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terça-feira, 4 de outubro de 2022

Rússia - A Revolução virá de dentro

 


A minha esperança é que uma revolução que venha de dentro da própria Rússia, traga a mudança efetiva de regime e devolva o poder ao povo. Verdadeiramente.

A contestação de rua, sobretudo de jovens, nas principais cidades, e apesar da dura repressão, são um sinal inequívoco de uma mudança anunciada.

Assim ela venha, rapidamente.


Nazaré Oliveira


Ver aqui:

https://exame.com/mundo/guerra-na-ucrania-mais-de-800-pessoas-sao-detidas-em-protesto-na-russia/

https://exame.com/mundo/guerra-na-ucrania-mais-de-800-pessoas-sao-detidas-em-protesto-na-russia/

https://pt.euronews.com/2022/02/25/protestos-na-russia-contra-a-guerra

https://www.publico.pt/2022/03/06/mundo/noticia/4300-detidos-russia-manifestacoes-guerra-1997793

https://www.tsf.pt/mundo/acordar-no-lado-errado-da-historia-portuguesa-conta-como-tem-sido-a-vida-em-moscovo-14663899.html

terça-feira, 27 de setembro de 2022

"Não há volta a dar-lhe": ou se é pela Rússia ou se é pela Ucrânia


"A ONU apresentou como confirmados desde o início da guerra 5.916 civis mortos e 8.616 feridos, sublinhando que estes números estão muito aquém dos reais".
Infelizmente, agravar-se-á este número com a mobilização de milhares de russos decidida por Putin para continuar o seu programa de crueldade e morte contra ucranianos e contra os que, mesmo russos, se opõem ao seu ideário extremista e belicista.
Esta guerra que Putin iniciou, porque de guerra se trata, também nos diz respeito e nos merece a maior atenção e apreensão, uma vez que estão em causa valores e princípios completamente espezinhados pelo mesmo, como o respeito pela soberania das nações, pela sua independência, pelas disposições da Carta das Nações Unidas, pelos Direitos Humanos e pelo Direito Internacional.
Nada justifica o que está a acontecer, exceto o desejo imperialista de um homem que, pela violência e pela força, negando a História recente da Europa a a partir de 1989, quer fazer renascer os horrores pelos quais passaram as ditas democracias populares e ressuscitar a velha e prepotente URSS.
Quem não critica abertamente Putin por tudo isto que tem feito também é como ele.
Neste contexto, e perante os factos e esta terrível realidade, não há lugar para os que, estranha e cobardemente se escondem na "abstenção" ou comodamente se viram contra os países que estão a ajudar a Ucrânia.
Isto nunca foi operação militar especial, mas guerra. Guerra!
"Não há volta a dar-lhe": ou se é pela Rússia ou se é pela Ucrânia.


 Nazaré Oliveira


Já agora, para consulta

https://www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/world/20220127STO22047/de-que-forma-a-uniao-europeia-apoia-a-ucrania

 https://youtu.be/LI5dbfr3Xp0 


terça-feira, 15 de março de 2022

O presidente Vladimir Putin está a abusar da História para justificar a invasão da Ucrânia

 




É com choque e horror que testemunhamos os acontecimentos que se desenrolam na Ucrânia, iniciados por ordem do presidente russo, Vladimir Putin, de invadir o país. 

O presidente Vladimir Putin está a abusar da História para justificar esta invasão e o ataque armado ao estado soberano da Ucrânia. Baseia-se numa visão unilateral da História que glorifica a Rússia e caracteriza erroneamente o povo ucraniano e o seu governo democraticamente eleito. Ele abusa da História para deslegitimar as atuais fronteiras da Ucrânia. 

Putin, a sua liderança e os mídia controlados pelo Estado, promoveram o sentimento anti-ucraniano ao disseminar falsidades centradas numa narrativa de “desnazificação” do governo. A equação da atual administração e do povo da Ucrânia com nazis e colaboradores nazis é a-histórica. As alegações de que a Ucrânia não tem tradição de Estado são falsas.

A EuroClio  posiciona-se firmemente contra o abuso da História – o uso da História com a intenção de enganar. O uso da violência que testemunhamos atualmente mostra até onde isso pode levar. Acreditamos que é imperativo que historiadores e educadores de História estejam vigilantes e se manifestem contra tais abusos sempre que possível, tanto dentro quanto fora dos ambientes educacionais.

Estamos solidários com o povo da Ucrânia, que viu o seu território invadido e a sua segurança ameaçada. Também estamos com todas as pessoas que, na Rússia, também estão em choque e protestam contra as ações do seu governo.

Os nossos pensamentos vão, em particular,  para os nossos colegas na Ucrânia que estão em perigo e com quem trabalhamos há décadas para promover o entendimento mútuo por meio da Educação. Esperamos vê-los em breve, com segurança. 

Que possamos testemunhar o fim deste sofrimento o mais cedo possível. 




Artigo disponível em https://euroclio.eu/2022/02/27/statement-against-the-abuse-of-history-and-in-solidarity-with-the-people-of-ukraine/ (consultado dia 15.03.2022)





sábado, 8 de agosto de 2020

A nova Guerra Fria não será fria

 

A nova Guerra Fria não será fria

(Francisco Louçã, in Expresso, 08.08.2020)


Na relação com a China, Trump opta pela tensão máxima. Mas é a economia que manda no conflito, o que o torna mais imprevisível do que o confronto EUA-URSS


A POLÍTICA DO MEDO

Mike Pompeo, um sempre surpreendente chefe da diplomacia norte-americana, fez há dias um discurso definindo o programa do conflito com a China em que anuncia que é tempo de terminar o “paradigma de compromisso cego” que vigora desde a viagem de Nixon em 1972, há quase 50 anos, e que, “se queremos um século XXI livre, o mundo livre tem de triunfar contra esta nova tirania”. Alguns analistas descobriram nesta agressividade o esboço de uma nova Guerra Fria ou uma repetição da história. Estão enganados.

Na disputa pela sua reeleição, atormentado pela incompetência grosseira da sua resposta à pandemia, que levanta contra ele parte da “maioria silenciosa” que o elegeu, Trump só pode tentar salvar-se através de dois expedientes: o medo interno (a ordem contra os desordeiros) ou o medo externo (a tensão com a China). Vai usar os dois. O primeiro foi ensaiado por estes dias em Portland, com a intervenção na rua de agentes federais sem permissão das autoridades estaduais, procurando agravar o conflito e sobrepor-lhe uma confusão institucional. O segundo foi exposto por Pompeo e vai ser dramatizado até ao dia das eleições. Vai haver muito mais disto, com manobras militares, provocações e ameaças, logo veremos até onde pode ir, para dominar a agenda eleitoral. Só que não é uma nova Guerra Fria. A ser alguma coisa é diferente e só pode ser pior. A Trump, em rota de derrota, só resta a ordem do caos, e é nela que vai basear a sua tentativa de recuperação.

A Guerra Fria entre os EUA e a URSS foi uma estratégia bilateral de tensão política e militar de longo prazo, que bordejou o conflito aberto (a crise de Berlim, os mísseis em Cuba), mas sempre o evitou (as guerras eram por procuração, como em África). No entanto, as duas potências tinham escassa relação económica.

Hoje, a China é o principal destino das exportações norte-americanas (incluindo, por ordem de grandeza, a compra de aviões, máquinas, instrumento médicos e automóveis, produtos agrícolas) e os EUA são o principal destino das chinesas (por ordem, máquinas, móveis, brinquedos, plásticos), entre três e quatro vezes mais valiosas. Até abril, a diferença já ultrapassa 100 mil milhões de dólares. Poderá ser o triplo no final do ano.

DEPENDÊNCIA MÚTUA E TENSÃO MÁXIMA

Com esse rendimento, a China compra a dívida pública norte-americana e vende produtos baratos, além de mandar 400 mil estudantes cujas propinas sustentam as universidades dos EUA. Uma rutura teria uma implicação devastadora na economia norte-americana e significaria imediatamente a redução dos salários reais no país. Por isso, uma repetição de uma Guerra Fria de longo desgaste e isolamento dificilmente acontecerá, além de que poderia significar a derrota da potência dominante. Se a nova guerra é primordialmente económica, o que significa que não dispensa os porta-aviões mas que se concentra em novas ameaças, como a transformação do sistema de pagamentos bancários internacionais em arma de destruição massiva, as suas primeiras trincheiras já estão à nossa vista, são a Huawei e a TikTok ou a dominação dos sistemas de comunicações. Aí será a luta sem quartel.

Assim, é a economia que manda no conflito, o que o torna mais imprevisível do que o confronto EUA-URSS. Além disso, e ao contrário do que se passou durante a Guerra Fria, o limite institucional está agora consagrado à sobrevivência de um bufão. E, se só um Presidente desesperado pode escolher a tensão máxima, é mesmo um homem dessa raça que mora agora na Casa Branca, para quem o futuro é nada mais do que um jogo pessoal.


Dentro de meses será tarde demais para o Novo Banco

Se há algo em Portugal que seja tão regular e previsível como o relógio de cuco são os escândalos no Novo Banco. A administração, que já recebeu o quinhão anual prometido pelo contrato negociado por Sérgio Monteiro e certificado pelo Banco de Portugal e por Mário Centeno, exige agora mais €176 milhões por conta de prejuízos deste ano. Mas, sendo esta gula ilimitada, os supervisores sentiram-se forçados a revelar, a tal os obriga a pressão pública, que há €260 milhões que foram irregularmente incluídos nas contas e que estavam fora do perímetro das contas que determinam as injeções públicas. A trapalhada monumental em que se tornou o que foi o maior banco privado nacional estava inscrita desde o primeiro dia deste processo, mas não deixa de surpreender pela imaginação fértil.

O problema é que não foi difícil. Houve, como seria de esperar, uma conjugação de demasiada incompetência ou de interessada competência: a Deloitte atrasa a auditoria, já vai em cinco meses, e não se sabe o que apresentará, o Fundo de Resolução nem tem meios nem parece ter vontade de controlar as operações, o Ministério das Finanças aprecia mais as reivindicações do Lone Star do que as contas públicas. Todos se conjugaram para este maravilhoso resultado.

Se houver uma réstia de decência, substituir a administração do Novo Banco, cuja idoneidade está posta em causa por sucessivas operações desastradas para impor prejuízos ao erário público, é a primeira condição para o saneamento da instituição. Se assim não for, ao longo deste ano continuará a limpeza do baú em modo catástrofe, para no fim o cadáver do banco ser vendido a algum outro aventureiro por tuta e meia.


As dinastias do eixo do mal

Com dados da OCDE publicados esta semana, a Tax Justice Network, uma rede de investigadores que se dedica ao combate à fraude fiscal e à lavagem de dinheiro, detetou 467 mil milhões de dólares de lucros empresariais escondidos em offshores para evitar o pagamento de impostos no ano passado. As perdas em impostos devidos teriam sido de 117 mil milhões. Constata-se que o Reino Unido, a Suíça, o Luxemburgo e a Holanda captam 72% deste total. A Holanda é campeã, seguindo-se vários territórios britânicos (como as Bermudas). O Reino Unido, aliás, impediu agora a OCDE de publicar os dados detalhados país por país, apesar de há quatro anos o ter aceite.

Mas, como se trata de dados sobre unicamente 15 países, os investigadores usaram a metodologia do FMI para projetarem um total mundial de 1,3 biliões de dólares escondidos das autoridades fiscais, que perderão 330 mil milhões de pagamentos devidos. Nenhuma surpresa com esta constatação. É para isso que servem os offshores, para ocultar fortunas e para proteger a fuga ao fisco e a corrupção. Sem esses instrumentos, os bancos que procediam tradicionalmente a estas operações teriam muito mais dificuldade em ocultá-las. Aliás, como aqui lembrei um dia, foi precisamente para o garantir que foi aprovada a legislação do sigilo bancário na Europa na década de 30.

Não é de surpreender, portanto, que os offshores sejam tão conspícuos nos crimes de colarinho branco como a Dona Constança em cada festança. No caso recente da comissão saudita paga ao rei Juan Carlos e escondida numa conta suíça, o padrão é o mesmo. As contas secretas servem precisamente para isso, para ocultar as fortunas, para não pagar os impostos e para proteger o crime da corrupção. O certo é que não foi o primeiro caso, mesmo em tempos recentes. Há anos, o príncipe Bernhard, consorte da rainha Juliana da Holanda, recebeu um bónus da Lockheed para facilitar um contrato militar, o que só reconheceu no final da vida. O cunhado do atual rei de Espanha, Iñaki Urdangarin, foi condenado a prisão por fraude fiscal. O pequeno detalhe monárquico acrescenta uma dimensão nova a estes crimes: quem defende que a chefia do Estado deve ser entregue perpetuamente a uma família cujo poder não seja submetido à democracia e que aceite ainda a transmissão do poder por privilégio de nascimento dificilmente evitará a consequência: notar que o poder irrevogável facilita o crime. Então, se há neste imbróglio espanhol uma vantagem, é mostrar que, havendo delito, a dinastia favorece a perceção de impunidade pelos criminosos. Juan Carlos presta, assim, um último serviço à democracia: exibir a consequência do privilégio régio.

sábado, 15 de junho de 2019

Refugiados

Disponível em https://www.publico.pt/2017/06/19/mundo/noticia/numero-de-pessoas-deslocadas-em-todo-o-mundo-bate-recordes-1776141 (consultado dia 15.06.2019)



Disponível em https://oglobo.globo.com/mundo/de-onde-vem-os-refugiados-por-que-17480704 (consultado dia 15.06.2019)

Disponível em https://sicnoticias.pt/especiais/afeganistao-capital-dos-errantes/2019-01-28-Os-refugiados-em-Portugal-e-no-mundo (consultado dia 15.06.2019)







Todos os que fogem da guerra, da fome, da miséria, da intolerância, e procuram uma vida em paz e com dignidade, todos têm direito a um abraço fraterno (asilo) e  todos devem dá-lo.
"Hoje eles, amanhã nós!" 
Os Direitos Humanos, a sua defesa, não se pode ficar por meras palavras. É preciso ação, ação e seriedade nas relações políticas e na diplomacia internacional.



Para os que se interessam por este tema, esta realidade, consultar:

quarta-feira, 13 de março de 2019

Greve estudantil PELO CLIMA




Greve estudantil climática soma cidades à convocatória


Está marcada para o mundo inteiro para a próxima sexta-feira. Em Portugal será a partir das 10.30. Há cada vez mais cidades com convocatórias de concentrações para a greve estudantil climática. Porque, dizem os jovens, “não há planeta B”.

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Os estudantes portugueses estão a responder ao apelo internacional para organizar uma greve climática estudantil que tem sido difundido com as hashtags #SchoolStrike4Climate e #FridaysForFuture.
Arouca, Aveiro, Arouca, Barcelos, Braga, Chaves, Coimbra, Covilhã, Évora, Faial, Faro, Flores, Fornos de Algodres, Funchal, Leiria, Lisboa, Ourém, Portalegre, Porto, Reguengos de Monsaraz, Santarém, Santa Maria, Setúbal, Tomar, Torres Vedras, Vila Real, Viana do Castelo têm já concentrações marcadas mas os organizadores convidam ainda mais a juntar-se à causa.
Nascido na sequência da intervenção de uma jovem sueca, Greta Thunberg, que protestou a partir de agosto em frente ao parlamento com o cartaz em que se lia “School Strike for Climate”, o movimento despoletou manifestações em vários ponto do globo: Alemanha, Austrália, Bélgica, Canadá, Finlândia, Itália, Irlanda, Reino Unido e Estados Unidos são apenas alguns dos exemplos.
Depois das manifestações em cada um dos países segundo os calendários decididos localmente, chegou o apelo para um dia de ação global a 15 de março. Um mapa provisório dos protesto pode ser encontrado aqui.(link is external)
 Em Portugal, os responsáveis pela convocatória fizeram um site (link is external)
no qual esclarecem que o movimento é “estudantil, internacional, pacífico e não-violento, determinado e organizado, descentralizado e apartidário”.



in https://www.esquerda.net/artigo/greve-estudantil-climatica-soma-cidades-convocatoria/60160

sábado, 2 de março de 2019

Os Loucos da Rua Mazur



Despojos de dignidade. Talvez seja esta uma forma arriscadamente simplista para apresentar o mais recente romance de João Pinto Coelho, que retrata a vida de uma pequena comunidade situada na Polónia antes, durante e depois da guerra e o contexto de um massacre perpetrado por cristãos relativamente a judeus, gente que antes convivia e se relacionava em contextos intimistas e pacíficos.
Muito se tem escrito e romanceado sobre a II Guerra Mundial, quase sempre a partir do comportamento invasor alemão, quase sempre com papeis consensualmente atribuídos a vítimas e a agressores. “Os Loucos da Rua Mazur” (Leya, 2017), de João Pinto Coelho (Prémio Leya 2017), apresenta uma abordagem diferente deste momento da história.
No nordeste da Polónia, entre 1935 e 1941, acompanhamos a vida de três amigos, jovens adolescentes, que vêm as suas vidas clivadas pelos acontecimentos geopolíticos de então e pela herança religiosa e cultural que transportavam consigo. Yankel, judeu, cego, torna-se décadas mais tarde livreiro em Paris, capaz de encontrar imagens para retratar a realidade.
Eryk, católico, maquiavélico, revela-se um improvável escritor que se disfarça nas personagens que cria, ensaiando a própria vida nos romances. Shionka, uma muda funcional que se torna relatora e editora, voz de memórias que agridem quem as recupera. O foco é surpreendente, indo com detalhe a parcelas da vida de um povo que se viu duplamente invadido e dividido pelos dois invasores, alemães e russos, como pela fragmentação social e religiosa surgida na própria sociedade polaca.
Entre Setembro de 1939 e o fim do conflito mundial, a Polónia viu-se multiplamente dividida entre o ressentimento dirigido às forças alemãs e soviéticas, o registo de alianças e a sobrevivência relativamente aos invasores, vítima de um terror em massa e de um esquema de dilação e denúncia.
Durante anos, os polacos viram-se privados de dignidade e de confiança a determinada altura em si próprios, tal o efeito pernicioso da dilação, perseguição e aniquilação promovida pelos ocupantes e efectivada, em certos momentos, por eles próprios, sabendo que a qualquer momento qualquer pessoa poderia ser alvo do extermínio, fosse qual fosse o pretexto, religioso, genético, étnico ou tão só estético, qual busca da perfeição. Apontam-se para cerca de seis milhões de pessoas as vítimas polacas mortas durante a invasão do país no período de 1939 a 1945. Muitos sobreviveram tornando-se refugiados no seu próprio país.
“Os Loucos da Rua Mazur” dá voz e visibilidade a uma forma especialmente perversa do domínio ocupante, nazi e soviético, aquela que conseguiu corromper as bases da convivência e confiança comunitária, substituindo-a por dilação, denúncia e anti-semitismo levado ao extremo, entre os próprios polacos, retratando a forma como muitos foram exterminados fora dos campos e dos guetos. Já em 2001, em Paris, cada um dos três protagonistas, fisicamente sobreviventes, mas emocionalmente esfarrapados, dão corpo à resiliência, reserva e dignidade do povo polaco. Ao recuperarem as memórias da inverosimilhança de episódios passados, vividos pelos próprios constatam que “quem viu de frente o inferno, não pode querer lá voltar nem contar o que encontrou”.
Longe de ser consensual, especialmente pela visão que o autor apresenta da fragmentação da sociedade polaca, trata-se de um livro que rompe com a unilateralidade dominante de apresentação destes acontecimentos históricos. Fá-lo depois de, entre outros projectos na área, ter integrado acções do Conselho da Europa em Auschwitz e trabalhado de perto com vários investigadores do Holocausto. 
Como relato com fundamento histórico, a narrativa de João Pinto Coelho serve-se da magia das palavras e da escrita, das letras e dos sons, independentemente da sua forma, como forma de sobrevivência e renovação de uma memória que se deseja imparcial e profundamente subjectiva. Contraditório? Talvez. Impossível? Não necessariamente. Leiamos “Os Loucos da Rua Mazur” e constatemos a forma como as cinzas desta memória assentaram.


Por Francisca Moura , in http://deusmelivro.com/mil-folhas/os-loucos-da-rua-mazur-joao-pinto-coelho-28-12-2017/em 28/12/2017.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Carta de Natal de ROSA LUXEMBURGO


Rosa Luxemburgo escreve sobre árvores de natal, livros e bagas. Sobre a alegria com que enfrenta a prisão e a compaixão com os búfalos maltratados. A sua carta é um documento histórico produzido por uma figura destacada do movimento comunista do século passado. E apenas um relato íntimo.
25 de Dezembro, 2018 - 20:43h

Em meados de dezembro de 1917, Rosa Luxemburgo escreveu esta carta a Sophie Liebknecht. Foi o último dos três natais que passaria na prisão. Apesar de só ter sido libertada em novembro do ano seguinte. A partir daí o tempo acelerou tragicamente. Até janeiro de 1918.
Karl está na prisão de Luckau desde há um ano. Tenho pensado tanto nisso neste mês e sobre como apenas passou um ano desde que me vieste ver a Wronke e me deste aquela adorável árvore de Natal. Desta vez arranjei uma aqui. Mas trouxeram-me uma árvore raquítica com alguns dos ramos partidos – não tem comparação com a tua. Nem sei como vou conseguir colocar-lhe todas as oito velas que tenho para lhe por. Este é o meu terceiro Natal encarcerada mas não deixes isso desanimar-te. Estou tão tranquila e alegre como sempre. Na última noite fiquei acordada por muito tempo. Tenho de ir para a cama às dez mas não consigo adormecer antes da uma da manhã, por isso deito-me no escuro, ponderando muitas coisas.
Na última noite os meus pensamentos fluíram desta forma: “é tão estranho que esteja sempre numa espécie de intoxicação alegre apesar de não ter causas suficientes para isso. Aqui estou eu deitada numa cela de prisão escura sobre um colchão duro como uma pedra; o edifício tem a sua habitual quietude de adro de igreja, de tal forma que se poderia já estar sepultada; através da janela cai cruzando a cama um cintilar de luz do candeeiro que está toda a noite aceso em frente da prisão. A espaços consigo ouvir à distância o barulho fraco do comboio que passa ou bem perto a tosse seca do guarda prisional tal como as suas botas pesadas já que ele dá algumas passadas lentas para esticar as pernas. O rangido do cascalho sob os seus pés tem um som tão desesperançado que toda a fadiga e futilidade da existência parece ser assim irradiada na noite sombria e húmida. Deito-me aqui sozinha e em silêncio, envolvida nos múltiplos agasalhos negros da escuridão, do tédio, da falta de liberdade e do inverno – e contudo o meu coração bate com uma incomensurável e incompreensível alegria interior, tal como se me estivesse a mover num raio de sol brilhante num prado florescente
E na escuridão eu sorrio à vida, como se fosse possuidora de um talismã que me tornasse capaz de transformar tudo o que é mau e trágico em serenidade e felicidade. Mas quando procuro na minha mente a causa desta alegria, encontro que não há causa para ela e apenas consigo rir-me de mim própria” – acho que a chave para o enigma é simplesmente a própria vida, esta profunda escuridão da noite é leve e bonita como veludo, basta olhar para ela da forma certa. O rangido do cascalho húmido sob as pisadas lentas e pesadas do guarda prisional é igualmente uma adorável pequena canção de vida – para quem tenha ouvidos para a ouvir. Em tais momento penso em ti, e em como faria o que pudesse para te entregar esta chave mágica também. Assim, em todos os tempos e lugares, serias capaz de ver a beleza e a alegria da lida; então também poderias viver numa doce embrieguês e fazer o teu caminho por entre um prado fluorescente. Não penses que te estou a oferecer alegrias imaginárias ou que estou a pregar o ascetismo. Quero que proves todos os prazeres reais dos sentidos. O meu único desejo é dar-te para além disso o meu inesgotável sentido de êxtase interior.
Se o pudesse fazer, estaria à vontade sobre ti, sabendo que na tua passagem pela vida estarias vestida com um manto enfeitado de estrelas que te protegeria de tudo o que é mesquinho, trivial ou assediante.
Estou interessada em ouvir sobre o adorável cacho de bagas, das negras e vermelhas-violetas, que colheste no parque Steglitz. As amoras talvez tenham sido mais maduras – claro que conheces as bagas mais maduras que ficam penduradas em cachos grossos e pesados entre as folhas em forma de leque. Mais provavelmente, contudo, eram ligustros esguios e graciosos com picos verticais de bagas por entre as folhas verdes estreitas e alongadas. As bagas avermelhadas-violeta, quase escondidas pelas pequenas folhas, devem ter sido as da nespereira anã; a sua cor apropriada é o vermelho mas nesta época tardia em que estão demasiado maduras e começam a apodrecer ganham muitas vezes um tom violeta. As folhas são como as do mirtilo, pequenas, pontiagudas, verde escuras, com uma superfície como se fosse couro em cima mas rugosas por baixo.
Sonyusha, conheces o Verhängnisvolle Gabel de Platen? (1) Poderias enviar-mo ou trazê-lo quando vieres? Karl disse-me que o leu em casa. Os poemas de George são belos. Agora já sei de onde tiraste o verso “e entre o farfalhar do milho avermelhado” que gostavas de citar quando estavas a passear no campo. Gostava que me copiasses o Amades Moderno (2) quando tiveres tempo. Gosto tanto do poema (um conhecimento que devo às composições de Hugo Wolf) mas não o tenho aqui. Ainda estás a ler a Lenda Lessing? Estive a reler a História do Materialismo de Lange (3) que acho sempre estimulante e revigorante. Espero que a leias algum dia.
Sonichka, querida, tive uma dor tão grande recentemente. No pátio onde caminho, frequentemente chegam camiões do exército, carregados de mochilas ou velhos casacos e camisas vindos da frente de guerra; por vezes estão manchados com sangue. São enviados para as celas das mulheres para serem remendados e depois regressam para serem usados pelo exército. O outro dia um destes camiões foi puxado por uma parelha de búfalos em vez de cavalos. Nunca tinha visto estas criaturas perto antes. Têm uma compleição mais poderosa que os nossos bois, com cabeças achatadas, e cornos firmemente recurvados, de tal modo que os seus crânios têm uma forma parecida com os das ovelhas. São pretos e têm olhos grandes e meigos. Os búfalos são troféus de guerra na Roménia. Os soldados-condutores dizem que é muito difícil apanhar estes animais, que sempre têm corrido livremente, e ainda mais difícil de quebrá-los de modo a domesticá-los. Têm sido impiedosamente açoitados – sob o princípio do “vae victis”(4). Há quase uma centena de cabeças apenas em Breslau. Estavam acostumados aos luxuriantes prados romenos e aqui têm de suportar uma forragem fraca e escassa. Explorados sem limites, sob a canga de cargas pesadas, rapidamente se esgotam a trabalhar até à morte.
O outro dia um camião veio carregado de sacas, tão sobrecarregado de facto que os búfalos eram incapazes de arrastá-lo através da soleira do portão. O soldado condutor, um tipo bruto, espancou as pobres bestas de maneira tão selvagem com o cabo do seu chicote que a guarda do portão, indignada com o que via, lhe pediu compaixão pelos animais. “Não mais do que alguém tem compaixão por nós homens”, respondeu ele com um sorriso malvado e redobrou os seus golpes. Lentamente os búfalos conseguiram fazer a carga sobre o obstáculo mas um deles estava a sangrar. Sabe-se que a sua pele é conhecida pela sua espessura e dureza mas tinha sido rasgada. Enquanto os camiões estavam a ser descarregados, as bestas, que estavam absolutamente exaustas, permaneceram perfeitamente paradas.
O que estava a sangrar tinha uma expressão na sua cara preta e nos seus olhos pretos meigos como a de uma criança a chorar – uma criança que tenha sido fortemente espancada e não perceba porquê, nem saiba como escapar ao tormento dos maus tratos. Fiquei em frente dos animais; a besta olhou para mim: as lágrimas jorraram dos meus olhos. O sofrimento de um irmão muito amado dificilmente poderia ter-me afetado mais profundamente do que estava comovida pela minha impotência face à sua muda agonia. Muito longe, perdidos para sempre, estavam os prados verdejantes e luxuriantes da Roménia. Quão diferente é lá a luz do sol, o sopro do vento; quão diferente é lá a canção dos pássaros e o chamamento melodioso do pastor.
Em vez disso, a rua hedionda, o estábulo fétido, o feno rançoso misturado com a palha bolorenta, os homens estranhos e terríveis – golpe após golpe e com sangue a escorrer das feridas abertas. Pobre miserável, sou tão impotente, tão estúpida, quanto tu próprio; sinto-me unida a ti na tua dor, na tua fraqueza e na minha saudade.
Enquanto isso as mulheres prisioneiras acotovelavam-se enquanto descarregavam atarefadamente a carrinha e carregavam as sacas pesadas para o edifício. O condutor, de mãos nos bolsos, galgava o pátio de cima para baixo, sorrindo a si próprio enquanto assobiava uma moda popular. Tive uma visão do esplendor da guerra!...
Deixa estar, minha Sonyusha; deves estar calma e feliz na mesma. Tal é a vida e temos de a tomar tal como é, bravamente, cabeças erguidas, sorrindo sempre – apesar de tudo.



Tradução de Carlos Carujo a partir da versão inglesa disponível em marxists.org

(1) O Garfo Fatal, uma comédia satírica
(2) Uma canção de Goethe.
(3) Lange foi também autor de “A questão do trabalho, o seu significado para o presente e o futuro”.
(4) Expressão latina que significa literalmente “Ai dos vencidos”. Remete para o facto dos vencidos em batalhas não deverem esperar misericórdia dos vencedores.


in https://www.esquerda.net/artigo/carta-de-natal-de-rosa-luxemburgo/58743 (26.12.2018)



Foto de William Avery Hudson/Flickr

domingo, 1 de julho de 2018

Fernando Rosas alerta para o perigo do conhecimento sem cultura





O historiador Fernando Rosas alerta para a “desculturalização do conhecimento”, promovida pelas novas tecnologias, e considera que “a substituição do Homem pela máquina só se resolve no quadro de uma sociedade socialista”.


Fernando Rosas, autor, entre outras obras, de "Portugal Século XX: Pensamento e Ação Política” (2004), faz estas declarações a encerrar o novo volume, a si dedicado, da série “Fio da Memória”, de autoria de José Jorge Letria, editada pela Guerra e Paz.
Esta série publica entrevistas a personalidades da cultura, contando com títulos dedicados à escritora Lídia Jorge, ao maestro Álvaro Cassuto, ao cineasta António-Pedro Vasconcelos, ao catedrático de filosofia Manuel Maria Carrilho, ou o ensaísta Eduardo Lourenço.
No último capítulo do novo volume, intitulado “Nas Minhas Velhas Convicções de Militante Socialista”, o historiador comenta que quando alguém quer saber quem foi Vladimir Lenine (1870-1924), político que liderou os sucessivos Governos russos desde o derrube da monarquia, em 1917, até 1924, resolve o problema de “telemóvel em punho”.
Rosas afirma que “há uma ‘desculturalização’ do conhecimento” e, noutro capítulo da obra, numa resposta a Letria, argumenta que “nada substitui o livro e o papel”, referindo que, no atual contexto, “há é uma desistência da leitura, da reflexão crítica e da controvérsia”.
O historiador Fernando Rosas, de 72 anos, é apontado pelo escritor José Jorge Letria como um exemplo de como o combate político se tornou “numa intensa e apaixonada carreira académica” na historiografia.
Licenciado em Direito, pela Universidade de Lisboa, Rosas “constitui um exemplo de como o combate político, que implicou detenções nas prisões da ditadura, mas também a experiência da clandestinidade, acabou por se converter numa intensa e apaixonada carreira académica que lhe permite falar da História como uma paixão e do pensamento político como uma porta aberta para o que há de vir e que ninguém sabe ao certo o que será e como irá ser”.
Nesta conversa, colocada em letra de forma, Fernando Rosas dá conta de como o seu avô materno, Filipe Mendes, um republicano, o influenciou, tendo-se tornado militante do Partido Comunista Português (PCP) aos 15 anos e, mais tarde, depois da Revolução de Abril, militante do MRPP e diretor do seu órgão oficial, o jornal Luta Popular, “num tempo turbulento e violento”, escreve Letria.
Sobre si, afirma Fernando Rosas: “Nasci com a política à mesa”. E recorda os brindes de natal, em que o avô finalizava com “Viva a República, viva a liberdade”, ou como a casa da sua tia Cândida Ventura, funcionava como apoio aos militantes clandestinos do PCP.
No texto sobre as suas “velhas convicções de militante socialista”, o autor regressa às teorias de Karl Marx, filósofo sobre qual nota assistir-se “uma pujança editorial” de trabalhos sobre o pensador.
Considerando “muito importante”, no contexto social atual, “a substituição do Homem pela máquina”, Rosa afirma que esta questão “só se resolve no quadro duma sociedade socialista, ou seja, só se resolve "no quadro da coletivização dos meios de produção", e quando se puder “planear os meios de produção para que o inevitável e necessário progresso da máquina traga ao Homem mais tempo de lazer e de bem-estar e não o desemprego e a miséria”.
Uma questão, argumenta, que “tem tudo a ver com o capitalismo e com a superação do capitalismo”.
“A coletivização tem de ter poder sobre os meios de produção, para que possa programar em seu proveito o progresso da técnica”, defende.




terça-feira, 26 de dezembro de 2017

A democratização dos textos primeiros da cultura portuguesa: O acontecimento editorial do ano



Com a devida vénia transcrevo o artigo de Beja Santos que saiu no programa "Vida Alternativa" da Rádio Zero:


Esperei até meados de Dezembro para avaliar a importância dos projetos editoriais mais relevantes. De tudo quanto apareceu no mercado livreiro nada se aproxima das “Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa”, com direção de José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, edição do Círculo de Leitores, início em 2017, projeto de fôlego, constituído por 80 obras em 30 volumes. O que aqui se dá à estampa são textos e documentos que revelam o pioneirismo em Portugal nos domínios da arte, ciências exatas e ciências humanas, na literatura, na música e noutros domínios do conhecimento. Falamos do mesmo Círculo de Leitores que anos atrás publicou pela primeira vez em Portugal todas as obras do padre António Vieira, empreendimento grandioso que estranhamente nem uma menção ou prémio recebeu. Este projeto envolveu um grande exército, 174 elementos entre investigadores, coordenadores dos volumes, consultores nacionais e internacionais, envolveu universidades nacionais e internacionais, centros de investigação e academias. Um labor sem precedentes e com resultados surpreendentes: os textos de todas as obras foram transcritos, fixados e criteriosamente atualizados a partir das suas versões primeiras.
Trinta volumes com uma seleção dos primeiros textos em português, de história, heráldica edificação moral e crónica biográfica, viagens e descobrimento, ética social e política, geografia e ecologia, e muitíssimo mais. É um registo admirável de 800 anos de história comum, estão aqui os fundamentos que podem permitir uma maior amplitude para o conhecimento da cultura portuguesa, ao alcance do chamado leitor médio., que em circunstância alguma teria acesso a estes textos primigénios. A propósito deste projeto, Carlos Fiolhais esclareceu numa entrevista o que há de transcendente nesta articulação entre a produção cultural e a ciência na história de Portugal: “Os Descobrimentos Portugueses dos séculos XV e XVI constituíram um prelúdio da Revolução Científica, que se deu no século XVII, com Galileu, Newton e outros grandes nomes. No empreendimento marítimo dos portugueses, que pode ser considerado uma primeira globalização, estavam já presentes a observação e a experiência, fundadas na curiosidade, que haveriam de presidir à Revolução Científica. Os portugueses encontraram novas terras, novas espécies minerais, zoológicas e botânicas e novas gentes, com culturas assaz distintas, e souberam reportar o que viram e o que viveram. Alguns instrumentos científicos introduzidos por cientistas seiscentistas, como o telescópio e o relógio mecânico, foram introduzidos na Índia, na China e no Japão pelos navegadores lusos. O mesmo se passou com os conhecimentos matemáticos, astronómicos e físicos do Ocidente, que foram nalguns casos traduzidos para línguas orientais. Mais tardem, no Iluminismo, ocorreu em Portugal uma ressuscitação da Ciência. E foi nessa altura que foram escritos em português os primeiros tratados de anatomia, de física, de química e de engenharia, que não estavam muito desfasados de obras similares que então surgiram noutras línguas nacionais”. O meso investigador dirá mais adiante que “a nossa preocupação foi mesmo oferecer os originais, pedindo a especialistas uma introdução integradora e as notas explicativas necessárias. Cada época histórica tem direito a uma leitura renovada dos textos fundadores da sua cultura e estava na hora de dar aos portugueses e a outros interessados um acesso fácil a esses textos, de modo a que pudessem fazer um juízo atualizado”.
No prefácio ao primeiro livro destas obras pioneiras, e dedicado a cantigas trovadorescas, prosa literária e documentação instrumental, os coordenadores lembram a dificuldade que existe em encontrar nas livrarias edições contemporâneas das obras dos sábios do Renascimento português, que se traduzia numa perda de autoestima cultural, classificado por muitos como o “atraso português”. E esclarece a organização dos 30 volumes, para aguçar o apetite aos leitores. E não se esquecem de anunciar a contingência deste projeto, a seleção não é definitiva nem completa, nele não entraram mais obras das disciplinas aqui representadas, e deixam uma mensagem para um projeto futuro: “Seria interessante fazer uma outra série com obras pioneiras de boa parte dos séculos XIX e XX, de modo a abarcar as áreas do saber que emergiram nessa época, nomeadamente as ciências naturais, a sociologia, a psicologia, a antropologia, a ciências políticas, entre outras”.
Falando dos primeiros textos em português, constata-se a preocupação em enquadrar o leitor quanto à seleção dos textos, situando a lírica, as suas origens, os poetas, as cantigas de diferentes tipos e temas, a prosa literária e os testemunhos escritos que têm a ver com compras-vendas, permutas, doações, testamentos, arrendamentos, e algo mais. O leitor será surpreendido pela beleza das cantigas profanas, pelas cantigas de Santa Maria, pela prosa literária e por um conjunto de documentos que registam a matriz da língua. Lê-se com emoção a cantiga de amigo “Eu, velida, não dormia” onde aparece uma expressão de todo enigmática “Edoi lelia doura”, que Herberto Helder escolheu para título de uma antologia de poesia portuguesa por ele organizada, entende-se que essa expressão era proveniente do árabe e significaria “hoje é a minha vez”. E é bem português o testamento de D. Afonso II, com data de 1214, que assim começa: “Eno nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e salvo, temente o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier reina dona Urraca, e de meus filios, e de meus vassalos e de todo meu reino, fiz mia manda per que, depois mia morte, mia molier e meus filios e meus vassalos e meu reino e todas aquelas cosas que Deus me deu en poder sten en paz e en folgancia”.
Há muitas décadas atrás, havia um recurso para suprir, com seríssimas lacunas, estas obras pioneiras, líamos alguns dos Clássicos da Sá da Costa, de saudosa memória. Este projeto é do maior alento, é um ambicioso grande arco sobre a nossa língua e a vastidão dos nossos conhecimentos.
Para um acontecimento editorial desta grandeza, o nosso agradecimento é coisa menor, um importante é chegar à biblioteca de todos nós.

Beja Santos, December 15th, 2017









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domingo, 2 de julho de 2017

Simone Veil

Simone Veil (1927-2017), a sobrevivente que fez história pelas mulheres

Foi protagonista da lei que em 1974 despenalizou o aborto, europeísta convicta, magistrada e uma das figuras políticas mais amadas de França. Antes de tudo isso, sobreviveu ao inferno dos campos de concentração.


Foi a 26 de Novembro de 1974 que Simone Veil subiu à tribuna da Assembleia Nacional francesa para falar em nome das 300 mil mulheres que todos os anos abortavam clandestinamente no país. “Não podemos continuar a fechar os olhos”, disse a então ministra da Saúde, num discurso que seria repetido por muitas outras depois dela e que a França voltou a recordar no dia em que chorou a morte de uma das suas personalidades políticas mais amadas.
Há muitas dimensões nos 89 anos de vida de Veil, a jovem judia deportada para os campos de concentração nazi que sobreviveu para se tornar magistrada e ministra, a combatente pelos direitos reprodutivos das mulheres, a primeira Presidente do Parlamento Europeu eleito por sufrágio universal, a constitucionalista e voz empenhada em todas as causas em que acreditava.
“Possa o seu exemplo inspirar os nossos compatriotas, que nele encontrarão o melhor de França”, reagiu o Presidente Emmanuel Macron, logo depois de a família ter anunciado a sua morte. “Que a sua vida exemplar permaneça uma referência para todos os jovens de hoje. Era uma mulher excepcional que conheceu as maiores felicidades e as maiores tragédias na vida”, escreveu o antigo Presidente Valéry Giscard d'Estaing, que em 1974 lhe entregou a pasta da Saúde e a tarefa – então quase suicida, sobretudo para um Governo de direita – de fazer aprovar a despenalização da interrupção voluntária da gravidez com que ele se comprometera na campanha.
Ela não o desiludiu, mesmo que já no final da vida tivesse confessado que acreditava que “não iria durar mais de umas semanas” no cargo, o tempo necessário “para cometer alguma asneira”.
Mas em vez de insegurança, mostrou convicção, mesmo perante os piores insultos. “Nenhuma mulher recorre de ânimo leve ao aborto. Ele continuará a ser sempre um drama”, afirmou a jovem ministra, perante um hemiciclo onde apenas nove dos 490 lugares eram ocupados por mulheres. O debate demorou três dias, mas a lei – que assumiria o seu nome – acabou por ser aprovada por 284 votos a favor, fazendo de França o primeiro país de maioria católica a despenalizar a IVG. “Se sinto orgulho? Não, mas sinto uma grande satisfação porque isto era muito importante para as mulheres, porque era um problema que me era caro há muito tempo”, responderia anos mais tarde.

Sobrevivente
O carácter que a definiria – “uma rocha”, na descrição do Libération – atribuiu-o ela própria à sua infância e, sobretudo, à experiência inimaginável do Holocausto, que foi a sua companhia permanente. “Tenho a convicção que no dia em que morrer, será na Shoah que pensarei”, disse ao Le Monde em 2009.
Simone nasceu em 1927, a mais nova de quatro filhos de uma família judia burguesa – o pai um arquitecto premiado, a mãe forçada pelas regras da sociedade a abandonar os estudos de Química para cuidar da família. Uma infância feliz brutalmente interrompida pela II Guerra e a invasão nazi. A família foi presa e deportada em Março de 1944, o pai e o irmão num comboio com destino à Lituânia, onde acabariam por morrer em circunstâncias nunca apuradas; ela, a mãe e uma das irmãs enviadas para Auschwitz-Birkenau. Sobreviveu aos trabalhos forçados – contou que foi protegida por uma guarda prisional que lhe disse que “era demasiado bonita para morrer ali” – aos quilómetros da fuga forçada através da neve que terminou no campo de Bergen-Belsen, onde a mãe, doente com tifo, morreria dias antes da libertação.
Com o número de prisioneira – 78651 – para sempre tatuado no braço, Simone regressou a França, matriculou-se na Sciences Po, onde conheceu Antoine Veil, seu marido em pouco tempo. Tiveram três filhos e foi então que, após duras discussões conjugais, convenceu Antoine de que não iria ficar em casa. Ele aceitou na condição que ela fosse magistrada e sua ascensão foi imparável: em 1969 foi nomeada conselheira do então ministro da Justiça, no ano seguinte tornou-se a primeira mulher secretária-geral do Conselho Superior da Magistratura. Em 1974 chegaria o convite que marcou a sua carreira política.

Europeísta convicta
Alguns sobreviventes do Holocausto “ficaram para sempre esmagados pela imensa catástrofe. Outros demonstraram uma energia incrível, como se o facto de terem filhos ou dedicarem-se a uma profissão constituísse uma espécie de vitória sobre o nazismo, como se quisessem que os seus pais desaparecidos tivessem orgulho neles. Simone Veil pertencia sem dúvida a estes últimos”, escreveu Serge Klarsfeld, amigo e presidente da Associação de Filhos e Filhas dos Judeus Deportados de França, citado pelo Le Monde.
Mas a experiência do Holocausto tornou também Simone Veil numa europeísta convicta. “A Europa arrastou por duas vezes o mundo inteiro para a guerra. Ela deve encarnar agora a paz”, era uma das suas favoritas, recorda o Libération. A pedido de Giscard d'Estaing concorre às primeiras eleições europeias e acaba por assumir a presidência do Parlamento Europeu. Jacques Delors, futuro presidente da Comissão Europeia, recorda que entre o entusiasmo desses dias iniciais da integração europeia Simone Veil “demonstrou ter uma qualidade rara, a do discernimento”, sublinhando sempre as dificuldades do caminho.
Regressaria ao Governo francês em 1993, mas seria no Conselho Constitucional, a mais alta instância judicial, que passaria a última década da sua vida activa. Acumulou distinções – a Legião de Honra, a Academia Francesa, a presidência da Fundação para a Memória da Shoah. Nos últimos anos, a idade e a doença foram-na afastando da vida pública, mas não do imaginário dos franceses, que continuavam a considerá-la uma das figuras políticas mais populares.
“Continuo a acreditar que vale sempre a pena batermo-nos por qualquer coisa. Digam o que disserem, a humanidade está hoje mais suportável do que no passado”, afirmou há alguns anos ao Libération. “Acusam-me de ser autoritária. Mas só me arrependo de não me ter batido por esta ou aquela questão”.