada-por-manifestantes-e-retirada-do-rio.ghtml


sábado, 12 de outubro de 2013

Hannah Arendt


 
Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, estreou na quinta-feira – o filme retrata uma das filósofas mais importantes do século XX, defensora da liberdade de pensamento e que cunhou o conceito da banalidade do mal, a propósito de Adolf Eichmann, oficial nazi julgado e executado em Israel.

A cena poderia passar-se em qualquer redacção do mundo. Neste caso, aconteceu na da célebre revista New Yorker. O director, William Shawn, sabe que está perante um momento histórico, o julgamento de Adolf Eichmann, oficial nazi célebre por ser um dos rostos da ‘solução final’ desenhada por Hitler, o do extermínio dos judeus. E tem à sua frente, caída do céu, uma proposta para a cobertura desse julgamento – que, se não foi o ‘do século’, na época, andou lá perto – por parte de Hannah Arendt, filósofa judia alemã exilada nos EUA e ela própria com uma passagem por um campo de concentração enquanto fugia do holocausto nazi.
A chefe de redacção, céptica, pergunta-lhe: “É mais uma filósofa europeia? Sabes que eles não têm limites para escrever e não são conhecidos por cumprirem prazos”. Shawn defende Arendt e segue com a aposta: “É um privilégio”.

O diálogo terá acontecido assim naquela redacção, em 1961, ano do julgamento de Eichmann em Jerusalém, onde estava detido depois de ser raptado pelos serviços secretos israelitas na Argentina. E foi reproduzido no mais recente filme de Margarethe von Trotta, estreado o ano passado na Europa e que só agora (na próxima quinta-feira) chega às salas portuguesas. A produção leva o nome da filósofa, uma das pensadoras mais marcantes do século XX pela originalidade e independência, interpretada pela actriz e cantora lírica Barbara Sukowa, outra referência do cinema alemão contemporâneo, como von Trotta.

Mas, ao contrário do que seria de esperar dos ditames da indústria cinematográfica, Margarethe von Trotta não se perde a fazer um filme biográfico e encerrar em duas horas estandardizadas uma vida tão complexa.

O filme centra-se nos anos entre a ida de Arendt a Israel para a cobertura do tal julgamento e a polémica que se seguiu à publicação do seu artigo na New Yorker. É que a ‘filósofa europeia’ não só cumpriu os prazos de entrega, desfazendo o medo dos responsáveis da redacção da revista, como partiu a loiça. Ao contrário do que seria de esperar, Hannah Arendt não descreve um monstro, nem sequer alguém mentalmente perturbado no julgamento. Ela tem pela frente um homem de uma banalidade desconcertante.

Se os actos praticados por Eichmann não encaixam na figura, então como foi possível este homem, que alega em sua defesa limitar-se a cumprir ordens, ser capaz de chefiar a temida Unidade IV D 4/4 e IV B 4 do exército nazi e ser pessoalmente responsável pela organização geral da deportação dos judeus da Alemanha e dos países europeus deportados? Longe de o desculpar, Hannah Arendt quer compreender. E é daí que lhe surge o conceito da banalidade do mal, um dos mais conhecidos do seu pensamento. Nesta altura, Arendt já tinha escrito duas obras de referência para a compreensão da génese dos regimes autoritários que floresceram na Europa no tempo da Segunda Guerra: As Origens do Totalitarismo (1951), em que denuncia a origem do nazismo e do estalinismo, e A Condição Humana (1958), na qual descreve a sua teoria política.

Qualquer um pode ser Eichmann?
A partir daí, entramos no clímax do filme. A dimensão humana de Arendt, que von Trotta retrata, dizem os entendidos, fielmente, é posta à prova logo após a publicação do artigo. A comunidade judia reprova-lhe a classificação de um criminoso de guerra nazi como um homem banal, mas não lhe perdoa de todo a denúncia que faz, no mesmo artigo, da inépcia dos líderes judeus da época, que viram a catástrofe a acontecer quase impavidamente.

A coragem custou-lhe até amizades de uma vida. Mais uma vez, interessava-lhe não perdoar, mas compreender sem crucificar previamente: “A banalidade do mal foi, no fundo, uma resposta à questão: ‘como foi possível acontecer?”, diz Sofia Roque, que está a trabalhar Numa tese de doutoramento sobre Arendt, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Se hoje aceitamos com alguma facilidade que qualquer pessoa, em qualquer época, pode ser um Eichmann ou um Hitler em potência, nos anos 60 isso não era assim. Quando Arendt formula a ideia, os acontecimentos ainda eram analisados muito a quente. No fundo, a ideia é coerente com o mais profundo dos pensamentos da filósofa: “A compreensão é o modo da política, sem ela não nos podemos situar no mundo”, acrescenta Sofia Roque, citando a autora. Arendt nem sequer parece à vontade, no filme, com o facto de se estar a fazer do nazi uma figura exemplar. Para ela, se uma pessoa abdicar, devido a determinadas circunstâncias históricas, de fazer o que a torna verdadeiramente humana – pensar – pode transformar-se num monstro.
Sofia, que viu o filme na única apresentação que teve em Portugal, a 25 de Maio no São Jorge (Lisboa), no âmbito da Judaica – 1.ª Mostra de Cinema e Cultura, recorda ainda o humanismo da personagem construída por von Trotta, que nem se esqueceu de pequenas conversas da filósofa com os muitos amigos que cultivou ou até o modo como Arendt se deitava no sofá, a fumar – era uma fumadora inveterada –, de olhos fechados, a organizar pensamentos.

Mas recorda-se do modo como Barbara Sukowa incarna a coragem da filósofa perante as críticas. Arendt chegou a receber um bilhete de um vizinho do próprio prédio onde morava em Nova Iorque, anónimo, que a chamava de ‘puta nazi’. Um dos seus amigos mais próximas, Hans Jonas, também exilado em Nova Iorque, diz-lhe que ela se tornou uma “intelectual arrogante alemã”. Mais tarde, seria convidada pelo departamento da universidade onde leccionava a não dar mais aulas. Resistiu sempre: “Ela procurou uma objectividade, distanciou-se da sua condição de judia e de um modo absolutamente corajoso tenta encontrar uma verdade num comportamento e enfrenta a comunidade judaica e os leitores da New Yorker”.

Pelo filme passam também duas histórias de amor. A relação de Arendt com o seu segundo marido, Heinrich Blücher, um filósofo autodidacta alemão, que fugiu com ela da França ocupada para os EUA através de Espanha e de Portugal, é apresentada nos pequenos gestos. Blücher nunca deixa de estar do seu lado.
Paixão impossível

Mas há uma outra, dada em flashbacks, quando a jovem Arendt, ainda estudante de filosofia na Alemanha, frequenta as aulas de Martin Heidegger, um dos maiores filósofos do século XX.

O fascínio da jovem Arendt transforma-se numa paixão ardente pelo professor, vários anos mais velho. Mas a história não ficaria completa sem polémica – Heidegger aderiu ao partido nazi em 1933 e estaria implicado no afastamento de académicos judeus da sua universidade, como se passou, de resto, em todas as áreas do conhecimento por toda a Alemanha e a Áustria.
Os dois separaram-se, Arendt conheceria Blücher já no exílio, e passaria pelo campo de concentração de Gurs, em França, perto dos Pirinéus, antes do ‘salto’ definitivo para os EUA. Mas a memória ficou. Hannah reataria a amizade entre ambos em 1950 e seria até responsável pela readmissão de Heidegger no meio universitário. O filme aborda a questão de leve, sem revelar a justificação do filósofo a Hannah, que lhe pede uma explicação. Mistérios insondáveis da alma humana? A explicação é quase impossível, mas Sofia Roque não vê aí mais do que algo privado, que a filósofa nunca chegaria a partilhar por completo: “Heidegger não era um cidadão comum, ele tinha os instrumentos suficientes para saber o que se estava a passar. Será que Hannah Arendt o perdoou? Não nos diz respeito”.

E qual será o lugar do pensamento de Hannah Arendt na actualidade?

São poucos hoje os que reclamam o modo como a filósofa pensa a tolerância, a humanidade, e sobretudo a acção política.

“Ela não define os objectivos da acção política, nunca se assumiu em nenhum ‘ismo’ ou disse se era de esquerda ou de direita”, esclarece Sofia Roque. Antes defende “a ideia de um sistema de pequenos conselhos, de órgãos cuja dimensão permitisse a participação directa” dos cidadãos nas decisões, um pouco como o espaço público da polis na democracia ateniense da Antiguidade. Para Arendt, a política é antes de tudo um espaço de liberdade entre plurais que podem discutir, a partir do momento em que são cidadãos livres, “o sistema social, de justiça e de igualdade”.

Se estivesse hoje entre nós, Hannah Arendt ficaria por certo agradada com os movimentos que saíram à rua um pouco por todo o mundo, a reclamar mais liberdade ou melhores condições sociais, fosse contra ditaduras – como no mundo árabe, num processo que ainda não acabou –, fosse contra políticas de austeridade, na Europa e nos EUA.
A filósofa de figura frágil e afável poderia ser uma indignada do século XXI?

Arendt analisou as revoluções, da americana à francesa, passando pela dos sovietes. Hoje, talvez estaria preocupada em “ligar estes fenómenos aos movimentos occupy”, aposta Sofia Roque.



Ricardo Nabais, Jornal Sol

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Mujica critica sociedade capitalista em discurso na ONU


Um discurso que devia ser espalhado por todo o mundo! Refletido por toda a gente, com seriedade, respeito e muita atenção.
Admirável intervenção de um grande político, de um grande senhor, de um grande Presidente. Um socialista a sério que não desiste das suas ideias, dos seus valores, das suas convicções e que dá testemunho das mesmas ao mundo inteiro!
Notável!




   

O Presidente uruguaio lamentou o embargo a Cuba, o colonialismo nas Malvinas e a pobreza na América Latina

 
O presidente do Uruguai, José Mujica, criticou duramente o consumismo durante seu discurso na 68ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, nesta terça-feira (24/09). “O deus mercado organiza a economia, a vida, e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos frustração, pobreza e autoexclusão”, afirmou.

No discurso, que durou 40 minutos, ele também elogiou a utopia “de seu tempo”, mencionou a sua luta pelo antigo sonho de uma “sociedade libertária e sem classes” e destacou a importância da ONU, que se traduz para ele num “sonho de paz para a humanidade”.

Aos jornais uruguaios, Mujica prometeu um “discurso exótico” e fugiu do protocolo ao dizer que “tem angústia pelo futuro” e que a nossa “primeira tarefa é salvar a vida humana”.
“Sou do Sul (...) e carrego inequivocamente milhões de pessoas pobres na América Latina, carrego as culturas originárias esmagadas, o resto do colonialismo nas Malvinas, os bloqueios inúteis a Cuba, carrego a consequência da vigilância eletrónica, que gera desconfiança e que nos envenena inutilmente. Carrego a dívida social e a necessidade de defender a Amazónia, os nossos rios, de lutar por uma pátria para todos e que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, com o dever de lutar pela tolerância”.

A humanidade sacrificou os deuses imateriais e ocupou o templo com o “deus mercado, que organiza a economia, a vida, e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos a frustração, a pobreza, a autoexclusão”. No mesmo tom, ressaltou o fracasso do modelo adotado no capitalismo: “o certo hoje é que para a sociedade consumir como um americano médio seriam necessários três planetas. A nossa civilização montou um desafio mentiroso”.

Uruguaio criticou os altos gastos dos países com armamentos

Para o presidente, o atual modelo de civilização “é contra os ciclos naturais, contra a liberdade, que supõe ter tempo para viver, (…) é uma civilização contra o tempo livre, que não se paga, que não se compra e que é o que nos permite viver as relações humanas”, porque “só o amor, a amizade, a solidariedade, e a família transcendem”. “Arrasamos as selvas e implantamos selvas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insónia com remédios. E pensamos que somos felizes ao deixar o humano”.

Paz e guerra

“A cada 2 minutos gastam-se 2 milhões de dólares em materiais militares. As pesquisas médicas correspondem à quinta parte dos investimentos militares”, criticou o presidente ao sustentar que ainda estamos na pré-história: “enquanto o homem recorrer à guerra quando fracassar a política, estaremos na pré-história”, defendeu.

Assim, criamos “este processo do qual não podemos sair e causa ódio, fanatismo, desconfiança, novas guerras; eu sei que é fácil poeticamente autocriticarmos. Mas seria possível se firmássemos acordos de política planetária que nos garantam a paz”. Ao invés disso, “bloqueiam os espaços da ONU, que foi criada com um sonho de paz para a humanidade”.

O uruguaio também abordou a debilidade da ONU, que “se burocratiza por falta de poder e autonomia, de reconhecimento e de uma democracia e de um mundo que corresponda à maioria do planeta”.

“O nosso pequeno país tem a maior quantidade de soldados em missões de paz e estamos onde queiram que estejamos, e somos pequenos”. Dizemos com conhecimento de causa, garantiu o mandatário, que “estes sonhos, estes desafios que estão no horizonte, implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais para governar a nossa história e superar as ameaças à vida”. Para isso é “preciso entender que os indigentes do mundo não são da África, ou da América Latina e sim de toda humanidade que, globalizada, deve empenhar-se no desenvolvimento para a vida”.

“Pensem que a vida humana é um milagre e nada vale mais que a vida. E que o nosso dever biológico é acima de todas as coisas, impulsionar e multiplicar a vida e entendermos que a espécie somos nós” . E concluiu: “a espécie deveria ter um governo para a humanidade que supere o individualismo e crie cabeças políticas”.



*
com Vanessa Silva, do "Portal Vermelho"

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Esqueçam o crescimento. A austeridade também não é compatível com a democracia.




A adesão à CEE por parte da Grécia (1981) e de Portugal e Espanha (1986) foi essencial para que a transição para a democracia nestes países evoluisse, de forma estável e de braços dados com o crescimento económico, para um período de consolidação e maturação do sistema democrático. Democracia, prosperidade e Europa são, na memória da maioria dos cidadãos da Europa do Sul, os vértices de um mesmo triângulo.

Hoje, estamos perigosamente a percorrer o caminho inverso. A receita punitiva do programas de ajustamento está a destruir a economia grega - algum país, algum povo consegue aguentar a queda do PIB de 25% em 5 anos sem invadir as ruas? nenhum político alemão ou de qualquer outra nacionalidade faz a mais pequena ideia do que está a dizer quando afirma que é preciso fazer "sacrifícios", ou de que não há a austeridade sem "sofrimento"; nenhum teria a coragem para impor metade dos sacrificios concentrados em 2 ou 3 anos sobre a sua própria população -, e deixará semelhante rasto da destruição na economia portuguesa e espanhola, destinadas a definhar abraçadas nos próximos anos. A dias ou semanas de um "resgate" como o grego ou o português, a Espanha - o tal país que, segundo o PSD, tinha feito tudo bem há um par de anos (corte de salários na função pública, liberalização dos despedimentos, aumento da idade da reforma, proibição do défice estrutural na Constituição, etc.) e, dessa forma, escapado a um resgate, lembram-se? percebem hoje o ridículo? - ainda não engoliu o comprimido por inteiro e já vive literalmente ameaçada pela desagregação, enquanto as ruas de Madrid já estão a ferro-e-fogo e Rajoy ainda nem chegou à fase do PEC IV - quanto mais ao que se seguirá. Entretanto, preparam-se para o desemprego espanhol chegar aos 30%. Será uma experiência económica e social memorável. 

Deixemos por momentos de parte a dinâmica de destruição do tecido económico nesses países (já sabemos, da destruição e das reformas estruturais renascerá a Fénix; cá estaremos para avaliar pessoalmente o resultado da voragem do ajustamento, quando os técnicos de FMI, sem nunca terem prestado contas a ninguém, estiverem noutras paragens a monitorizar outro programa de ajustamento). Será que alguém em Berlim ou Bruxelas já parou para pensar no que estão a fazer à credibilidade das instituições democráticas e aos governos dos países da Europa do Sul? Talvez não percebam que a partir do momento em que anulam o espaço de alternativa política e programática mínima e impõem a qualquer governo uma agenda de empobrecimento forçado, os cidadãos passam a chamar sistematicamente “gatunos” aos governantes – a todos: os presentes, os passados e os futuros - e perdem o respeito pelo espaço de mediação que é a representação democrática.

Talvez Bruxelas e Berlim considerem que tudo isto é merecido, que faz parte do processo, e que vale a pena o risco. Ou talvez se estejam nas tintas, desde que as dívidas sejam pagas. Não sei bem qual destas hipóteses é a mais correcta.

Ao fim deste tempo todo, uma coisa é clara: o que se está a passar na Europa do Sul não pode continuar a evoluir nesta direcção (nem a esta velocidade). É preciso que Bruxelas e Berlim acordem para o que se desenha no horizonte: não é só o crescimento que é incompatível com a austeridade (os defensores da austeridade expansionista andam um pouco escondidos); e já não é apenas a austeridade que é incompatível consigo própria, dado que não permite cumprir as metas fixadas (os ajustamentos orçamentais têm falhado ano após ano na Grécia, em Portugal, em Espanha); fundamentalmente, esta austeridade é incompatível com a manutenção da uma democracia estável.

Como muitos temiam, a vitória de François Hollande nas eleições francesas não produziu nenhuma mudança de fundo na política europeia. E se a vitória do PSF não faz diferença para um reequilíbrio dos poderes e interesses europeus, que vitória de um partido de esquerda fará em qualquer outro país? E se Merkel, hoje nos picos da popularidade, for reeleita daqui a um ano, que espaço existe efectivamente para mudar a política europeia (ainda por cima se meter o SPD no bolso, numa grande coligação ao centro)? E alguém acredita que Berlim ou Bruxelas se deixarão convencer pela “evidência empírica” que os programas não estão a resultar? Os fanáticos e os cínicos  - tantos as pessoas como as instituições - têm uma imaginação fértil, e não será difícil encontrar virtudes em economias terraplanadas.

Infelizmente, é provável a Comissão Europeia e a Europa do Norte só conheçam uma linguagem: a do medo. É assim que têm lidado com a Europa do Sul. Nunca se sabe se não será necessário à Europa do Sul aprender a usá-la.

 
 

por Hugo Mendes, em 26.09.12, blogue JUGULAR

 

domingo, 1 de setembro de 2013

Sobre o fenómeno do recuo do cidadão em relação à vida política


Uma reflexão urgente (frases destacadas por mim).



Existe em Portugal e no resto do dito “mundo desenvolvido” um evidente fenómeno de recuo do cidadão em relação à vida política.

Os cidadãos participam cada vez menos na vida das suas sociedades, quer militando cada vez menos nos partidos, quer participando cada vez menos em associações e movimentos sociais ou culturais. Este recuo sensível da participação cívica está diretamente ligado ao fato de hoje Portugal ser o país mais desigual da OCDE, batendo em 2011, a Bulgária e a Estónia, países que até então ocupavam esse desonroso pódio. Perante o agravamento das condições de vida que se registou com especial agudeza depois de 2008, muitos portugueses apontaram os indicadores – não sem razão – para os grandes partidos representados na Assembleia da República, sobretudo para aqueles dois que têm repartido entre si o poder desde 1975 e aos quais chamamos – invocando o malsano “rotativismo democrático” do século XIX – de “bi-partido”.

Em consequência, assistimos a um recuo da participação nos sufrágios eleitorais e no afluxo de novos militantes aos grandes partidos, que os pudessem renovar e fizessem brotar à superfície novos valores e quadros. A maioria dos português culpou os partidos pela situação atual, pela efetiva bancarrota da República, pelos insustentáveis níveis de desemprego cronico, pela redução inédita (desde 1989) do nível de vida e pelas humilhações e perdas de soberania que representam a presença da Troia e as suas draconianas condições de austeridade orçamental.

Os partidos são responsáveis por esta situação, decerto. Mas os cidadãos que se demitiram de exercerem uma vida política ou cívica mais intensa ou que – pior – se recusaram a votar, eleição após eleição, não podem ser esquecidos.

Se uns governaram mal (por dolo ou incompetência) os outros deixaram que assim sucedesse durante mais de vinte anos, demitindo do dever democrático de participação cívica que obriga moralmente cada cidadão a exercer sobre a República uma vigilância ativa e uma presença constante e amiúde nos sufrágios.

Essa é de facto a grande questão: os partidos estão doentes e fechados dentro de si mesmos, mas os cidadãos não se podem render a essa evidência e deixar a que os partidos (cada vez mais clientelares e dominados por pequenas famílias) entrem em roda vida e se distanciem completamente da sociedade civil. Se queremos mudar alguma coisa numa situação que todos reconhecemos ser impossível, então devemos mudar os partidos e pressioná-los para que introduzam no sistema político formas alternativas (não partidárias) de participação política: iniciativas legislativas de cidadãos menos restritivas, admissão de deputados independentes à Assembleia da República (ou ressuscitação do “Senado” e usando-o para esse fim), efetivação do mecanismo das petições públicas, etc., etc.

Cabe-nos a todos redinamizar esta democracia cada vez mais formal e esvaziada de sentido prático e operacional. Os partidos têm que “ser invadidos” por cidadãos insatisfeitos e dispostos a renovarem os seus quadros, propósitos e objetivos a partir de dentro.

A democracia deve ser reorganizada com novas formas de participação que a abram a novas formas de representatividade da Sociedade Civil. Só assim, a democracia pode deixar de ser uma mera formalidade, cada vez mais entregue a grupos de interesse e pressão, manipuladores dos Media e das Massas, servindo sempre os seus interesses particulares e egoístas e prejudicando severamente o Bem Comum.



in http://movv.org/2012/09/10/sobre-o-fenomeno-do-recuo-do-cidadao-em-relacao-a-vida-politica/



 

domingo, 18 de agosto de 2013

Ética, Direitos Humanos e Cidadania


             
(escrito em Português do Brasil)


 

 
O que a filosofia moral tem a nos dizer sobre os direitos humanos ? De que maneira a moralidade pode contribuir para a efetivação de certos direitos fundamentais ? O que significa do ponto de vista moral ter um direito ? O que é um direito ? O que é a moral ? O que é um direito moral ? Finalmente, como pensar o ser da moral no momento em que se perde de vista a moral de todos os seres ? Tais indagações traduzem a amplitude e a complexidade das questões que envolvem a relação entre ética e direitos humanos.  Tal relação não está imune a controvérsias, razão pela qual acreditamos que seu estudo deve necessariamente nos conduzir a uma problematização mais rigorosa acerca do que de fato representam os direitos humanos aos olhos da filosofia moral.

O conteúdo e a extensão dos direitos humanos não estão definitivamente fixados na consciência moral da humanidade. Não é absolutamente evidente para os indivíduos que eles gozam de direitos, nem, tampouco, que estes devem ser respeitados. Eis por que devemos, antes de tratar da natureza e das condições de possibilidade de sua efetivação, refletir sobre a origem de tais direitos. Se falamos em direitos fundamentais da pessoa humana, precisamos saber em que consistem tais direitos, por que são fundamentais e quem é essa pessoa que goza de um estatuto humano. Em suma : precisamos encontrar o justo sentido dos termos que  usamos em nosso discurso, mas que às vezes não sabemos o que significam.  Assim sendo, pretendemos inicialmente abordar o problema confrontando a idéia de direito com a noção de moralidade.

A idéia moderna de moral está alicerçada na subjetividade, enquanto os direitos humanos nascem como um conceito que assume uma dimensão coletiva. Mas, direitos coletivos implicam também obrigações coletivas  Nesse caso, não podemos pensar os direitos dissociando-os da noção de obrigação. Noutros termos, o primado moral do conceito de direito não pode substituir o de obrigação moral. É certo que pode haver direitos sem obrigações (no caso das crianças, por exemplo) e obrigações sem direitos (a exigência moral de não maltratarmos os animais, que, por sua vez, são destituídos de direitos formais), porém o que interessa destacar é a relação íntima de correspondência entre direitos humanos e obrigações morais.

Parece evidente que, do ponto de vista axiológico, o discurso sobre o direito ficaria desamparado sem a correlação com o discurso da obrigação. Se isto é verdade, podemos então aceder à primeira conclusão : formalmente, só podemos constituir um discurso sobre os direitos com base no discurso sobre as obrigações. Com efeito, o conceito de direito somente teria sentido se fosse elaborada uma pergunta prévia sobre as obrigações que lhe são correspondentes. Entretanto, se a cada direito correspondem diversas obrigações seria o caso de falarmos primeiramente em obrigações humanas e não em direitos humanos ?

Tais dificuldades revelam o quanto o universo dos direitos humanos se afigura  inexpugnável às abordagens simplistas, aos discursos do senso comum, às meras declarações de princípios. Aliás, há algo que permanece obscuro na idéia iluminista de direitos humanos. Afinal, como não reconhecer que existe um paradoxo entre o entusiasmo da razão emancipadora que funda tais direitos e a dúvida sobre a sua real efetivação?

Ora, a nossa experiência histórica comprova que a democracia não tem sido capaz de assegurar o exercício da liberdade e a prática da justiça, ou seja, não tem se mostrado apta a garantir a efetivação dos direitos humanos. A democracia pode ser uma condição necessária à efetivação dos direitos humanos, mas não é jamais a condição suficiente e definitiva para a sua realização. Até porque a democracia, como já haviam mostrado Platão e Aristóteles, não está imune à tentação totalitária, podendo, por isso, tornar-se uma variante do direito do mais forte, uma espécie de tirania da maioria.

 Como se vê, os problemas ligados à efetivação dos direitos humanos são numerosos, complexos e de natureza diversa. As dificuldades inerentes à plena realização de tais direitos nos impõem o desafio de repensar os fundamentos, a razão de ser e a amplitude de tais postulados. Os direitos humanos estão enredados, ainda, em dificuldades concernentes à legitimidade de alguns dos princípios normativos que os constituem. Diante dessa evidência, poder-se-ia perguntar : qual a origem dos valores e normas que fundam tais direitos? Uma genealogia da idéia de direitos humanos se impõe como condição prévia de sua elucidação. Além do que, para saber se tais direitos podem ser justificados, precisamos buscar uma definição precisa e adequada do termo. Em outras palavras, devemos elucidá-los a partir do seu conceito. Todavia, não podemos falar em conceito sem nos reportarmos aos seus fundamentos. Eis que surge aqui o problema acerca do fundamento dos direitos humanos. Sobre isto a filosofia tem algo a nos dizer.

A filosofia, ao longo da história, tem  elaborado princípios destinados a garantir que tais direitos sejam erigidos, proclamados e utilizados como idéias regulativas da vida em sociedade. É certo que o problema filosófico dos direitos humanos não pode ser dissociado do estudo dos problemas históricos, sociais, econômicos, jurídicos inerentes à sua realização. Por outro lado, convém colocar em questão a pertinência de tal investigação a partir das seguintes indagações : até que ponto o problema do fundamento dos direitos humanos torna-se prioritário na época em que vivemos ? Uma vez identificados tais direitos, como assentá-los sobre princípios consistentes, se nem mesmo a existência moral dos indivíduos goza hoje de uma base teórica segura ? Como elaborar um fundamento universal capaz de sustentar o peso da diversidade de culturas, hábitos, costumes, convenções e comportamentos próprios às inúmeras sociedades ? Em face de tais dificuldades, seria cabível compartilhar do ponto de vista de Norberto Bobbio  para quem “o problema grave do nosso tempo, com relação aos direitos humanos, não é mais o de fundamentá-los e sim o de protegê-los” (Bobbio, 1982, p. 25) ?  Mas, protegê-los implica em aceitar a noção de que já conseguimos implantá-los. O problema então é de outra ordem : em que sentido podemos afirmar que os direitos humanos já adquiriram estatuto de cidadania na comunidade de nações ? Trata-se de algo consensual e absolutamente livre de controvérsias sobre seu valor e eficácia ? Por fim, em que se fundamenta a idéia de que devemos protegê-los ?

Talvez seja correto pensar, em meio à crise do fundamento que nos assola, que a grande questão que nos desafia não é de caráter filosófico, histórico ou jurídico, mas sim político. Trata-se de garantir que, não obstante as solenes e inúmeras Declarações, tais direitos não sejam violados. Afinal, de que vale a pergunta acerca da natureza de tais direitos se os mesmos se afiguram inexeqüíveis ou mesmo desrespeitados? Sim, do ponto de vista pragmático, o que importa é analisar as condições, as vias e as situações mediante as quais este ou aquele direito pode ser realizado. Até porque parece claro que a exigência do respeito aos direitos humanos pressupõe, como condição sine qua non para a sua existência e realização, a certeza de que eles são fundamentados. Mas será que o problema concernente à fundamentação dos direitos humanos está mesmo resolvido ? A razão de ser de tais direitos constitui-se numa realidade consumada ? Trata-se de um problema com o qual nós não deveríamos mais nos preocupar ? Convém demonstrar como a questão da fundamentação de tais direitos se oferece ao olhar da filosofia, até porque é dever de ofício da mesma se ocupar das questões que antecedem toda e qualquer tentativa de solução do problema.

Ao longo da história da filosofia muitas foram as tentativas de fundamentar os direitos humanos. De maneira mais significativa tal intento se anuncia nitidamente a partir do século XVII com o jusnaturalismo de Locke, para quem o homem naturalmente tem direito à vida e à igualdade de oportunidades. Este preceito é seguido por Rousseau ao anunciar que todos os homens nascem livres e iguais por natureza. Nesse mesma perspectiva, podemos citar Kant para quem os homens têm direito à liberdade a qual deveria ser exercida de forma autônoma e racional.  Os teóricos do direito natural  recorriam freqüentemente à idéia de evidência para afirmar que tais direitos eram inelutáveis e, portanto, inquestionáveis.

Todavia, aquilo que era considerado evidente numa dada época deixou de sê-lo posteriormente (direito irrestrito à propriedade, direito de torturar prisioneiros, direito ao uso da violência, etc.). Aliás, uma breve digressão à filosofia política do passado pode atestar esse caráter de variabilidade que o acompanha. Assim, por exemplo, ao direito à propriedade propugnado por Hobbes e Locke foram acrescentados o direito à liberdade (Kant), os direitos políticos (Hegel), os direitos sociais (Marx). Eis porque se pode afirmar que cada direito é filho do seu tempo.

 Os direitos humanos têm hoje se alicerçado no valor intrínseco do princípio da dignidade. Ao elaborar a segunda fórmula do imperativo categórico, Kant anuncia “ age de tal forma que tu trates a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e nunca como um meio” (Kant, 1785, 420-1). Para ele, todo ser humano é dotado de dignidade em virtude de sua natureza racional, ou seja, cada ser humano tem um valor primordial independentemente de seu caráter individual ou de sua posição social. Eis por que o homem é tomado como um fim em si mesmo. A idéia de dignidade deve, pois, instaurar uma nova forma de vida capaz de garantir a liberdade e a autonomia do sujeito.

A dignidade se impõe como um valor incondicional, incomensurável, insubstituível, que não admite equivalente. Trata-se de algo que possui uma dimensão qualitativa, jamais quantitativa. Por isso, uma pessoa não pode gozar de mais dignidade do que outra. Mas como utilizar esse preceito nas situações-limite em que é necessário confrontar dignidades a fim de se escolher uma delas ? O que fazer diante da cena dantesca  de um corredor de hospital público repleto de pacientes (e como são pacientes !) que almejam atendimento e salvação ? Esta dúvida tem freqüentemente atormentado profissionais da saúde quando se vêem sem meios para curar, sem critérios para escolher. É evidente que tal princípio não pode servir como um imperativo aplicável em todos os casos, porém é em função dessa idéia volátil, e às vezes imprecisa, de dignidade que podemos identificar quando ela é negada, negligenciada, esquecida.

 É certo que não estamos aptos a fornecer uma definição ampla, satisfatória e inquestionável acerca do que vem a ser dignidade humana.  A esta pergunta talvez seja o caso de responder como o fez Santo Agostinho quando lhe indagaram acerca do que é o tempo : se ninguém me pergunta o que representa a dignidade humana eu sei o que ela significa, porém se alguém me pede para explicá-la eu já não saberia o que dizer. Mas se tal expressão (dignidade humana) é polissêmica e sujeita a múltiplas interpretações, como esperar que ela possa bem fundamentar tais direitos ?   

Decerto que ninguém precisa saber definir dignidade humana para reconhecer que ela existe como prerrogativa inalienável do sujeito. Precisaríamos então compreender o que ela significa para defender os que têm sua dignidade ultrajada ? Acreditamos que não. Todavia, nessa cruzada contra os detratores da nossa humanidade, estaremos também prontos a lutar pela dignidade das plantas e dos animais, como querem os ambientalistas ? Embora originariamente essa categoria se aplique ao homem, nada nos impede de conferir estatuto de ser existente dotado de dignidade às espécies dos reinos animal, vegetal ou mesmo mineral. Podemos conferir-lhes, mas também podemos conspurcar-lhes tal estatuto. Isto atesta o caráter antropocêntrico de tais direitos. É do homem que surgem, é para o homem que convergem.

Tanto quanto a noção de direito humanos a idéia de cidadania possui um sentido cada vez mais amplo. Os direitos do cidadão implicam a existência de uma ordem jurídico-política garantida pelo Estado. Tais direitos, portanto, não têm amplitude universal. São prerrogativas dos indivíduos (cidadãos) que participam dos destinos da pólis. Os direitos de cidadania precisam, pois, ser garantidos por dispositivos constitucionais. Em muitos casos, os direitos dos cidadãos coincidem com os direitos humanos fundamentais. Porém, estes se caracterizam pela amplitude e abrangência em relação aos primeiros. Assim, por exemplo, uma criança tem direitos humanos, mas não tem direitos ou deveres ligados à cidadania. O mesmo acontece com os doentes mentais e, em certo sentido, com os povos indígenas, que ainda sofrem a tutela do Estado. Do ponto de vista da variabilidade, os direitos de cidadania são mais sujeitos a modificações, pois podem ser ampliados, restringidos ou simplesmente abolidos pelos governos ou pelos poderes constituídos. Porém, em virtude de sua preeminência e complexidade, investigaremos a natureza dos direitos humanos, para, em seguida, mostrar como estes podem fundar alguns direitos de cidadania.

Os direitos humanos surgem como direitos fundamentais inatos a todos os homens. Constituem, por isso, uma prerrogativa inalienável. Enquanto tais, eles devem ser protegidos pela ordem jurídica dos Estados. Eles valem, pois, como direitos positivamente estabelecidos, já que, na realidade, estão fundados em critérios normativos. Direito à liberdade individual, à vida, à propriedade, à busca da felicidade, à segurança, à participação na vida sócio-política do país, são os primeiros direitos reconhecidos como fundamentais, cuja formulação remonta ao direito natural racional (Hobbes, Locke, Wolff). Nesse caso, eles são fundamentais não porque têm um fundamento, mas porque são imprescindíveis à existência do homem em sociedade. Porém, como garantir que o fundamento desses direitos fundamentais seja aceito e defendido pelo conjunto dos seres humanos ? Eis um problema de difícil solução.

            Atualmente tenta-se justificar o valor desses direitos recorrendo-se à idéia de que há uma consenso, um entendimento ou uma aceitação tácita dos mesmos por parte dos diversos membros da comunidade de nações. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) se propõe a demonstrar que um determinado sistema de valores é factível, que ele pode ser instaurado e compartilhado pela maioria dos homens do planeta. A universalização desse princípios regulativos da conduta humana revelaria que o humanidade partilha alguns valores comuns, cujo conteúdo seria  subjetivamente aceito e acolhido por todos os homens do planeta.

            Na Declaração de 1948, a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva. Ela envolve todos os homens e não apenas os cidadãos (como ocorre na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789). Para Bobbio, “os direitos do homem nascem como direitos naturais universais (jusnaturalismo), desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrar sua plena realização como direitos positivos universais ”(Bobbio, 1982, p. 30). Trata-se,  pois, de um ideal a ser alcançado por todos os povos e nações. Tal Declaração, contudo, está longe de ser definitiva, haja vista o caráter histórico e, portanto, provisório de tais direitos. Além disso, como indica Otfried Höffe, “a declaração dos direitos fundamentais é, sob diversos aspectos, primeiro um programa político e não a última pedra na positivação dos direitos do homem” (Höffe, 1991, p.376). De fato, a Declaração de 1948 traduz os direitos do homem contemporâneo que vive sob a égide dos valores determinados em sua época pelos contornos da história. A estes devem somar-se as exigências mais atuais que demandam novos direitos, como : o progresso da técnica, a degradação do meio-ambiente e o papel que nele ocupa o indivíduo, a ampliação dos canais de informação, o direito à verdade, etc. É isto que nos credencia a  substituir a noção de direitos humanos pela idéia de direitos fundamentais e, sobretudo, a atualizar os princípios norteadores das Declarações e Convenções existentes no mundo atual.  A história descortina os horizontes de revelação de novos direitos, atendendo sempre às exigências impostas pela consciência dos agentes sociais. Mas o que significa transformar um direito subjetivo num princípio universal ? Por que o problema referente à universalidade de tais direitos torna-se crucial no nosso tempo ?

            Inicialmente porque a garantia universal desses direitos se afigura impossível. Em seguida porque, convém reiterar, acreditamos que a questão do seu fundamento não está completamente resolvida. E finalmente porque a liberdade e a dignidade do homem constituem-se como um ideal a ser atingido; não configuram um fato, mas um valor; não são fenômenos que pertencem à esfera do ser, mas ao domínio do dever-ser; não são uma posse, mas uma conquista da humanidade. Se os direitos humanos traduzem  um ideal da razão humana, o desafio que se impõe ao homem contemporâneo é de outra ordem : ele  consiste na dificuldade de se encontrar as vias concretas para a sua realização.

            Acerca dos obstáculos que envolvem a proteção e a efetivação dos direitos proclamados, Bobbio nos fornece a imagem de uma estrada desconhecida “na qual trafegam, na maioria dos casos, dois tipos de caminhantes, os que enxergam com clareza, mas têm os pés presos e os que poderiam ter os pés livres, mas não têm os olhos vendados”(Bobbio, 1982, p. 37). Eis o drama que se desenha sob o horizonte histórico da nossa época : a conquista de tais direitos traz em si o problema de como realizá-los. Além do mais, o fato de o senso moral comum aceitar o conteúdo de tais direitos não significa que seu exercício seja simples. Até porque, embora aspirem à universalidade, tais direitos não são jamais absolutos. Aliás, o fato de desejarmos que os mesmos alcancem uma amplitude universal e de exigirmos um fundamento absoluto que lhes dê sustentação não garante sua realização prática. Aqui surgem novas dificuldades que se expressam assim : como fundar de modo absoluto direitos regidos pela variabilidade dos rumos da história ? Como não considerar vaga a expressão direitos do homem ?

Todos concordam que é necessário encontrar um meio capaz de compatibilizar a pluralidade das manifestações políticas e jurídicas dos indivíduos modernos e a identidade do homem. Mas, quem é o homem de que trata os direitos humanos ? Como falar em direitos humanos quando não se tem uma idéia clara do que seja o homem ? Quem é ontologicamente esse homem que definimos como ser humano ? Trata-se de um ideal destituído de singularidade concreta ? Seria este homem um ser que transcende as vicissitudes e abjeções próprias ao sujeito real ? Enfim, como relacionar a objetividade dos postulados de tais direitos com as particularidades próprias à subjetividade de cada   indivíduo ?

O homem dos direitos humanos é designado sob a categoria de universalidade que supõe uma definição baseada num ponto de vista moral imparcial, independente de toda determinação particular. Trata-se de um homem situado fora do tempo e do espaço. Este homem não tem face nem história. É uma entidade difusa em cuja face pode aderir qualquer semblante, qualquer perfil. Pode-se então afirmar que os direitos humanos estariam fundados numa espécie de humanismo abstrato? Se isso é verdade, como então coadunar essa idéia abstrata de humanidade do homem com as formas de liberdade e os conteúdos do direito que lhe são correspondentes ? Como, enfim, manter o direito incólume ao surto imprevisível dos instintos de cada ser humano ?

O homem real, como bem demonstrou Kant, é também portador de inclinações. O caráter passional dos homens é, para ele, um fator positivo no que se refere ao já afirmado desenvolvimento da espécie humana, pois tais inclinações levam ao aperfeiçoamento das relações sociais entre os indivíduos. A razão, que define no plano prático as relações universais dos homens entre si, determina, no mesmo nível, a possibilidade deste desenvolvimento. A razão liberta o homem do impulso instintivo, inserindo-o na sociedade.

            Nessa direção, o direito natural passa a ser reconhecido pela razão humana na forma de sistema de leis racionais a priori. Isso indica que a idéia de uma comunidade de indivíduos deve se assentar no direito natural dos homens de exercer sua liberdade e autonomia. Segundo Kant, a noção de que aqueles que obedecem devem, também, reunidos, legislar, se encontra na base de todos as formas de Estado.

Aristóteles, aliás, no livro I da Política descreve o homem como um “animal político” (zôon politikon) dotado de logos, de discurso e razão. Palavra e pensamento fundam a possibilidade da existência plural dos homens em sociedade. Entre os seres vivos, o homem enquanto animal político, se destaca como o único apto a discernir sobre os valores, a definir o justo e o injusto, a escolher entre o bem e o mal. Ele não deseja apenas viver, mas bem viver. A política confere ao homem uma disposição para viver em sociedade, como animal social, mas quando separado da lei e da justiça ele pode transformar-se num ser inumano. O homem preso às instituições é o melhor de todos, mas quando ele delas se afasta torna-se o pior dos demônios. Sendo assim, em que se funda a obrigação de respeitarmos os direitos humanos ? 

No fato de que tais direitos constituem-se como um atributo próprio a todos os seres racionais, poderia ser a resposta. Ou ainda, na exigência que o imperativo da lei moral impõe à nossa vontade. Assim, viver sob a égide dos direitos humanos implica em cumprir as obrigações que a liberdade determina a todo ser responsável. Trata-se aqui primeiramente de uma obrigação imposta à moralidade do sujeito pela razão. Todavia, sabemos que não basta praticar determinado ato segundo a norma ou regra que o disciplina. É preciso também examinar as condições concretas nas quais ele se realiza. Afinal, para que possamos imputar a alguém uma responsabilidade moral por determinado ato, é necessário que o sujeito não ignore as circunstâncias nem, tampouco, as conseqüências de sua ação, e que a causa de seus atos esteja nele próprio, ou seja, que sua conduta seja livre. Conhecimento da lei e liberdade prática são  prerrogativas que nos remetem ao princípio da responsabilidade. Assim, para que o indivíduo possa escapar das possíveis sanções, ele precisará justificar o desconhecimento de tais normais ou então o fato de que não é obrigado a seguí-las. Somente assim a ignorância o isentaria de responsabilidade. A ignorância, porém, não exime de responsabilidade aquele que é responsável por sua própria ignorância.

O problema acerca da constituição de instrumentos eficazes que possam garantir universalmente o respeito e o cumprimento dos direitos humanos permanece irresolúvel. Em muitos casos, podemos apelar à ordem moral vigente como forma de garantir o seu respeito. Mas que força pode assumir tal apelo num mundo marcado pelo egoísmo e pela intolerância ? Vê-se que o impasse se mantém, pois não há como instituir um direito legal ou moral sobre algo, sem que se pense em constituir paralelamente uma instância legal ou moral de cobrança. É mais fácil imaginar a existência de tal instância no âmbito de Direito do que no âmbito da moral. Parece evidente que, se temos um direito, a ninguém é permitido violá-lo. Neste caso, todos seriam o destinatário da exigência de cobrança que se vincula ao direito. Porém, é aceitável que todos também possam exercer o papel de instância  coercitiva ou punitiva ? Se isto parece impossível, como então conceber um direito moral sem uma instância de cobrança ? Que valor tem um direito que está no papel, mas que não se pode se exigir sua observância ? Há, enfim, algo de incongruente nessa noção ?

Em sua obra A transparência do mal, Jean Baudrillard afirma que o discurso dos direitos humanos  se baseia numa crença iluminista na atração natural do bem, numa idealidade das relações humanas. Essa busca exacerbada do bem implica no desejo de minimalização do mal, numa espécie de profilaxia da violência, de extinção da força indomável que domina a natureza humana. Tentar fugir ao espectro do mal tão-somente conduz tais direitos para fora do universo humano, diz ele. Tudo se passa como se devêssemos aprender a conviver com a desrazão que reside em cada homem. Esta idéia indica que resta sempre algo de insondável na nossa maneira humana de ser. Há coisas que somente a razão pode procurar, mas ela jamais as encontrará; há coisas que só o instinto poderia encontrar, mas ele é, às vezes, cego para procurá-las. Se, todavia, somos irremediavelmente propensos a negar a força da racionalidade e, por conseguinte, as regras ordenadoras da nossa conduta (a lei do dever, o respeito aos direitos humanos), como acreditar no progresso moral da humanidade ? Como fugir àquilo que Kant designa de insociável sociabilidade ?

Para Kant, o antagonismo da espécie se refere à sua insociável sociabilidade já que o desejo de se associar convive, ao mesmo tempo, como a relutância em realizá-lo. O instinto de sociabilidade conduz os indivíduos a uma vida associativa. Contudo, interesses egoístas e inclinações o levam a negar as normas regulativas da vida em sociedade. Todavia, esta tendência ambígua não é algo em si mesmo deletério, isto porque este movimento desperta a capacidade criativa do indivíduo, resgatando-o da indolência e da letargia. A insociabilidade tende a fomentar o desenvolvimento da espécie ao despertar a avidez dos homens incentivando-os à concorrência, à luta pela sobrevivência. Assim, ou os homens optam racionalmente por um fim histórico ou a natureza conduzi-los-á forçosamente, mediante guerras, conflitos e outras desgraças, à sua consecução.

Mesmo quando tencionamos adquirir vantagens em nosso proveito, somos levados, diz Kant,  a seguir, como linha de orientação, as indicações da natureza. E mesmo agindo em favor de nós mesmos, conseguimos realizar um fim mais amplo e elevado. Desse modo, aquilo que se afigura nebuloso e disperso nos indivíduos pode representar no conjunto da espécie um desenvolvimento contínuo e progressivo. Somente na espécie é que se pode vislumbrar o sentido das disposições naturais do homem, isto porque, ao contrário dos outros animais, os homens possuem a capacidade de transmitir às futuras gerações seus feitos e conquistas. Assim, enquanto as tendências anti-sociais conduzem os homens à vida privada e passiva, as disposições racionais os levam a se libertar das limitações impostas pelas inclinações passionais.  Kant não confunde a história da humanidade com a história de homens singulares. Assim, já que o indivíduo racional é mortal, confiou-se à espécie humana a realização do seu destino racional. A filosofia da história de Kant demonstra a existência  de evidências que podem atestar o progresso moral da humanidade.

Kant considerava que a maneira entusiasmada com que o indivíduo concebia um fato histórico relevante (a Revolução Francesa, por exemplo) refletia as motivações da espécie humana para o melhor. O tropismo libertário seria concebido como uma destinação natural do homem. Ora, a modernidade nos legou a idéia de progresso, mas também a realidade de certos males. Suas fronteiras delimitam, por um lado, a idéia de liberdade advinda da Revolução Francesa e, por outro, o terror que nela vem expresso sob forma de guilhotina e intolerância.

De fato, a Revolução Francesa representa o signo histórico que revela a disposição moral da humanidade, porém não podemos dissociá-la desse crime que é o regicídio. Eis o exemplo do enigma  insondável que define os rumos de um poder originário que pode se conduzir para bem ou para o mal. O terror pode ser considerado como um dos marcos históricos da radicalidade do mal. Contudo, a assepsia do mal não mata o bacilo da maldade, apenas antecipa outros tipos de desastre. Além do que, como afirma Bernard-Henri Lévy, “a vontade de pureza, quando torna-se obsessão, pode conduzir ao integrismo” (Bernard-Henri Lévy, 1994, p.97). Nosso mundo sonha em acabar com a contradição, a negatividade, a morte, o mal. Todavia, somos muitas vezes incapazes de  distinguir uma guerra justa de uma paz injusta.

Para Baudrillard , “o direito à vida, salienta, emociona todas as almas piedosas, até o momento em que chega o direito à morte, ponto no qual se manifesta o absurdo de tudo isso. Porque morrer –tanto quanto viver – é  um destino, uma fatalidade (feliz ou infeliz), jamais um direito” (Baudrillard, 1990, p.94), diz ele. Trata-se, pois, de um acidente natural que pertence à ordem do ser e não do dever-ser. Eis todo o absurdo de se associar o direito a fenômenos insólitos, imponderáveis, imprevisíveis. Para muitos seria bizarro se depois de Chernobyl e do naufrágio do submarino atômico, a Rússia requisitasse o direito à catástrofe, direito ao acidente, ao crime, ao erro, o direito ao pior  e não apenas ao melhor. Bizarro talvez, mas não ilógico do ponto de vista da axiologia.

Outros exemplos podem ser oferecidos : o caráter inquestionável do direito ao trabalho deve impedir que alguns exijam o direito à preguiça, ao ócio, ou mesmo, ao desemprego ? Se o direito à vida é inalienável porque também não o é o direito à morte ? Como podemos recriminar alguém que deseja se despedir de uma vida sofrida, desgraçada, mórbida ? Há algo de absurdo nessas considerações ?  O absurdo, para Beaudrillard, reside na absolutização de certos direitos. Eis um exemplo airoso dessa situação : um condenado à morte nos Estados Unidos  reclama o direito de ser executado imediatamente contra todas as ligas de direitos humanos que se esforçam para obter-lhe o perdão. Por isso, à célebre frase de Fichte, o verdadeiro direito do homem é a possibilidade de adquirir direito, poderíamos acrescentar : e de recusar tais direitos.

Podemos reivindicar o direito de ser isso ou aquilo. Mas o que significa ser isso ou aquilo se tivermos tais direitos ? A postulação do direito indica uma falta, uma carência, uma lacuna. Ademais, se uma coisa é evidente, o direito torna-se supérfluo. Quando a reivindicação de direito começa a recair sobre algo que sempre se mostrou necessário e inelutável, então devemos começar a nos preocupar. Assim, quando passarmos a exigir o direito à água, ao ar, ao espaço, é sinal de que tais elementos estão se extinguido progressivamente.  O direito de resposta, antes de expressar uma conquista da democracia, indica a ausência de diálogo. Assim também acontece em todas as situações nas quais o direito se transforma em dogma. Se tudo pode remontar ao direito, nada mais é direito.

Os direitos do indivíduo perdem sentido quando ele deixa de ser um ente alienado, privado do próprio ser, estranho a si mesmo. O sistema de direitos humanos torna-se complemente inadequado e ilusório numa conjuntura  em que o indivíduo torna-se um promotor da própria existência. Mas, sabemos, estamos longe de viver essa realidade, razão pela qual tais direitos existem teoricamente para promover a justiça e  garantir  que os mais fracos não sejam massacrados pelos mais fortes. Diga-me qual e a sua fraqueza ou indigência que eu direi qual é o seu direito. Eis a máxima do nosso tempo.

Todos estamos prontos a aceitar que as vítimas, enquanto vítimas, têm direitos. Mas quem a rigor é vítima e do quê ? Esta é a pergunta que devemos primeiramente responder. Além disso, já vimos, a vítima pode abdicar do direito de usufruir de um direito.  Como não reconhecer aqui um impasse representado pela existência de direitos antinômicos ou mesmo excludentes ? Trata-se de um ato de justiça exercer uma discriminação positiva (ação afirmativa) em favor de membros de certos grupos oprimidos ou de minorias sub-representadas socialmente ? Do ponto de vista dos direitos humanos é aceitável a interferência das grandes nações para evitar genocídios ou conflitos étnicos em países convulsionados ? Ora, parece  polêmico o direito que se confere a um Estado de se imiscuir nos assuntos alheios. O direito de ingerência, por exemplo, permite que um país (ou um grupo de países) representante de um organismo internacional  ou de uma comunidade de nações invada um Estado soberano, se esta soberania serve de pretexto para a prática de crimes (genocídio, limpeza étnica, etc.) contra a população indefesa. É verdade que tal possibilidade representa, senão um progresso, pelo menos uma conquista do poder coercitivo da razão que obriga os tiranos e exterminadores de minorias a refletir bastante antes de empreenderem suas armas mortíferas. Mas, a ingerência é vista com desconfiança porque nela se confundem motivações geopolíticas, interesses estratégicos e atitudes humanitárias. Atitudes humanitárias que, aliás, não deixam de suscitar questionamentos e condenações.

O problema é que, como acentua Bernard-Henri Lévy, o humanitário transformou-se numa grande medicina sem fronteiras cuja função não é mais coibir os assassinos, mas apenas “socorrer as vítimas ou  fazê-las morrer de barriga cheia” (Bernard-Henri Lévy, 1994, p. 144) O humanitário é um vitalismo. Em lugar de conferir uma imagem nobre do homem, de pensá-lo como um ser dotado de pensamento e linguagem, ele o reduz a um princípio de vida que tem algo em comum com os animais. É como animais que os tiranos também tratam suas vítimas. A ajuda humanitária trata os seres que padecem da tirania como corpos que merecem atenção depois de terem sido reduzidos a coisas pelos seus algozes. Tal postura pode assim ser resumida : massacrem, em seguida nós faremos o resto! Henri Dunant (fundador da cruz vermelha) falava em humanizar os campos de batalha, sem nada mencionar sobre a origem do horror que emanava da desumanidade dos tiranos.

Há, pois, algo de infame na ideologia humanitária. Ela olha para as grandes tragédias humanas, mas não consegue ver que é preciso salvar os homens. O espírito humanitário funda-se numa espécie de política do sentimento, num tipo peculiar de compaixão, cujo motor é a piedade e a comoção diante do terror. Eis a imoralidade reinante num  mundo que não sabe mais distinguir entre os torturadores e suas vítimas. A aberração da nossa época pode ser representada pela figura terna de um soldado da O.N.U,  um combatente desarmado, uma sentinela tornada alvo. Há algo de patético no espetáculo dessa força impotente, que, resignadamente, ajuda a gerenciar não os conflitos, mas as guerras de extermínio.

A forma última da perversidade que marca o nosso tempo é representada pela frase infame : “tudo é possível”. Isto porque constitui-se ela na chave de acesso ao reino do  “tudo é aceitável”. Já não há limite que separe o provável do insano. São poucos as coisas que tendem a nós provocar aversão. Tem se tornado difícil definir o inaceitável. Espectadores inertes diante do mal que se lhe recai e indiferentes às dores do outro, assim somos nós em face do teatro de horrores do nosso século. Podemos recusar o enfrentamento, mas não podemos esquecer : certos crimes são inexplicáveis. Hannah Arendt fala das duas experiências radicais do nosso século : o totalitarismo, que traz à luz a antinomia da política e da liberdade; e as possibilidades de aniquilação orquestradas pelos Estados modernos, que ela designa de antinomia entre política e conservação da vida. Pois bem, o aniquilamento do homem pelo Estado continua sendo o símbolo maior do caráter bestial da violência humana neste fim milênio. A guerra da Bósnia, o massacre dos chechenos, a perseguição dos curdos, o extermínio dos tutsis em Ruanda e no Burundi, atestam o que já previam os gregos : o trágico dominou a história e a transformou não em destino, mas em terror. Enquanto isso, pouco a pouco temos nos acostumados com a mentira, a dissimulação e a provocação dos que nos governam e com a prepotência dos que mandam nos que nos governam. Fala-se em universalização dos valores ocidentais, em globalização e transculturalismo, num mundo cada vez mais marcado pelo tribalismo e pela xenofobia.

Por isso, não podemos postular a universalização dos direitos humanos sem perguntar se o evolucionismo cosmopolita é possível. Há uma força irreconciliável que atua em todas as culturas, fazendo com uma pretensa lei universal jamais seja inelutável. Além disso, seria justo obrigar os indivíduos a respeitá-los como valores universais ? Se os direitos humanos repousam sobre um princípio de totalidade (a idéia de dignidade), podemos livrá-lo da tentação totalitária ? Se há algo de totalitário na idéia de totalidade, como dizia Hannah Arendt, os direitos humanos estão livres das motivações ideológicas ou etnocêntricas das nações que os proclamaram ? A postulação de uma só ordem não seria o sinal mais evidente de que vivemos uma época de grande desordem ? A tranqüilidade ou a indiferença com que aceitamos o inaceitável reflete a indolência que domina nosso viver. A sociedade contemporânea conhece bem as marcas do mutismo  que conduzem muitos a abdicar de direitos em troca de benefícios pecuniários. Noutros termos,  nunca tantos venderam por tão pouco sua alma ao diabo. O homo economicus é o principal personagem desse cena em que os direitos humanos atuam como coadjuvantes mudos do espetáculo.                       

Soma-se a isso, a propagação da surdez, a cegueira endêmica, a desertificação das almas. A barbárie econômica nos arrasta, com todos os nossos direitos, para fora do campo da vida. Nosso mundo bem sabe que os valores financeiros não são ativos reais. São cifras, símbolos inverificáveis, números que migram de uma praça financeira a outra, como entidades espectrais que assombram governos, países, nações. Enquanto isso, o poder político opera dentro de paisagens econômicas. Os agentes financeiros decidem, ordenam, pressionam, controlam os que nos governam. O capital financeiro, o “pilar” desse novo modelo de civilização, se impõe como uma força indomável, onipotente, devastadora, que desconhece fronteiras e limites. Um ameaça oculta, sinistra. Eis o retrato de uma experiência humilhante : homens vencidos, fracassados, considerados inúteis e supérfluos. Eles são julgados incompatíveis com a sociedade que os exclui. Eles são acusados por serem suas vítimas. O paradoxo é a marca do absurdo que caracteriza os nossos tempos.

Se antes os indivíduos lutavam contra a exploração, hoje lutam contra a falta dela. Alguns lutam para reencontrar a sua desumana condição : desejam ser explorados. Muito preferem sentir as labaredas do inferno do que nada sentir. Dante não imaginaria inferno pior do que o daqueles que clamam desesperadamente pelo inferno; aqueles para quem a maior danação seria ser expulso dele.

O desastre está no fato de que tudo parece natural, inevitável, sem alternativa, incontornável e o que é pior : conseguem nos convencer de que tudo isso é necessário. A indiferença acaba permitindo nossa adesão passiva à realidade que nos é imposta. Não estamos diante de um fato consumado, estamos trancados nele. Como demonstra Saramago em seu romance Ensaio sobre a cegueira, muitos estão acordados, mas fazem de conta que estão dormindo.

A apatia se revela como incapacidade de defender nossos próprios valores, a fraqueza de uma vontade traduzida em conduta de resignação e passividade. Enquanto admitimos que somos filhos de uma época de desencanto, o mundo amadurece para toda forma de crueldade. O encontro da miséria da alma com a amargura de viver  dá origem a pior forma de violência : a violência da calma.

É certo que o homem jamais domesticará por completo o lobo que repousa nele próprio. Sabemos também o quando custa a uma sociedade que deseja radicalmente extirpar sua parte maldita. Por isso, o ideal de uma sociedade livre, justa, livre e fraterna, antes de indicar nosso triunfo, talvez seja uma maneira de atestar a nossa ruína. Como falar em liberdade e em direitos num mundo assolado pelo espectro do egoísmo e da moral do interesse ? Por que temos tendência a defender com mais volúpia nossos direitos do que aqueles que se referem ao outro ? Quem é esse outro, às vezes tão próximo, às vezes tão estranho a nós mesmos ? A prática cruel e insana do racismo mostra o quanto os homens são incipientes nessa arte de aceitar e respeitar o outro.

O racismo expressa uma forma alucinada de negação da diferença. O racismo começa a existir quando o outro torna-se diferente. Hoje tudo se fala em termos de alteridade, ou seja, da existência factual do outro, mas a alteridade não é a diferença. A diferença mata a alteridade. O outro começa a ser rechaçado no momento em que se torna diferente. A crítica política e ideológica do racismo é uma crítica formal, já que só ataca a obsessão racista, sem atacar o seu núcleo principal : a própria idéia de diferença. Com isso, deixa-se de demonstrar que a idéia de diferença, da qual se nutre o racismo, é uma ilusão. Tal crítica acaba tornando-se uma ilusão crítica, já que a nada se refere. Eis por que o racismo tem sobrevivido à critica racional que se lança contra ele. Tão grave quanto o fragililidade da crítica antiracista e a ingenuidade dos que suspeitam que a cultura racista pode sucumbir ao tempero da miscigenação. O Brasil é um caso emblemático desse auto-engano.

A questão racial (ou étnica) permanece tão mal resolvida no Brasil quanto em outros países. O  racismo ideológico, todavia, tem  sido aparentemente menos cultuado no nosso país, em virtude da confusão étnica e da multiplicação da mestiçagem. A discriminação racial parece diluída no cruzamento das linhas de diversas etnias, como se fossem  as linhas de nossa mão. Essa forma de desqualificação do racismo por dispersão do objeto é mais sutil e eficaz do que a luta ideológica. Todavia, ela não é suficiente para afugentar a sombra da bestialidade e da insensatez que o racismo representa.

A prática voluntária da violação dos direitos humanos, seja ela de caráter racista, sexista, regionalista,  nos coloca em face da fraqueza da vontade ou da escolha do pior. Esse problema existe desde o intelectualismo moral socrático, que Aristóteles apresenta no livro VII de sua Ética a Nicômaco, segundo o qual ninguém age mal deliberadamente. Ora, temos bastante dificuldade, do ponto de vista moral, para admitir que o mal possa ser praticado contra o semelhante por aqueles que sabem o que é o bem. No entanto, sabemos que certas pessoas têm o prazer em fazer o mal por escolha própria e em fugir do bem por decisão autônoma. Então convém recolocar a questão : como acreditar no progresso moral da humanidade se somos incapazes de domesticar as nossa inclinações malévolas, de controlar os nossos ímpetos destrutivos ? Contudo, o mal não repousa na irracionalidade das paixões. Ele é antes o resultado das nossa decisões e escolhas racionais, ou seja, trata-se de um produto da nossa liberdade e não da vontade de uma gênio diabólico que residiria em todos nós.

Libertar-se do mal implica também em se libertar do mal da liberdade. Mas isto corresponderia também a se libertar da própria liberdade. O que  desejamos afirmar  com isso : libertação ilimitada ou degradação ilimitada são as duas faces de uma síntese perversa. A tendência para o mal não deixa de ser uma possibilidade da liberdade humana.  Vimos, com Aristóteles, que  a constituição do homem como animal político não elimina o risco de desmesura, a ameaça da tragédia. Por isso, recolocar a questão : se a disposição para o bem não é soberana para suprimir a propensão para o mal, como podemos acreditar no progresso moral da humanidade ? Como transformar uma curva (a liberdade) numa linha reta (os direitos humanos) sem desfigurar sua natureza ou geometria irregular ?  

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  

ARENDT, Hannah, Le système totalitaire. Les origines do totalitarisme, Paris : Éditions du Seuil, Paris, 1972. 

ARISTÓTELES, Política, (Obras Completas) Buenos Aires : Aguillar, 1982.  

BAUDRILLARD, Jean, A transparência do mal. Ensaio sobre os fenômenos extremos, São Paulo : Papirus, 1990. 

FICHTE, Johan C., Introdução à teoria do Estado (1813), São Paulo : Abril Cultural, 1980.  

TUGENDHAT, Ernst, Lições sobre ética, Petrópolis : Vozes, 1977.  

KANT, Immanuel, Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Lisboa : Edições 70, 1980.   

LÉVY, Bernand-Henri, La pureté dangereuse, Paris : Grasset, 1994.  

SARAMAGO, José, Ensaio sobre a cegueira, São Paulo : Companhia das Letras, 1994.  

HOBBES, Thomas, Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, São Paulo : Abril Cultural, 1983.  

ROUSSEAU, Jean-Jacques, Do contrato Social (1757), São Paulo : Abril Cultural, 1985.

 

Marconi Pimentel Pequeno,