(escrito em Português do Brasil)
O que a
filosofia moral tem a nos dizer sobre os direitos humanos ? De que maneira a
moralidade pode contribuir para a efetivação de certos direitos fundamentais ?
O que significa do ponto de vista moral ter um direito ? O que é um direito ? O
que é a moral ? O que é um direito moral ? Finalmente, como pensar o ser da
moral no momento em que se perde de vista a moral de todos os seres ? Tais
indagações traduzem a amplitude e a complexidade das questões que envolvem a
relação entre ética e direitos humanos.
Tal relação não está imune a controvérsias, razão pela qual acreditamos
que seu estudo deve necessariamente nos conduzir a uma problematização mais
rigorosa acerca do que de fato representam os direitos humanos aos olhos da
filosofia moral.
O conteúdo e
a extensão dos direitos humanos não estão definitivamente fixados na
consciência moral da humanidade. Não é absolutamente evidente para os
indivíduos que eles gozam de direitos, nem, tampouco, que estes devem ser
respeitados. Eis por que devemos, antes de tratar da natureza e das condições
de possibilidade de sua efetivação, refletir sobre a origem de tais direitos.
Se falamos em direitos fundamentais da pessoa humana, precisamos saber em que
consistem tais direitos, por que são fundamentais e quem é essa pessoa que goza
de um estatuto humano. Em suma : precisamos encontrar o justo sentido dos
termos que usamos em nosso discurso, mas
que às vezes não sabemos o que significam.
Assim sendo, pretendemos inicialmente abordar o problema confrontando a
idéia de direito com a noção de moralidade.
A idéia
moderna de moral está alicerçada na subjetividade, enquanto os direitos humanos
nascem como um conceito que assume uma dimensão coletiva. Mas, direitos
coletivos implicam também obrigações coletivas
Nesse caso, não podemos pensar os direitos dissociando-os da noção de
obrigação. Noutros termos, o primado moral do conceito de direito não pode
substituir o de obrigação moral. É certo que pode haver direitos sem obrigações
(no caso das crianças, por exemplo) e obrigações sem direitos (a exigência
moral de não maltratarmos os animais, que, por sua vez, são destituídos de
direitos formais), porém o que interessa destacar é a relação íntima de
correspondência entre direitos humanos e obrigações morais.
Parece
evidente que, do ponto de vista axiológico, o discurso sobre o direito ficaria
desamparado sem a correlação com o discurso da obrigação. Se isto é verdade,
podemos então aceder à primeira conclusão : formalmente, só podemos constituir
um discurso sobre os direitos com base no discurso sobre as obrigações. Com
efeito, o conceito de direito somente teria sentido se fosse elaborada uma
pergunta prévia sobre as obrigações que lhe são correspondentes. Entretanto, se
a cada direito correspondem diversas obrigações seria o caso de falarmos
primeiramente em obrigações humanas e não em direitos humanos ?
Tais
dificuldades revelam o quanto o universo dos direitos humanos se afigura inexpugnável às abordagens simplistas, aos
discursos do senso comum, às meras declarações de princípios. Aliás, há algo
que permanece obscuro na idéia iluminista de direitos humanos. Afinal, como não
reconhecer que existe um paradoxo entre o entusiasmo da razão emancipadora que
funda tais direitos e a dúvida sobre a sua real efetivação?
Ora, a nossa
experiência histórica comprova que a democracia não tem sido capaz de assegurar
o exercício da liberdade e a prática da justiça, ou seja, não tem se mostrado
apta a garantir a efetivação dos direitos humanos. A democracia pode ser uma
condição necessária à efetivação dos direitos humanos, mas não é jamais a
condição suficiente e definitiva para a sua realização. Até porque a
democracia, como já haviam mostrado Platão e Aristóteles, não está imune à
tentação totalitária, podendo, por isso, tornar-se uma variante do direito do
mais forte, uma espécie de tirania da maioria.
Como se vê, os problemas ligados à efetivação
dos direitos humanos são numerosos, complexos e de natureza diversa. As
dificuldades inerentes à plena realização de tais direitos nos impõem o desafio
de repensar os fundamentos, a razão de ser e a amplitude de tais postulados. Os
direitos humanos estão enredados, ainda, em dificuldades concernentes à
legitimidade de alguns dos princípios normativos que os constituem. Diante
dessa evidência, poder-se-ia perguntar : qual a origem dos valores e normas que
fundam tais direitos? Uma genealogia da idéia de direitos humanos se impõe como
condição prévia de sua elucidação. Além do que, para saber se tais direitos
podem ser justificados, precisamos buscar uma definição precisa e adequada do
termo. Em outras palavras, devemos elucidá-los a partir do seu conceito.
Todavia, não podemos falar em conceito sem nos reportarmos aos seus
fundamentos. Eis que surge aqui o problema acerca do fundamento dos direitos
humanos. Sobre isto a filosofia tem algo a nos dizer.
A filosofia,
ao longo da história, tem elaborado
princípios destinados a garantir que tais direitos sejam erigidos, proclamados
e utilizados como idéias regulativas da vida em sociedade. É certo que o
problema filosófico dos direitos humanos não pode ser dissociado do estudo dos
problemas históricos, sociais, econômicos, jurídicos inerentes à sua
realização. Por outro lado, convém colocar em questão a pertinência de tal
investigação a partir das seguintes indagações : até que ponto o problema do
fundamento dos direitos humanos torna-se prioritário na época em que vivemos ?
Uma vez identificados tais direitos, como assentá-los sobre princípios
consistentes, se nem mesmo a existência moral dos indivíduos goza hoje de uma
base teórica segura ? Como elaborar um fundamento universal capaz de sustentar
o peso da diversidade de culturas, hábitos, costumes, convenções e
comportamentos próprios às inúmeras sociedades ? Em face de tais dificuldades,
seria cabível compartilhar do ponto de vista de Norberto Bobbio para quem “o problema grave do nosso tempo, com relação aos direitos humanos, não
é mais o de fundamentá-los e sim o de protegê-los” (Bobbio, 1982, p. 25)
? Mas, protegê-los implica em aceitar a
noção de que já conseguimos implantá-los. O problema então é de outra ordem :
em que sentido podemos afirmar que os direitos humanos já adquiriram estatuto
de cidadania na comunidade de nações ? Trata-se de algo consensual e
absolutamente livre de controvérsias sobre seu valor e eficácia ? Por fim, em
que se fundamenta a idéia de que devemos protegê-los ?
Talvez seja
correto pensar, em meio à crise do fundamento que nos assola, que a grande
questão que nos desafia não é de caráter filosófico, histórico ou jurídico, mas
sim político. Trata-se de garantir que, não obstante as solenes e inúmeras Declarações, tais direitos não sejam
violados. Afinal, de que vale a pergunta acerca da natureza de tais direitos se
os mesmos se afiguram inexeqüíveis ou mesmo desrespeitados? Sim, do ponto de
vista pragmático, o que importa é analisar as condições, as vias e as situações
mediante as quais este ou aquele direito pode ser realizado. Até porque parece
claro que a exigência do respeito aos direitos humanos pressupõe, como condição
sine qua non para a sua existência e
realização, a certeza de que eles são fundamentados. Mas será que o problema
concernente à fundamentação dos direitos humanos está mesmo resolvido ? A razão
de ser de tais direitos constitui-se numa realidade consumada ? Trata-se de um
problema com o qual nós não deveríamos mais nos preocupar ? Convém demonstrar
como a questão da fundamentação de tais direitos se oferece ao olhar da
filosofia, até porque é dever de ofício da mesma se ocupar das questões que
antecedem toda e qualquer tentativa de solução do problema.
Ao longo da
história da filosofia muitas foram as tentativas de fundamentar os direitos
humanos. De maneira mais significativa tal intento se anuncia nitidamente a partir
do século XVII com o jusnaturalismo de Locke, para quem o homem naturalmente
tem direito à vida e à igualdade de oportunidades. Este preceito é seguido por
Rousseau ao anunciar que todos os homens nascem livres e iguais por natureza.
Nesse mesma perspectiva, podemos citar Kant para quem os homens têm direito à
liberdade a qual deveria ser exercida de forma autônoma e racional. Os teóricos do direito natural recorriam freqüentemente à idéia de evidência
para afirmar que tais direitos eram inelutáveis e, portanto, inquestionáveis.
Todavia,
aquilo que era considerado evidente numa dada época deixou de sê-lo
posteriormente (direito irrestrito à propriedade, direito de torturar
prisioneiros, direito ao uso da violência, etc.). Aliás, uma breve digressão à
filosofia política do passado pode atestar esse caráter de variabilidade que o
acompanha. Assim, por exemplo, ao direito à propriedade propugnado por Hobbes e
Locke foram acrescentados o direito à liberdade (Kant), os direitos políticos
(Hegel), os direitos sociais (Marx). Eis porque se pode afirmar que cada
direito é filho do seu tempo.
Os direitos humanos têm hoje se alicerçado no
valor intrínseco do princípio da dignidade.
Ao elaborar a segunda fórmula do imperativo categórico, Kant anuncia “ age de tal forma que tu trates a humanidade,
tanto na tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e
nunca como um meio” (Kant, 1785, 420-1). Para ele, todo ser humano é dotado
de dignidade em virtude de sua
natureza racional, ou seja, cada ser humano tem um valor primordial
independentemente de seu caráter individual ou de sua posição social. Eis por
que o homem é tomado como um fim em si mesmo. A idéia de dignidade deve, pois,
instaurar uma nova forma de vida capaz de garantir a liberdade e a autonomia do
sujeito.
A dignidade se impõe como um valor
incondicional, incomensurável, insubstituível, que não admite equivalente.
Trata-se de algo que possui uma dimensão qualitativa, jamais quantitativa. Por
isso, uma pessoa não pode gozar de mais dignidade do que outra. Mas como
utilizar esse preceito nas situações-limite em que é necessário confrontar
dignidades a fim de se escolher uma delas ? O que fazer diante da cena
dantesca de um corredor de hospital público
repleto de pacientes (e como são pacientes !) que almejam atendimento e
salvação ? Esta dúvida tem freqüentemente atormentado profissionais da saúde
quando se vêem sem meios para curar, sem critérios para escolher. É evidente
que tal princípio não pode servir como um imperativo aplicável em todos os
casos, porém é em função dessa idéia volátil, e às vezes imprecisa, de
dignidade que podemos identificar quando ela é negada, negligenciada,
esquecida.
É certo que não estamos aptos a fornecer uma
definição ampla, satisfatória e inquestionável acerca do que vem a ser dignidade humana. A esta pergunta talvez seja o caso de
responder como o fez Santo Agostinho quando lhe indagaram acerca do que é o
tempo : se ninguém me pergunta o que representa a dignidade humana eu sei o que
ela significa, porém se alguém me pede para explicá-la eu já não saberia o que
dizer. Mas se tal expressão (dignidade humana) é polissêmica e sujeita a
múltiplas interpretações, como esperar que ela possa bem fundamentar tais
direitos ?
Decerto que
ninguém precisa saber definir dignidade humana para reconhecer que ela existe
como prerrogativa inalienável do sujeito. Precisaríamos então compreender o que
ela significa para defender os que têm sua dignidade ultrajada ? Acreditamos
que não. Todavia, nessa cruzada contra os detratores da nossa humanidade,
estaremos também prontos a lutar pela dignidade das plantas e dos animais, como
querem os ambientalistas ? Embora originariamente essa categoria se aplique ao
homem, nada nos impede de conferir estatuto de ser existente dotado de
dignidade às espécies dos reinos animal, vegetal ou mesmo mineral. Podemos
conferir-lhes, mas também podemos conspurcar-lhes tal estatuto. Isto atesta o
caráter antropocêntrico de tais direitos. É do homem que surgem, é para o homem
que convergem.
Tanto quanto
a noção de direito humanos a idéia de cidadania possui um sentido cada vez mais
amplo. Os direitos do cidadão implicam a existência de uma ordem
jurídico-política garantida pelo Estado. Tais direitos, portanto, não têm
amplitude universal. São prerrogativas dos indivíduos (cidadãos) que participam
dos destinos da pólis. Os direitos de
cidadania precisam, pois, ser garantidos por dispositivos constitucionais. Em
muitos casos, os direitos dos cidadãos coincidem com os direitos humanos
fundamentais. Porém, estes se caracterizam pela amplitude e abrangência em
relação aos primeiros. Assim, por exemplo, uma criança tem direitos humanos,
mas não tem direitos ou deveres ligados à cidadania. O mesmo acontece com os
doentes mentais e, em certo sentido, com os povos indígenas, que ainda sofrem a
tutela do Estado. Do ponto de vista da variabilidade, os direitos de cidadania
são mais sujeitos a modificações, pois podem ser ampliados, restringidos ou
simplesmente abolidos pelos governos ou pelos poderes constituídos. Porém, em
virtude de sua preeminência e complexidade, investigaremos a natureza dos
direitos humanos, para, em seguida, mostrar como estes podem fundar alguns
direitos de cidadania.
Os direitos
humanos surgem como direitos fundamentais inatos a todos os homens. Constituem,
por isso, uma prerrogativa inalienável. Enquanto tais, eles devem ser
protegidos pela ordem jurídica dos Estados. Eles valem, pois, como direitos
positivamente estabelecidos, já que, na realidade, estão fundados em critérios
normativos. Direito à liberdade individual, à vida, à propriedade, à busca da
felicidade, à segurança, à participação na vida sócio-política do país, são os
primeiros direitos reconhecidos como fundamentais, cuja formulação remonta ao
direito natural racional (Hobbes, Locke, Wolff). Nesse caso, eles são
fundamentais não porque têm um fundamento, mas porque são imprescindíveis à
existência do homem em sociedade. Porém, como garantir que o fundamento desses
direitos fundamentais seja aceito e defendido pelo conjunto dos seres humanos ?
Eis um problema de difícil solução.
Atualmente tenta-se justificar o
valor desses direitos recorrendo-se à idéia de que há uma consenso, um
entendimento ou uma aceitação tácita dos mesmos por parte dos diversos membros
da comunidade de nações. A Declaração
Universal dos Direitos do Homem (1948) se propõe a demonstrar que um
determinado sistema de valores é factível, que ele pode ser instaurado e
compartilhado pela maioria dos homens do planeta. A universalização desse
princípios regulativos da conduta humana revelaria que o humanidade partilha
alguns valores comuns, cujo conteúdo seria
subjetivamente aceito e acolhido por todos os homens do planeta.
Na Declaração de 1948, a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo,
universal e positiva. Ela envolve todos os homens e não apenas os cidadãos
(como ocorre na Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789). Para Bobbio, “os direitos do homem nascem como direitos naturais universais
(jusnaturalismo), desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para
finalmente encontrar sua plena realização como direitos positivos universais
”(Bobbio, 1982, p. 30). Trata-se, pois,
de um ideal a ser alcançado por todos os povos e nações. Tal Declaração,
contudo, está longe de ser definitiva, haja vista o caráter histórico e,
portanto, provisório de tais direitos. Além disso, como indica Otfried Höffe, “a declaração dos direitos fundamentais é,
sob diversos aspectos, primeiro um programa político e não a última pedra na
positivação dos direitos do homem” (Höffe, 1991, p.376). De fato, a
Declaração de 1948 traduz os direitos do homem contemporâneo que vive sob a
égide dos valores determinados em sua época pelos contornos da história. A
estes devem somar-se as exigências mais atuais que demandam novos direitos,
como : o progresso da técnica, a degradação do meio-ambiente e o papel que nele
ocupa o indivíduo, a ampliação dos canais de informação, o direito à verdade,
etc. É isto que nos credencia a substituir
a noção de direitos humanos pela idéia de direitos fundamentais e, sobretudo, a
atualizar os princípios norteadores das Declarações
e Convenções existentes no mundo
atual. A história descortina os
horizontes de revelação de novos direitos, atendendo sempre às exigências
impostas pela consciência dos agentes sociais. Mas o que significa transformar
um direito subjetivo num princípio universal ? Por que o problema referente à
universalidade de tais direitos torna-se crucial no nosso tempo ?
Inicialmente porque a garantia
universal desses direitos se afigura impossível. Em seguida porque, convém
reiterar, acreditamos que a questão do seu fundamento não está completamente
resolvida. E finalmente porque a liberdade e a dignidade do homem constituem-se
como um ideal a ser atingido; não configuram um fato, mas um valor; não são
fenômenos que pertencem à esfera do ser, mas ao domínio do dever-ser; não são
uma posse, mas uma conquista da humanidade. Se os direitos humanos
traduzem um ideal da razão humana, o desafio
que se impõe ao homem contemporâneo é de outra ordem : ele consiste na dificuldade de se encontrar as
vias concretas para a sua realização.
Acerca dos obstáculos que envolvem a
proteção e a efetivação dos direitos proclamados, Bobbio nos fornece a imagem
de uma estrada desconhecida “na qual
trafegam, na maioria dos casos, dois tipos de caminhantes, os que enxergam com
clareza, mas têm os pés presos e os que poderiam ter os pés livres, mas não têm
os olhos vendados”(Bobbio, 1982, p. 37). Eis o drama que se desenha sob o
horizonte histórico da nossa época : a conquista de tais direitos traz em si o
problema de como realizá-los. Além do mais, o fato de o senso moral comum
aceitar o conteúdo de tais direitos não significa que seu exercício seja
simples. Até porque, embora aspirem à universalidade, tais direitos não são
jamais absolutos. Aliás, o fato de desejarmos que os mesmos alcancem uma
amplitude universal e de exigirmos um fundamento absoluto que lhes dê
sustentação não garante sua realização prática. Aqui surgem novas dificuldades
que se expressam assim : como fundar de modo absoluto direitos regidos pela
variabilidade dos rumos da história ? Como não considerar vaga a expressão direitos do homem ?
Todos
concordam que é necessário encontrar um meio capaz de compatibilizar a
pluralidade das manifestações políticas e jurídicas dos indivíduos modernos e a
identidade do homem. Mas, quem é o homem de que trata os direitos humanos ?
Como falar em direitos humanos quando não se tem uma idéia clara do que seja o
homem ? Quem é ontologicamente esse homem que definimos como ser humano ?
Trata-se de um ideal destituído de singularidade concreta ? Seria este homem um
ser que transcende as vicissitudes e abjeções próprias ao sujeito real ? Enfim,
como relacionar a objetividade dos postulados de tais direitos com as
particularidades próprias à subjetividade de cada indivíduo ?
O homem dos
direitos humanos é designado sob a categoria de universalidade que supõe uma
definição baseada num ponto de vista moral imparcial, independente de toda
determinação particular. Trata-se de um homem situado fora do tempo e do
espaço. Este homem não tem face nem história. É uma entidade difusa em cuja
face pode aderir qualquer semblante, qualquer perfil. Pode-se então afirmar que
os direitos humanos estariam fundados numa espécie de humanismo abstrato? Se
isso é verdade, como então coadunar essa idéia abstrata de humanidade do homem
com as formas de liberdade e os conteúdos do direito que lhe são
correspondentes ? Como, enfim, manter o direito incólume ao surto imprevisível
dos instintos de cada ser humano ?
O homem
real, como bem demonstrou Kant, é também portador de inclinações. O caráter
passional dos homens é, para ele, um fator positivo no que se refere ao já
afirmado desenvolvimento da espécie humana, pois tais inclinações levam ao
aperfeiçoamento das relações sociais entre os indivíduos. A razão, que define
no plano prático as relações universais dos homens entre si, determina, no
mesmo nível, a possibilidade deste desenvolvimento. A razão liberta o homem do
impulso instintivo, inserindo-o na sociedade.
Nessa direção, o direito natural
passa a ser reconhecido pela razão humana na forma de sistema de leis racionais
a priori. Isso indica que a idéia de
uma comunidade de indivíduos deve se assentar no direito natural dos homens de
exercer sua liberdade e autonomia. Segundo Kant, a noção de que aqueles que
obedecem devem, também, reunidos, legislar, se encontra na base de todos as
formas de Estado.
Aristóteles,
aliás, no livro I da Política descreve
o homem como um “animal político” (zôon
politikon) dotado de logos, de
discurso e razão. Palavra e pensamento fundam a possibilidade da existência
plural dos homens em sociedade. Entre os seres vivos, o homem enquanto animal
político, se destaca como o único apto a discernir sobre os valores, a definir
o justo e o injusto, a escolher entre o bem e o mal. Ele não deseja apenas
viver, mas bem viver. A política confere ao homem uma disposição para viver em
sociedade, como animal social, mas quando separado da lei e da justiça ele pode
transformar-se num ser inumano. O homem preso às instituições é o melhor de
todos, mas quando ele delas se afasta torna-se o pior dos demônios. Sendo
assim, em que se funda a obrigação de respeitarmos os direitos humanos ?
No fato de
que tais direitos constituem-se como um atributo próprio a todos os seres
racionais, poderia ser a resposta. Ou ainda, na exigência que o imperativo da
lei moral impõe à nossa vontade. Assim, viver sob a égide dos direitos humanos
implica em cumprir as obrigações que a liberdade determina a todo ser
responsável. Trata-se aqui primeiramente de uma obrigação imposta à moralidade
do sujeito pela razão. Todavia, sabemos que não basta praticar determinado ato
segundo a norma ou regra que o disciplina. É preciso também examinar as
condições concretas nas quais ele se realiza. Afinal, para que possamos imputar
a alguém uma responsabilidade moral por determinado ato, é necessário que o
sujeito não ignore as circunstâncias nem, tampouco, as conseqüências de sua
ação, e que a causa de seus atos esteja nele próprio, ou seja, que sua conduta
seja livre. Conhecimento da lei e liberdade prática são prerrogativas que nos remetem ao princípio da
responsabilidade. Assim, para que o indivíduo possa escapar das possíveis
sanções, ele precisará justificar o desconhecimento de tais normais ou então o
fato de que não é obrigado a seguí-las. Somente assim a ignorância o isentaria
de responsabilidade. A ignorância, porém, não exime de responsabilidade aquele
que é responsável por sua própria ignorância.
O problema
acerca da constituição de instrumentos eficazes que possam garantir
universalmente o respeito e o cumprimento dos direitos humanos permanece
irresolúvel. Em muitos casos, podemos apelar à ordem moral vigente como forma
de garantir o seu respeito. Mas que força pode assumir tal apelo num mundo
marcado pelo egoísmo e pela intolerância ? Vê-se que o impasse se mantém, pois
não há como instituir um direito legal ou moral sobre algo, sem que se pense em
constituir paralelamente uma instância legal ou moral de cobrança. É mais fácil
imaginar a existência de tal instância no âmbito de Direito do que no âmbito da
moral. Parece evidente que, se temos um direito, a ninguém é permitido
violá-lo. Neste caso, todos seriam o destinatário da exigência de cobrança que
se vincula ao direito. Porém, é aceitável que todos também possam exercer o
papel de instância coercitiva ou
punitiva ? Se isto parece impossível, como então conceber um direito moral sem
uma instância de cobrança ? Que valor tem um direito que está no papel, mas que
não se pode se exigir sua observância ? Há, enfim, algo de incongruente nessa
noção ?
Em sua obra A transparência do mal, Jean Baudrillard
afirma que o discurso dos direitos humanos se baseia numa crença iluminista na atração
natural do bem, numa idealidade das relações humanas. Essa busca exacerbada do
bem implica no desejo de minimalização do mal, numa espécie de profilaxia da
violência, de extinção da força indomável que domina a natureza humana. Tentar
fugir ao espectro do mal tão-somente conduz tais direitos para fora do universo
humano, diz ele. Tudo se passa como se devêssemos aprender a conviver com a
desrazão que reside em cada homem. Esta idéia indica que resta sempre algo de
insondável na nossa maneira humana de ser. Há coisas que somente a razão pode
procurar, mas ela jamais as encontrará; há coisas que só o instinto poderia
encontrar, mas ele é, às vezes, cego para procurá-las. Se, todavia, somos
irremediavelmente propensos a negar a força da racionalidade e, por
conseguinte, as regras ordenadoras da nossa conduta (a lei do dever, o respeito
aos direitos humanos), como acreditar no progresso moral da humanidade ? Como
fugir àquilo que Kant designa de insociável sociabilidade ?
Para Kant, o
antagonismo da espécie se refere à sua insociável sociabilidade já que o desejo
de se associar convive, ao mesmo tempo, como a relutância em realizá-lo. O
instinto de sociabilidade conduz os indivíduos a uma vida associativa. Contudo,
interesses egoístas e inclinações o levam a negar as normas regulativas da vida
em sociedade. Todavia, esta tendência ambígua não é algo em si mesmo deletério,
isto porque este movimento desperta a capacidade criativa do indivíduo,
resgatando-o da indolência e da letargia. A insociabilidade tende a fomentar o
desenvolvimento da espécie ao despertar a avidez dos homens incentivando-os à
concorrência, à luta pela sobrevivência. Assim, ou os homens optam
racionalmente por um fim histórico ou a natureza conduzi-los-á forçosamente,
mediante guerras, conflitos e outras desgraças, à sua consecução.
Mesmo quando
tencionamos adquirir vantagens em nosso proveito, somos levados, diz Kant, a seguir, como linha de orientação, as
indicações da natureza. E mesmo agindo em favor de nós mesmos, conseguimos
realizar um fim mais amplo e elevado. Desse modo, aquilo que se afigura
nebuloso e disperso nos indivíduos pode representar no conjunto da espécie um
desenvolvimento contínuo e progressivo. Somente na espécie é que se pode vislumbrar
o sentido das disposições naturais do homem, isto porque, ao contrário dos
outros animais, os homens possuem a capacidade de transmitir às futuras
gerações seus feitos e conquistas. Assim, enquanto as tendências anti-sociais
conduzem os homens à vida privada e passiva, as disposições racionais os levam
a se libertar das limitações impostas pelas inclinações passionais. Kant não confunde a história da humanidade
com a história de homens singulares. Assim, já que o indivíduo racional é
mortal, confiou-se à espécie humana a realização do seu destino racional. A
filosofia da história de Kant demonstra a existência de evidências que podem atestar o progresso
moral da humanidade.
Kant
considerava que a maneira entusiasmada com que o indivíduo concebia um fato
histórico relevante (a Revolução Francesa, por exemplo) refletia as motivações
da espécie humana para o melhor. O tropismo libertário seria concebido como uma
destinação natural do homem. Ora, a modernidade nos legou a idéia de progresso,
mas também a realidade de certos males. Suas fronteiras delimitam, por um lado,
a idéia de liberdade advinda da Revolução Francesa e, por outro, o terror que
nela vem expresso sob forma de guilhotina e intolerância.
De fato, a
Revolução Francesa representa o signo histórico que revela a disposição moral
da humanidade, porém não podemos dissociá-la desse crime que é o regicídio. Eis
o exemplo do enigma insondável que
define os rumos de um poder originário que pode se conduzir para bem ou para o
mal. O terror pode ser considerado como um dos marcos históricos da
radicalidade do mal. Contudo, a assepsia do mal não mata o bacilo da maldade,
apenas antecipa outros tipos de desastre. Além do que, como afirma
Bernard-Henri Lévy, “a vontade de pureza,
quando torna-se obsessão, pode conduzir ao integrismo” (Bernard-Henri Lévy,
1994, p.97). Nosso mundo sonha em acabar com a contradição, a negatividade, a
morte, o mal. Todavia, somos muitas vezes incapazes de distinguir uma guerra justa de uma paz
injusta.
Para
Baudrillard , “o direito à vida,
salienta, emociona todas as almas piedosas, até o momento em que chega o
direito à morte, ponto no qual se manifesta o absurdo de tudo isso. Porque
morrer –tanto quanto viver – é um
destino, uma fatalidade (feliz ou infeliz), jamais um direito”
(Baudrillard, 1990, p.94), diz ele. Trata-se, pois, de um acidente natural que
pertence à ordem do ser e não do dever-ser. Eis todo o absurdo de
se associar o direito a fenômenos insólitos, imponderáveis, imprevisíveis. Para
muitos seria bizarro se depois de Chernobyl e do naufrágio do submarino
atômico, a Rússia requisitasse o direito à catástrofe, direito ao acidente, ao
crime, ao erro, o direito ao pior e não
apenas ao melhor. Bizarro talvez, mas não ilógico do ponto de vista da
axiologia.
Outros
exemplos podem ser oferecidos : o caráter inquestionável do direito ao trabalho
deve impedir que alguns exijam o direito à preguiça, ao ócio, ou mesmo, ao
desemprego ? Se o direito à vida é inalienável porque também não o é o direito
à morte ? Como podemos recriminar alguém que deseja se despedir de uma vida
sofrida, desgraçada, mórbida ? Há algo de absurdo nessas considerações ? O absurdo, para Beaudrillard, reside na
absolutização de certos direitos. Eis um exemplo airoso dessa situação : um
condenado à morte nos Estados Unidos
reclama o direito de ser executado imediatamente contra todas as ligas
de direitos humanos que se esforçam para obter-lhe o perdão. Por isso, à
célebre frase de Fichte, o verdadeiro direito do homem é a possibilidade de
adquirir direito, poderíamos acrescentar : e de recusar tais direitos.
Podemos
reivindicar o direito de ser isso ou aquilo. Mas o que significa ser isso ou
aquilo se tivermos tais direitos ? A postulação do direito indica uma falta,
uma carência, uma lacuna. Ademais, se uma coisa é evidente, o direito torna-se
supérfluo. Quando a reivindicação de direito começa a recair sobre algo que
sempre se mostrou necessário e inelutável, então devemos começar a nos
preocupar. Assim, quando passarmos a exigir o direito à água, ao ar, ao espaço,
é sinal de que tais elementos estão se extinguido progressivamente. O direito de resposta, antes de expressar uma
conquista da democracia, indica a ausência de diálogo. Assim também acontece em
todas as situações nas quais o direito se transforma em dogma. Se tudo pode
remontar ao direito, nada mais é direito.
Os direitos
do indivíduo perdem sentido quando ele deixa de ser um ente alienado, privado
do próprio ser, estranho a si mesmo. O sistema de direitos humanos torna-se
complemente inadequado e ilusório numa conjuntura em que o indivíduo torna-se um promotor da
própria existência. Mas, sabemos, estamos longe de viver essa realidade, razão
pela qual tais direitos existem teoricamente para promover a justiça e garantir
que os mais fracos não sejam massacrados pelos mais fortes. Diga-me qual
e a sua fraqueza ou indigência que eu direi qual é o seu direito. Eis a máxima
do nosso tempo.
Todos
estamos prontos a aceitar que as vítimas, enquanto vítimas, têm direitos. Mas
quem a rigor é vítima e do quê ? Esta é a pergunta que devemos primeiramente
responder. Além disso, já vimos, a vítima pode abdicar do direito de usufruir
de um direito. Como não reconhecer aqui
um impasse representado pela existência de direitos antinômicos ou mesmo
excludentes ? Trata-se de um ato de justiça exercer uma discriminação positiva
(ação afirmativa) em favor de membros de certos grupos oprimidos ou de minorias
sub-representadas socialmente ? Do ponto de vista dos direitos humanos é
aceitável a interferência das grandes nações para evitar genocídios ou
conflitos étnicos em países convulsionados ? Ora, parece polêmico o direito que se confere a um Estado
de se imiscuir nos assuntos alheios. O direito de ingerência, por exemplo,
permite que um país (ou um grupo de países) representante de um organismo
internacional ou de uma comunidade de
nações invada um Estado soberano, se esta soberania serve de pretexto para a
prática de crimes (genocídio, limpeza étnica, etc.) contra a população
indefesa. É verdade que tal possibilidade representa, senão um progresso, pelo
menos uma conquista do poder coercitivo da razão que obriga os tiranos e
exterminadores de minorias a refletir bastante antes de empreenderem suas armas
mortíferas. Mas, a ingerência é vista com desconfiança porque nela se confundem
motivações geopolíticas, interesses estratégicos e atitudes humanitárias.
Atitudes humanitárias que, aliás, não deixam de suscitar questionamentos e
condenações.
O problema é
que, como acentua Bernard-Henri Lévy, o humanitário
transformou-se numa grande medicina sem fronteiras cuja função não é mais
coibir os assassinos, mas apenas “socorrer
as vítimas ou fazê-las morrer de barriga
cheia” (Bernard-Henri Lévy, 1994, p. 144) O humanitário é um vitalismo. Em
lugar de conferir uma imagem nobre do homem, de pensá-lo como um ser dotado de
pensamento e linguagem, ele o reduz a um princípio de vida que tem algo em
comum com os animais. É como animais que os tiranos também tratam suas vítimas.
A ajuda humanitária trata os seres que padecem da tirania como corpos que
merecem atenção depois de terem sido reduzidos a coisas pelos seus algozes. Tal
postura pode assim ser resumida : massacrem, em seguida nós faremos o resto!
Henri Dunant (fundador da cruz vermelha) falava em humanizar os campos de
batalha, sem nada mencionar sobre a origem do horror que emanava da
desumanidade dos tiranos.
Há, pois,
algo de infame na ideologia humanitária. Ela olha para as grandes tragédias
humanas, mas não consegue ver que é preciso salvar os homens. O espírito
humanitário funda-se numa espécie de política do sentimento, num tipo peculiar
de compaixão, cujo motor é a piedade e a comoção diante do terror. Eis a
imoralidade reinante num mundo que não
sabe mais distinguir entre os torturadores e suas vítimas. A aberração da nossa
época pode ser representada pela figura terna de um soldado da O.N.U, um combatente desarmado, uma sentinela
tornada alvo. Há algo de patético no espetáculo dessa força impotente, que,
resignadamente, ajuda a gerenciar não os conflitos, mas as guerras de
extermínio.
A forma
última da perversidade que marca o nosso tempo é representada pela frase infame
: “tudo é possível”. Isto porque constitui-se ela na chave de acesso ao reino
do “tudo é aceitável”. Já não há limite
que separe o provável do insano. São poucos as coisas que tendem a nós provocar
aversão. Tem se tornado difícil definir o inaceitável. Espectadores inertes
diante do mal que se lhe recai e indiferentes às dores do outro, assim somos
nós em face do teatro de horrores do nosso século. Podemos recusar o
enfrentamento, mas não podemos esquecer : certos crimes são inexplicáveis.
Hannah Arendt fala das duas experiências radicais do nosso século : o
totalitarismo, que traz à luz a antinomia da política e da liberdade; e as possibilidades
de aniquilação orquestradas pelos Estados modernos, que ela designa de
antinomia entre política e conservação da vida. Pois bem, o aniquilamento do
homem pelo Estado continua sendo o símbolo maior do caráter bestial da
violência humana neste fim milênio. A guerra da Bósnia, o massacre dos
chechenos, a perseguição dos curdos, o extermínio dos tutsis em Ruanda e no
Burundi, atestam o que já previam os gregos : o trágico dominou a história e a
transformou não em destino, mas em terror. Enquanto isso, pouco a pouco temos
nos acostumados com a mentira, a dissimulação e a provocação dos que nos
governam e com a prepotência dos que mandam nos que nos governam. Fala-se em
universalização dos valores ocidentais, em globalização e transculturalismo,
num mundo cada vez mais marcado pelo tribalismo e pela xenofobia.
Por isso,
não podemos postular a universalização dos direitos humanos sem perguntar se o
evolucionismo cosmopolita é possível. Há uma força irreconciliável que atua em
todas as culturas, fazendo com uma pretensa lei universal jamais seja
inelutável. Além disso, seria justo obrigar os indivíduos a respeitá-los como
valores universais ? Se os direitos humanos repousam sobre um princípio de
totalidade (a idéia de dignidade), podemos livrá-lo da tentação totalitária ?
Se há algo de totalitário na idéia de totalidade, como dizia Hannah Arendt, os
direitos humanos estão livres das motivações ideológicas ou etnocêntricas das
nações que os proclamaram ? A postulação de uma só ordem não seria o sinal mais
evidente de que vivemos uma época de grande desordem ? A tranqüilidade ou a
indiferença com que aceitamos o inaceitável reflete a indolência que domina
nosso viver. A sociedade contemporânea conhece bem as marcas do mutismo que conduzem muitos a abdicar de direitos em
troca de benefícios pecuniários. Noutros termos, nunca tantos venderam por tão pouco sua alma
ao diabo. O homo economicus é o
principal personagem desse cena em que os direitos humanos atuam como
coadjuvantes mudos do espetáculo.
Soma-se a
isso, a propagação da surdez, a cegueira endêmica, a desertificação das almas.
A barbárie econômica nos arrasta, com todos os nossos direitos, para fora do
campo da vida. Nosso mundo bem sabe que os valores financeiros não são ativos
reais. São cifras, símbolos inverificáveis, números que migram de uma praça
financeira a outra, como entidades espectrais que assombram governos, países,
nações. Enquanto isso, o poder político opera dentro de paisagens econômicas.
Os agentes financeiros decidem, ordenam, pressionam, controlam os que nos
governam. O capital financeiro, o “pilar” desse novo modelo de civilização, se
impõe como uma força indomável, onipotente, devastadora, que desconhece
fronteiras e limites. Um ameaça oculta, sinistra. Eis o retrato de uma experiência
humilhante : homens vencidos, fracassados, considerados inúteis e supérfluos.
Eles são julgados incompatíveis com a sociedade que os exclui. Eles são
acusados por serem suas vítimas. O paradoxo é a marca do absurdo que
caracteriza os nossos tempos.
Se antes os
indivíduos lutavam contra a exploração, hoje lutam contra a falta dela. Alguns
lutam para reencontrar a sua desumana condição : desejam ser explorados. Muito
preferem sentir as labaredas do inferno do que nada sentir. Dante não
imaginaria inferno pior do que o daqueles que clamam desesperadamente pelo
inferno; aqueles para quem a maior danação seria ser expulso dele.
O desastre
está no fato de que tudo parece natural, inevitável, sem alternativa,
incontornável e o que é pior : conseguem nos convencer de que tudo isso é
necessário. A indiferença acaba permitindo nossa adesão passiva à realidade que
nos é imposta. Não estamos diante de um fato consumado, estamos trancados nele.
Como demonstra Saramago em seu romance Ensaio
sobre a cegueira, muitos estão acordados, mas fazem de conta que estão
dormindo.
A apatia se
revela como incapacidade de defender nossos próprios valores, a fraqueza de uma
vontade traduzida em conduta de resignação e passividade. Enquanto admitimos
que somos filhos de uma época de desencanto, o mundo amadurece para toda forma
de crueldade. O encontro da miséria da alma com a amargura de viver dá origem a pior forma de violência : a
violência da calma.
É certo que
o homem jamais domesticará por completo o lobo que repousa nele próprio.
Sabemos também o quando custa a uma sociedade que deseja radicalmente extirpar
sua parte maldita. Por isso, o ideal de uma sociedade livre, justa, livre e
fraterna, antes de indicar nosso triunfo, talvez seja uma maneira de atestar a
nossa ruína. Como falar em liberdade e em direitos num mundo assolado pelo
espectro do egoísmo e da moral do interesse ? Por que temos tendência a
defender com mais volúpia nossos direitos do que aqueles que se referem ao
outro ? Quem é esse outro, às vezes tão próximo, às vezes tão estranho a nós
mesmos ? A prática cruel e insana do racismo mostra o quanto os homens são
incipientes nessa arte de aceitar e respeitar o outro.
O racismo
expressa uma forma alucinada de negação da diferença. O racismo começa a
existir quando o outro torna-se diferente. Hoje tudo se fala em termos de
alteridade, ou seja, da existência factual do outro, mas a alteridade não é a
diferença. A diferença mata a alteridade. O outro começa a ser rechaçado no
momento em que se torna diferente. A crítica política e ideológica do racismo é
uma crítica formal, já que só ataca a obsessão racista, sem atacar o seu núcleo
principal : a própria idéia de diferença. Com isso, deixa-se de demonstrar que
a idéia de diferença, da qual se nutre o racismo, é uma ilusão. Tal crítica
acaba tornando-se uma ilusão crítica, já que a nada se refere. Eis por que o
racismo tem sobrevivido à critica racional que se lança contra ele. Tão grave
quanto o fragililidade da crítica antiracista e a ingenuidade dos que suspeitam
que a cultura racista pode sucumbir ao tempero da miscigenação. O Brasil é um
caso emblemático desse auto-engano.
A questão
racial (ou étnica) permanece tão mal resolvida no Brasil quanto em outros
países. O racismo ideológico, todavia,
tem sido aparentemente menos cultuado no
nosso país, em virtude da confusão étnica e da multiplicação da mestiçagem. A
discriminação racial parece diluída no cruzamento das linhas de diversas
etnias, como se fossem as linhas de nossa
mão. Essa forma de desqualificação do racismo por dispersão do objeto é mais
sutil e eficaz do que a luta ideológica. Todavia, ela não é suficiente para
afugentar a sombra da bestialidade e da insensatez que o racismo representa.
A prática
voluntária da violação dos direitos humanos, seja ela de caráter racista,
sexista, regionalista, nos coloca em
face da fraqueza da vontade ou da escolha do pior. Esse problema existe desde o
intelectualismo moral socrático, que Aristóteles apresenta no livro VII de sua Ética a Nicômaco, segundo o qual ninguém
age mal deliberadamente. Ora, temos bastante dificuldade, do ponto de vista
moral, para admitir que o mal possa ser praticado contra o semelhante por
aqueles que sabem o que é o bem. No entanto, sabemos que certas pessoas têm o
prazer em fazer o mal por escolha própria e em fugir do bem por decisão
autônoma. Então convém recolocar a questão : como acreditar no progresso moral
da humanidade se somos incapazes de domesticar as nossa inclinações malévolas,
de controlar os nossos ímpetos destrutivos ? Contudo, o mal não repousa na
irracionalidade das paixões. Ele é antes o resultado das nossa decisões e
escolhas racionais, ou seja, trata-se de um produto da nossa liberdade e não da
vontade de uma gênio diabólico que residiria em todos nós.
Libertar-se
do mal implica também em se libertar do mal da liberdade. Mas isto
corresponderia também a se libertar da própria liberdade. O que desejamos afirmar com isso : libertação ilimitada ou degradação
ilimitada são as duas faces de uma síntese perversa. A tendência para o mal não
deixa de ser uma possibilidade da liberdade humana. Vimos, com Aristóteles, que a constituição do homem como animal político
não elimina o risco de desmesura, a ameaça da tragédia. Por isso, recolocar a
questão : se a disposição para o bem não é soberana para suprimir a propensão
para o mal, como podemos acreditar no progresso moral da humanidade ? Como
transformar uma curva (a liberdade) numa linha reta (os direitos humanos) sem
desfigurar sua natureza ou geometria irregular ?
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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totalitaire. Les origines
do totalitarisme, Paris : Éditions du Seuil, Paris, 1972.
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(1813), São Paulo : Abril Cultural, 1980.
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Marconi Pimentel Pequeno,