(Francisco Louçã, in Expresso, 08.08.2020)
Na relação com a China, Trump opta pela tensão máxima. Mas é a economia que manda no conflito, o que o torna mais imprevisível do que o confronto EUA-URSS
A POLÍTICA DO MEDO
Mike Pompeo, um sempre surpreendente chefe da diplomacia norte-americana, fez há dias um discurso definindo o programa do conflito com a China em que anuncia que é tempo de terminar o “paradigma de compromisso cego” que vigora desde a viagem de Nixon em 1972, há quase 50 anos, e que, “se queremos um século XXI livre, o mundo livre tem de triunfar contra esta nova tirania”. Alguns analistas descobriram nesta agressividade o esboço de uma nova Guerra Fria ou uma repetição da história. Estão enganados.
Na disputa pela sua reeleição, atormentado pela incompetência grosseira da sua resposta à pandemia, que levanta contra ele parte da “maioria silenciosa” que o elegeu, Trump só pode tentar salvar-se através de dois expedientes: o medo interno (a ordem contra os desordeiros) ou o medo externo (a tensão com a China). Vai usar os dois. O primeiro foi ensaiado por estes dias em Portland, com a intervenção na rua de agentes federais sem permissão das autoridades estaduais, procurando agravar o conflito e sobrepor-lhe uma confusão institucional. O segundo foi exposto por Pompeo e vai ser dramatizado até ao dia das eleições. Vai haver muito mais disto, com manobras militares, provocações e ameaças, logo veremos até onde pode ir, para dominar a agenda eleitoral. Só que não é uma nova Guerra Fria. A ser alguma coisa é diferente e só pode ser pior. A Trump, em rota de derrota, só resta a ordem do caos, e é nela que vai basear a sua tentativa de recuperação.
A Guerra Fria entre os EUA e a URSS foi uma estratégia bilateral de tensão política e militar de longo prazo, que bordejou o conflito aberto (a crise de Berlim, os mísseis em Cuba), mas sempre o evitou (as guerras eram por procuração, como em África). No entanto, as duas potências tinham escassa relação económica.
Hoje, a China é o principal destino das exportações norte-americanas (incluindo, por ordem de grandeza, a compra de aviões, máquinas, instrumento médicos e automóveis, produtos agrícolas) e os EUA são o principal destino das chinesas (por ordem, máquinas, móveis, brinquedos, plásticos), entre três e quatro vezes mais valiosas. Até abril, a diferença já ultrapassa 100 mil milhões de dólares. Poderá ser o triplo no final do ano.
DEPENDÊNCIA MÚTUA E TENSÃO MÁXIMA
Com esse rendimento, a China compra a dívida pública norte-americana e vende produtos baratos, além de mandar 400 mil estudantes cujas propinas sustentam as universidades dos EUA. Uma rutura teria uma implicação devastadora na economia norte-americana e significaria imediatamente a redução dos salários reais no país. Por isso, uma repetição de uma Guerra Fria de longo desgaste e isolamento dificilmente acontecerá, além de que poderia significar a derrota da potência dominante. Se a nova guerra é primordialmente económica, o que significa que não dispensa os porta-aviões mas que se concentra em novas ameaças, como a transformação do sistema de pagamentos bancários internacionais em arma de destruição massiva, as suas primeiras trincheiras já estão à nossa vista, são a Huawei e a TikTok ou a dominação dos sistemas de comunicações. Aí será a luta sem quartel.
Assim, é a economia que manda no conflito, o que o torna mais imprevisível do que o confronto EUA-URSS. Além disso, e ao contrário do que se passou durante a Guerra Fria, o limite institucional está agora consagrado à sobrevivência de um bufão. E, se só um Presidente desesperado pode escolher a tensão máxima, é mesmo um homem dessa raça que mora agora na Casa Branca, para quem o futuro é nada mais do que um jogo pessoal.
Dentro de meses será tarde demais para o Novo Banco
Se há algo em Portugal que seja tão regular e previsível como o relógio de cuco são os escândalos no Novo Banco. A administração, que já recebeu o quinhão anual prometido pelo contrato negociado por Sérgio Monteiro e certificado pelo Banco de Portugal e por Mário Centeno, exige agora mais €176 milhões por conta de prejuízos deste ano. Mas, sendo esta gula ilimitada, os supervisores sentiram-se forçados a revelar, a tal os obriga a pressão pública, que há €260 milhões que foram irregularmente incluídos nas contas e que estavam fora do perímetro das contas que determinam as injeções públicas. A trapalhada monumental em que se tornou o que foi o maior banco privado nacional estava inscrita desde o primeiro dia deste processo, mas não deixa de surpreender pela imaginação fértil.
O problema é que não foi difícil. Houve, como seria de esperar, uma conjugação de demasiada incompetência ou de interessada competência: a Deloitte atrasa a auditoria, já vai em cinco meses, e não se sabe o que apresentará, o Fundo de Resolução nem tem meios nem parece ter vontade de controlar as operações, o Ministério das Finanças aprecia mais as reivindicações do Lone Star do que as contas públicas. Todos se conjugaram para este maravilhoso resultado.
Se houver uma réstia de decência, substituir a administração do Novo Banco, cuja idoneidade está posta em causa por sucessivas operações desastradas para impor prejuízos ao erário público, é a primeira condição para o saneamento da instituição. Se assim não for, ao longo deste ano continuará a limpeza do baú em modo catástrofe, para no fim o cadáver do banco ser vendido a algum outro aventureiro por tuta e meia.
As dinastias do eixo do mal
Com dados da OCDE publicados esta semana, a Tax Justice Network, uma rede de investigadores que se dedica ao combate à fraude fiscal e à lavagem de dinheiro, detetou 467 mil milhões de dólares de lucros empresariais escondidos em offshores para evitar o pagamento de impostos no ano passado. As perdas em impostos devidos teriam sido de 117 mil milhões. Constata-se que o Reino Unido, a Suíça, o Luxemburgo e a Holanda captam 72% deste total. A Holanda é campeã, seguindo-se vários territórios britânicos (como as Bermudas). O Reino Unido, aliás, impediu agora a OCDE de publicar os dados detalhados país por país, apesar de há quatro anos o ter aceite.
Mas, como se trata de dados sobre unicamente 15 países, os investigadores usaram a metodologia do FMI para projetarem um total mundial de 1,3 biliões de dólares escondidos das autoridades fiscais, que perderão 330 mil milhões de pagamentos devidos. Nenhuma surpresa com esta constatação. É para isso que servem os offshores, para ocultar fortunas e para proteger a fuga ao fisco e a corrupção. Sem esses instrumentos, os bancos que procediam tradicionalmente a estas operações teriam muito mais dificuldade em ocultá-las. Aliás, como aqui lembrei um dia, foi precisamente para o garantir que foi aprovada a legislação do sigilo bancário na Europa na década de 30.
Não é de surpreender, portanto, que os offshores sejam tão conspícuos nos crimes de colarinho branco como a Dona Constança em cada festança. No caso recente da comissão saudita paga ao rei Juan Carlos e escondida numa conta suíça, o padrão é o mesmo. As contas secretas servem precisamente para isso, para ocultar as fortunas, para não pagar os impostos e para proteger o crime da corrupção. O certo é que não foi o primeiro caso, mesmo em tempos recentes. Há anos, o príncipe Bernhard, consorte da rainha Juliana da Holanda, recebeu um bónus da Lockheed para facilitar um contrato militar, o que só reconheceu no final da vida. O cunhado do atual rei de Espanha, Iñaki Urdangarin, foi condenado a prisão por fraude fiscal. O pequeno detalhe monárquico acrescenta uma dimensão nova a estes crimes: quem defende que a chefia do Estado deve ser entregue perpetuamente a uma família cujo poder não seja submetido à democracia e que aceite ainda a transmissão do poder por privilégio de nascimento dificilmente evitará a consequência: notar que o poder irrevogável facilita o crime. Então, se há neste imbróglio espanhol uma vantagem, é mostrar que, havendo delito, a dinastia favorece a perceção de impunidade pelos criminosos. Juan Carlos presta, assim, um último serviço à democracia: exibir a consequência do privilégio régio.