Encontrou um animal em risco ou abandonado? Deverá entrar em contacto com o Centro de Recolha Oficial (CRO) correspondente ao município em que o animal se encontra e com a Polícia de Segurança Pública (PSP).
Os CRO são os responsáveis legais por recolher animais abandonados e/ou em risco, garantindo-lhes cuidados médico-veterinários, esterilização, desparasitação, guarida e comida apropriada, até que estes sejam adotados.
O Programa de Defesa Animal existe desde 2015 e está implementado em todo o dispositivo da PSP (todos os Comandos Distritais, Comandos Metropolitanos de Lisboa e Porto, e Comandos Regionais da Madeira e dos Açores), funcionando 24 horas por dias, durante todo o ano.
Os casos que não sejam da responsabilidade de patrulhamento da PSP são encaminhados para a força de segurança adequada.
Não deixe um animal abandonado ou em risco sozinho. Você pode ser a sua única e última esperança.
Resgate animal: contactos
Se está perante um animal abandonado ou em risco, envie uma mensagem eletrónica com a descrição do caso, a morada onde se encontra e fotografias/vídeos para os seguintes endereços eletrónicos (todos ao mesmo tempo):
Vereador da Câmara Municipal — Pelouro da Veterinária (endereço eletrónico disponível no sítio web da Câmara Municipal)
Veterinário municipal (endereço eletrónico disponível no sítio web da Câmara Municipal)
Centro de Recolha Oficial (CRO) do município onde se encontra (endereço eletrónico disponível no sítio web da Câmara Municipal)
Junta de Freguesia (endereço eletrónico disponível no sítio web da Câmara Municipal)
Após enviar mensagem de correio eletrónico, telefone para todas as entidades supramencionadas, informe da situação e peça para agirem imediatamente.
Contactos telefónicos:
PSP — Defesa Animal — 217 654 242
GNR — SEPNA — 808 200 520
O animal que encontrou está em agonia e precisa de assistência médico-veterinária urgente? Leve-o até a uma clínica ou hospital veterinário. Embora os encargos financeiros passem a ser da sua responsabilidade, hoje existe uma rede de apoio muito grande na recolha de fundos.
O que fazer se vir um animal a sofrer de violência?
Neste caso, o importante é assegurar que o animal fica protegido (sem que isso coloque a sua própria segurança em causa). Tire fotografias ou filme para haver prova da violência quando fizer a denúncia.
Se o animal estiver em perigo imediato, transporte-o para um local seguro (clínica veterinária ou uma associação de proteção a animais).
Denuncie sempre que saiba de uma situação de maus-tratos, abandono, negligência ou risco do animal.
Faça a denúncia numa das entidades abaixo:
GNR — SEPNA (Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente). Poderá fazer a denúncia online, num posto da GNR, ou através do telefone 808 200 520 (Linha SOS Ambiente e Território, disponível 24 h/dia).
PSP (Programa de Defesa Animal). Pode fazer a denúncia numa esquadra da PSP, através da linha 21 Polícia — 217 654 242 — ou via correio eletrónico para defesanimal@psp.pt.
Se tiver dúvidas sobre como proceder, contacte uma associação zoófila, pois vão ajudá-lo a recolher informações e a encaminhar a denúncia.
Como é que a sociedade portuguesa vê a corrupção? A Fundação lança um novo barómetro para compreender o fenómeno, considerado um dos problemas mais graves que o país enfrenta. A maioria dos inquiridos acredita que a política corrompe, considerando a integridade dos candidatos fundamental na hora de ir às urnas. Entre nesta experiência interativa e conheça os resultados do inquérito. infografia está disponível no final da página.
"Os governantes estão fartos de ser avisados". Portugal tem um Sistema de Alerta Precoce de Sismos "construído" mas está "em fase de testes" desde 2021
Não se trata apenas de enviar SMS de alerta como a Proteção Civil já faz quando há risco de incêndios ou de cheias. Sem registo de vítimas nem danos, o sismo da madrugada de segunda-feira, o mais forte a atingir o território continental desde 1969, deixou a descoberto o que ainda está por fazer para o país estar mais bem preparado para um sismo potente, incluindo melhorar as infraestruturas e efetivar o chamado Sistema de Alerta Precoce de Sismos - que começou a ser instalado em 2021 ao largo de Sagres, mas cuja implementação ainda não está concluída
Existem mecanismos para emitir alertas preventivos de sismo, mas Portugal ainda não tem implementados os instrumentos necessários para tal. O sismo de 5,3 de magnitude na escala de Richter que abalou Portugal continental na madrugada desta segunda-feira veio relançar o debate sobre o que falta cumprir para o país estar mais bem preparado para um sismo de grandes dimensões – incluindo a implementação de um Sistema de Alerta Precoce de Sismos (EEWS, na sigla inglesa), que começou a ser instalado há alguns anos no barlavento algarvio, mas que continua por concretizar por “falta de investimento”, indica à CNN Portugal um especialista em risco sísmico.
“Um alerta preventivo seria uma possibilidade se houvesse em Portugal instrumentos para isso, instrumentos que Portugal não tem, aquilo a que chamamos Sistemas de Alerta Precoce, ou Earthquake Early Warning Systems”, diz Francisco Mota de Sá, investigador de risco sísmico do Instituto Superior Técnico (IST). “Já temos esse tipo de avisos para tsunamis, mas não para sismos. Nós quisemos instalar um desses sistemas para sismos, mas as coisas não andaram para a frente porque não havia financiamento.”
Países com elevada atividade sísmica, como o Japão, têm já em vigor os seus próprios Sistemas de Alerta Precoce de Sismos, que conseguem emitir um alerta de risco de tremor de terra entre cinco a 10 segundos antes do abalo. “O Japão tem isso tudo e mais alguma coisa, mal deteta que vai ocorrer um episódio envia imediatamente avisos para os telemóveis, para os media e por aí fora”, explica o engenheiro. “O México também tem, consegue enviar alertas com entre cinco e 10 segundos de antecedência, e os Estados Unidos também têm o seu sistema. Por cá, os governantes estão fartos de ser avisados, muitos dos meus colegas desta área, de várias universidades, já fizeram vários avisos a vários governos e ainda nada aconteceu, ninguém parece interessado…”
Em fase de testes desde 2021
Em março de 2021, a Universidade de Évora anunciava a instalação dos primeiros quatro sismómetros do país a entre 20 e 30 metros de profundidade ao largo de Sagres, no Algarve, para detetar potenciais abalos gravosos, incluindo sismos gerados “na região atlântica adjacente ao território português”, naquela que seria a primeira fase de implementação de um EEWS no país.
Na altura, a instituição sublinhou em comunicado que a ideia era “capacitar a rede nacional de monitorização sísmica” através da instalação desse sistema de alerta precoce, que viria reforçar os sismómetros já existentes à superfície, um passo que definiu como “fundamental não só para Portugal, mas também para a Europa”. Mas mais de três anos depois, o projeto continua em fase de testes.
“Creio que o Sistema de Alerta Precoce está seguramente em fase de testes, entretanto saí do instituto e perdi o contacto com o projeto, mas sei que está construído, está desenvolvido, e quando se considerar que é fiável será colocado em funcionamento”, garante à CNN Portugal Miguel Miranda, ex-diretor do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). “Num sismo como este, a cerca de 60 quilómetros da costa de Sines, provavelmente não ganhávamos grande coisa com esse sistema, porque um sismo de 5,3 tem um tempo de desenvolvimento curto”, adianta o sismólogo. “Mas num com magnitude de 8 ou mais, que é aquilo que nos aterroriza, já podemos perder logo um quarto de hora na rutura, porque as ondas sísmicas são instantâneas, e com esse Sistema de Alerta Precoce ganhamos uns bons minutos entre sabermos que é um sismo importante e esse mesmo sismo atingir zonas mais críticas.”
Ter um EEWS em vigor permitiria, entre outras coisas, emitir alertas de risco sísmico, à semelhança do que a Proteção Civil já faz quando há risco de incêndios ou de cheias, através do envio automático de mensagens SMS à população. “Pelas nossas contas, conseguiríamos enviar um aviso entre cinco a 10 segundos antes [do sismo]”, explica Francisco Mota de Sá. “Cinco segundos parece pouco tempo mas dá para muita coisa, sobretudo no que toca a sistemas automatizados, por exemplo, dá para interromper processos que envolvem máquinas variadas e que estão a acontecer” quando é emitido o alerta.
Para Miguel Miranda, o sismo desta madrugada provou que os sistemas de observação sísmica “estão a funcionar muito bem”, mas acima de tudo deve servir para “impulsionar uma melhoria dos sistemas”, nomeadamente concretizar a implementação do primeiro EEWS em Portugal, e adaptar as infraestruturas para que esse sistema seja eficaz. “O sistema de alerta precoce ainda precisa de uma outra coisa, que é infraestruturas preparadas para, por exemplo, de uma forma automática, ligarem geradores de emergência, cortarem pipelines de gás natural, diminuírem a velocidade dos comboios de alta velocidade – infelizmente ainda não os temos, mas quando tivermos, esse sistema será absolutamente essencial.”
"Um sismo no mesmo sítio com magnitude superior a 6 seria diferente"
O sismo desta madrugada, o mais forte a atingir o território continental em mais de meio século, foi localizado com rapidez, mas é incerta a profundidade do seu epicentro. O Serviço Geológico dos EUA fala em 10,7 quilómetros de profundidade, o Centro Sismológico Euro-Mediterrânico refere uma profundidade de cinco quilómetros, a rede nacional sísmica aponta para 19 quilómetros de profundidade. Como refere Francisco Mota de Sá, “normalmente é o IPMA que tem equipamentos para calcular esses dados, mas seria preciso ter uma rede sísmica mais bem montada para conseguir localizar o epicentro de forma mais rápida”.
“Falta precisão e, para isso, precisamos de estações no fundo do mar, e isso não temos, porque é muito caro”, acrescenta Mourad Bezzeghoud, professor catedrático da Universidade de Évora que esteve envolvido no projeto de instalação das quatro estações sísmicas em furos ao largo de Sagres. “Essas quatro estações foram instaladas no âmbito de um projeto europeu, graças aos fundos europeus conseguimos comprar as estações, mas não há investimento a longo prazo do próprio Estado, só a curto prazo, o prioritário é o dia a dia, mas não se olha para o futuro.”
Confirmando que o EEWS português está ainda em fase de testes, Bezzeghoud destaca que “os alertas precoces são obviamente importantes em qualquer evento catastrófico, mas o mais importante é a prevenção, é ter a população preparada e os edifícios preparados” e aí Portugal continua atrasado. Zonas com elevada atividade sísmica, como o Japão e a Califórnia, lidam com sismos como o desta madrugada e com magnitudes superiores “com poucos danos porque tudo está preparado, e o problema aqui em Portugal, e na Europa de forma geral, é esta falta de preparação”, refere o geofísico.
“O mais problemático nem são os SMS, porque acho que a população hoje em dia já está mais preparada do que há 10, 20 ou 30 anos, com as alterações climáticas acho que toda a gente já está sensibilizada para estes fenómenos. Agora, ouvimos o Governo a dizer que está tudo bem, mas não está tudo bem, desta vez tivemos um sismo de 5,3 a 19 quilómetros de profundidade, por isso não aconteceu nada, mas um sismo no mesmo sítio com magnitude superior a 6 seria diferente, há uma ordem de grandeza diferente.”
“Atualmente”, refere Francisco Mota de Sá, “a Proteção Civil não tem meios para enviar alertas prévios à população, só consegue depois de o sismo já ter ocorrido” – o que também não foi o caso esta madrugada. Sentido às 05:11 da manhã, com epicentro a 58 quilómetros a oeste de Sines, a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) só emitiu um primeiro comunicado pelas 05:40, tendo “privilegiado o Facebook” para passar informações à população.
“O sismo foi sentido às 05:11 e às 05:40 foi quando tivemos a confirmação dos diferentes comandos regionais e subregionais de que, de facto, não houve danos pessoais nem materiais”, indicou o porta-voz da ANEPC, André Fernandes, numa conferência de imprensa durante a manhã. No rescaldo imediato do sismo, foi detetado um “pico de chamadas” para os serviços de Proteção Civil, período durante o qual o site do IPMA esteve em baixo, levando o grupo Iniciativa Cidadãos pela Cibersegurança a alertar para as “fragilidades” da morada online do único organismo capacitado para detetar e recolher dados precisos sobre sismos em território português. “Numa ocorrência deste tipo seria de esperar que o site do IPMA fosse a principal, mais fiável e segura fonte de informação, [mas] infelizmente não foi”, referiu o grupo, notando que o site esteve em baixo “entre as 05:11 e, pelo menos, as 05:40/05:55”.
Ao longo desse período de mais de meia hora, apenas os utilizadores Android receberam alertas para o abalo que acordou inúmeras pessoas em sobressalto, sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo. O Google também disponibilizou de imediato informações sobre o sismo e recomendações à população para quem recorreu ao motor de busca no rescaldo do tremor de terra.
Os responsáveis da ANEPC dizem que foi dada primazia ao Facebook para a divulgação das primeiras informações sobre o sismo porque os dados mostram que “as pessoas acorrem mais a essa rede social” nestes eventos. Também adiantaram que a comunicação imediata com a população só está prevista quando estão em causa sismos com uma magnitude mínima de 6,1 na escala de Richter, por acarretarem maior risco de tsunamis – mas “a questão não se limita à magnitude”, destaca Francisco Mota de Sá.
“Não é só a magnitude que, por si só, torna útil o envio de um alerta, é a magnitude e a localização, a que distância está o epicentro. Este sismo de 5,3, se tivesse sido em terra ou muito próximo de alguma povoação, poderia ter causado danos muito graves – 5,3 de magnitude debaixo dos pés já causa muitas chatices.”
"Surpreendidos por um sismo moderado"
Os especialistas são unânimes a considerar que é preciso concretizar um sistema de alerta precoce também para sismos, nas palavras de Mourad Bezzeghoud “para que as autoridades, as forças de emergência e de segurança, possam rapidamente preparar o país para esse impacto e minimizar a destruição e as consequências” do abalo – incluindo emitir um aviso imediato à população que permita reduzir o número de feridos, de vítimas mortais e de danos à propriedade.
“Seria bom melhorar o sistema de alerta via SMS que, aliás, já existe, mas é sabido que não podemos impedir a ocorrência de um sismo”, observa o especialista da Universidade de Évora. “O que podemos fazer é tomar as devidas precauções para minimizar as suas consequências, quer no plano económico, quer no plano humano. A redução do número de vítimas durante um sismo passa por adaptar as estruturas dos edifícios e de outros tipos de obras” – e aqui ainda há trabalho a fazer. “O Estado faz auditorias, há planos de construção, mas não me parece que haja cuidado com isto. Há, aliás, poucos países com este cuidado, só aqueles com grande sismicidade. Acompanho a sismicidade nesta zona, o IPMA faz um acompanhamento automático também, e sabemos que esta é uma zona com sismicidade fraca a moderada, o que não significa que não vamos ter sismos mais fortes no futuro. Este sismo veio confirmar a suspeita de que há falhas geológicas também nesta zona, e acabámos por ser surpreendidos por um sismo moderado quando antes havia sismos de mais fraca magnitude nesta zona.”
Numa visita à sede nacional da Proteção Civil esta manhã, Paulo Rangel, o ministro de Estado e da Presidência que está a acumular funções como primeiro-ministro durante as férias de Luís Montenegro, disse que o sismo sentido esta madrugada foi “um teste real às nossas capacidades de resposta no caso de uma catástrofe grave” e sublinhou que esteve em contacto “estreitíssimo” com a Proteção Civil desde o primeiro momento.
“Sobre aquilo que são os planos que estão já testados e vistos há muito tempo, que têm de ser constantemente atualizados e renovados, houve aqui alguma projeção para o futuro no sentido de preparar as estruturas portuguesas, a proteção civil nacional e regional, e a população em geral para termos capacidade de resposta”, disse Rangel. Questionado sobre o eventual resultado desse teste, o ministro fez uma “avaliação muito positiva quanto à capacidade de resposta, à prontidão da resposta, à forma como a informação circulou”.
Em declarações aos jornalistas, o Presidente da República teceu os mesmos elogios à “capacidade de resposta muito rápida” das autoridades e à “muito boa coordenação entre o Governo e a Proteção Civil”, adiantando que o Palácio de Belém foi informado do sucedido minutos depois de o abalo se ter feito sentir. “Funcionou aquilo que devia ter funcionado”, assegurou Marcelo Rebelo de Sousa.
Ecoando a mesma ideia de Miguel Miranda, o engenheiro Francisco Mota de Sá admite que, na zona onde foi registado este sismo, “no vale inferior do Tejo, um Sistema de Alerta Precoce, mesmo que avançado, não conseguiria avisar com antecedência, porque as ondas sísmicas chegam sempre mais depressa do que os alertas”. Contudo, destaca que a instalação desse sistema em Sagres “faria todo o sentido” – “devia haver pelo menos um sistema no sul de Portugal, no sudoeste algarvio, no cabo de Sagres, que tem uma localização ótima para instalar um sistema destes”, refere o especialista.
A CNN questionou a ANEPC e o IPMA sobre em que fase se encontra o Sistema de Alerta Precoce de Sismos no território continental e como respondeu durante este sismo, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo. Também não recebeu resposta do Governo sobre se vão ser dados passos para melhorar os sistemas de comunicação de risco sísmico após o abalo desta madrugada.
Mulheres, em casa, a reproduzir filhos e preconceitos
Bárbara Wong
Passaram quase 30 anos. Estávamos sentadas no bar da faculdade, a um semestre de terminar o curso, cheias de dúvidas sobre o que iríamos fazer a seguir, se iríamos trabalhar, onde, a fazer o quê. Ela, com uma écharpe e umas argolas pejadas de pérolas disse, segura, com a sua voz anasalada: "Eu vou casar, bem, e ficar em casa a educar os meus filhos." Houve quem se risse, quem gozasse. Eu fiquei atónita porque percebi que aquele era mesmo o plano: casar, "bem", ficar em casa e ter filhos.
Anos depois, encontrei-a na praia, num fato de banho preto com bolas brancas, escondido por detrás de um páreo branco, não trazia pérolas nas orelhas, mas ao pescoço, e tentava controlar uma ninhada, toda vestida aos quadradinhos, eles de azul-bebé, elas de rosa clarinho e folhos. Atrapalhadíssima e nuns decibéis acima das ondas que batiam na areia, chamava, com a sua voz anasalada, petit nom atrás de petit nom, tratando-os por "você"— já se sabe, como contam Ana e Isabel Stilwell, há sempre guerras entre irmãos. Com os olhos varri a praia, à procura do pai (que não conhecia), percebi mais tarde que estava sentado debaixo do toldo da família.
Reconhecemo-nos, mas não falámos. Eu só tinha uma pergunta em mente, "sempre cumpriste o teu plano?", e achei por bem não a fazer. Sorrimos e acenámos. Mas tinha de colocar a questão a alguém. Liguei a uma amiga comum, que me respondeu que o marido da colega das pérolas era um advogado de sucesso, que eram uma família ultraconservadora (a indumentária de mãe e filhos já o tinha denunciado) e que, quando ela tinha um jantar de amigas, ele ligava e mandava mensagens a pedir-lhe para voltar para casa, que ele e os filhos estavam "cheios de saudades".
Vivemos um momento em que, aparentemente, os homens se sentem inseguros e têm medo das mulheres, têm medo da sua inteligência (elas estudam mais que eles, é certo), da sua independência e, Liliana Carona acrescenta, da sua beleza. Na sua crónica, a jornalista cita estudos norte-americanos que revelam que "os homens distanciam-se e mostram menos interesse pelas mulheres que os ultrapassavam, a nível de inteligência/capacidades". E assistimos a este movimento entre os jovens rapazes, muitos votantes na extrema-direita não democrática.
Lembrei-me da colega das pérolas quando, nesta semana, se deu a apresentação do livro Identidade e Família — é possível que ela lá estivesse —, e ouvimos tantas palavras vindas do passado, sobre famílias tradicionais e da função da mulher dona de casa. Lembrei-me dela ao ler o texto de Monica Hesse sobre mulheres que ficam em casa e o lazer feminino. A jornalista norte-americana destaca as mulheres que perceberam que a vida pode ser mais fácil se ficarem dependentes de alguém. Se casarem "bem", acreditam que não terão problemas. Há um movimento de influencers nas redes sociais que louvam os benefícios de ser dona de casa. O que Hesse não refere é que muitas destas mulheres são evangélicas ou apoiadas por movimentos evangélicos, os mesmos que apoiam Trump, os mesmos que, por cá, aparentemente estão por detrás do ADN, como escreveu Carmen Garcia há umas semanas.
Mas Hesse foca também a falta de tempo das mulheres trabalhadoras para o lazer (queixa que os homens também terão). No fundo, tudo isto é um pau de dois bicos. Por um lado, conquistámos o direito ao trabalho fora de casa; por outro, o de dentro de casa mantém-se. Por um lado, conquistámos o direito a uma carreira; por outro, somos mal remuneradas — é entre os jovens que o fosso salarial é mais grave. Por um lado, sonhamos com promoções; por outro, estamos exaustas quando chegamos a casa. Diz Monica Hesse: "As mulheres que foram educadas sobre as virtudes da independência feminina foram enganadas. Sim, podemos ter carreiras de sucesso. Mas ninguém diminuiu a quantidade de roupa suja ou de tarefas que ainda precisam de ser feitas. Ninguém acrescentou mais horas ao relógio."
Fomos enganadas porque ainda há homens que "ajudam" lá em casa e não percebem que têm de dividir tarefas. Monica Hesse dá exemplos de mulheres que optaram pela casa até sonharem com um trabalho. "E ela é feliz?", perguntei à minha amiga sobre a colega das pérolas. Fez-se um silêncio: "Eu acredito que o feminismo também é isto, o teres liberdade para viveres a vida que planeaste." Sem dúvida, eu concordo que tens liberdade para viveres o teu sonho, mas não tens de o impor aos outros, não tens de pôr em causa todos os direitos conquistados e quereres que todas tenhamos de ficar em casa, a reproduzir filhos e preconceitos. Além disso, não foi isso que perguntei. "Não a vejo a ter momentos de dúvida. Eles são ultraconservadores", responde a nossa amiga comum.
Assustam-me sempre as pessoas que não têm dúvidas (ou raramente as têm), como é o caso do "cara valente" sobre o qual Ana Lázaro escreve, em mais um dos seus contos. É um homem capaz de tudo, menos de viver emoções — porque os homens não são educados para falarem sobre as suas emoções. "Faltava-lhe o atrevimento, a coragem para o amor. Porque para o amor é preciso bravura. É preciso audácia para mergulhar no desconhecido de uma escuridão profunda que se esconde para dentro de nós." Foi mais uma relação que não resultou na vida da nossa narradora.
16
de junho de 2023 - Memorial aberto sem inauguração. Seis anos depois, Pedrógão
Grande sente-se esquecido
Para espanto e mágoa dos que ainda choram a tragédia do fogo de 2017, a
abertura do memorial às vítimas aconteceu sem a presença dos mais altos
representantes da nação
Memorial aberto sem
inauguração. Seis anos depois, Pedrógão Grande sente-se esquecido
Silêncio, lágrimas e suspiros. A primeira reacção de quem perdeu familiares ou
amigos no fogo de 2017, assim que dá de caras com o muro no qual foram gravados
os nomes das vítimas, oscila entre a saudade e o respeito. “Ainda mexe muito,
está tudo muito presente”, confessava Maria Graciete, depois de reconhecer
vários nomes de amigos e vizinhos, de Castanheira de Pêra, cravados naquele
bloco de pedra cinzenta. Não que eles estivessem esquecidos. Pelo contrário.
“Não temos outra estrada para passar e não há dia em que não me lembre deles”,
reforçava, com os olhos postos no grande lago artificial que, juntamente com o
mural, constitui o memorial de homenagem às vítimas dos incêndios de 2017.
Na sessão de 4 de agosto de 1821 das Cortes Constituintes, as
touradas estiveram em debate.
Borges Carneiro apresentou um projeto de lei para a proibição
dos espetáculos tauromáquicos, entendidos como contrários “às luzes do século,
e à natureza humana”. Em causa, estava um entretenimento baseado no sofrimento
dos animais, criados para servir o homem, mas não para serem martirizados.
“Os homens não devem combater com os brutos, e é horroroso
estar martirizando o animal, cravando-lhe farpas, fazendo-lhe mil feridas, e
queimando-lhe estas com fogo: tão bárbaro espetáculo não é digno de nós, nem da
nossa civilização.”
Também o Deputado Teixeira Girão classifica as touradas como
um” bárbaro divertimento”, uma “tolice em expor a vida sem fim útil, sem
necessidade, uma “traição em inutilizar aos touros as armas que lhes deu a
natureza” e uma “crueldade e cobardia em atormentá-los depois”.
Em sentido contrário, vários Deputados argumentam com a
tradição e popularidade do espetáculo, mas também pela existência de outros
costumes que agridem os animais, como a caça ou, noutros países as “carreiras
de cavalos e o combate dos galos”. Referindo-se ao projeto de lei de Borges
Carneiro, Lemos Bettencourt afirma:
“Admira-me, como levado de tão filosóficas tenções, não
incluiu no mesmo projeto a proibição da caça, pois sendo todos os animais e
aves entes sensitivos, não deviam ser objeto de divertimento do homem; e não
devia o caçador matar a ave inocente”.
Outros Deputados entendem que a sociedade portuguesa não está
ainda preparada para a decisão de extinguir as corridas de touros. Assim pensa
Serpa Machado, que defende ainda a diminuição da barbaridade do espetáculo e a
abolição dos “touros de morte”:
“Eu não seria de opinião que desde já fossem proibidas as
festas de touros, porque ainda não é tempo; é necessário ir preparando os
costumes. Entretanto apoio que o projeto vá à discussão, não para se abolir
esse espetáculo, senão para diminuir a sua barbaridade. Vamos por ora
preparando os costumes, que lá virá tempo em que ele caia por si mesmo.”
Manuel Fernandes Tomás, confessando ser “amigo deste
divertimento” e espetador semanal de touradas, refere que não se pode, de
repente, transformar o país numa “Nação de filósofos”, sendo necessário
preparar a sociedade:
“Para extinguir-se aqui este espetáculo, é preciso que os
costumes se vão preparando, querer de repente reduzir uma Nação a Nação de
filósofos não me parece correto, nem sensato; este costume há de acabar entre
nós, quando se extinguir na Espanha. Eu o declaro francamente, sou amigo deste
divertimento; não é por ser valoroso, nem deixar de o ser, nem querer que os
outros o sejam, senão porque fui criado com isso. Na teoria sou dos mesmos
sentimentos filantrópicos; mas na prática não posso. Confesso a minha fraqueza:
vou ver os touros todos os domingos. Eu não pugnarei porque os haja; mas tão
pouco me oporei diretamente a que deixe de havê-los."
O projeto de lei de Borges Carneiro para a extinção das
touradas seria rejeitado.
Imaginem que ardia tudo desde o Parque da Nações até Cascais!!!
O combate aos incêndios passa pela prevenção, com muitas mais campanhas DURANTE TODO O ANO, nas escolas, junto das populações, mass media mas, sobretudo, por mais e melhores equipamentos e melhores salários dos bombeiros.
Se o recente contratado Sérgio Figueiredo vai ganhar mais do que o Medina, quanto deveria ganhar um bombeiro? Um professor? Um médico? Um enfermeiro? Um polícia?
Uma tristeza e uma revolta, estas decisões "vindas de cima"! Esta inversão de prioridades, esta falta de visão e sensatez política e social.
A extrema direita aproveitar-se-á de tudo isto para engrossar cada vez mais as suas hostes, para infortúnio da nossa democracia.
A quem pedir responsabilidades pelos próximos números da abstenção, pelos desafetos políticos, pela quebra de confiança no sistema pluripartidário?
Continuarei a lutar pela Democracia e pelo Estado de Direito. Sempre.
Enfrentando a crise climática numa jornada de autodescoberta
É em tempos de crise que descobrimos o que realmente importa para nós, quem realmente somos, como indivíduos e como sociedade. The Troublemaker investiga profundamente as ideias e emoções por detrás da onda internacional de protesto civil, nascida em virtude da crise climática que se vivemos. Através dos olhos de um líder visionário que co-fundou a ?Extinction Rebellion? e de um cidadão respeitador da lei inspirado a agir, The Troublemaker aspira a despertar o público da resistência passiva para uma defesa de afirmação da vida do nosso futuro. Agora que entendemos mais sobre como é uma "crise global", ela não pode mais ser ignorada.
A emergência do Direito Natural e consequentemente a consciência dos Direitos do Homem no panorama filosófico e político na segunda metade do século XVIII fizeram surgir nas elites políticas e intelectuais europeias uma sensibilidade, lenta mas progressiva, relativamente a questões consideradas como dogmas ao longo dos séculos, como por exemplo, a questão da limitação e separação de poderes, as liberdades fundamentais, a abolição da escravatura, a abolição da pena de morte, a emancipação das mulheres, a repartição justa da riqueza, a legitimidade da propriedade, etc... No mesmo contexto filosófico-político alguns filantropos problematizaram e questionaram a relação de domínio do Homem em relação aos animais. No espírito de muitas individualidades o recurso à violência para com os animais, fundamentado na suposta superioridade do Homem perante a Natureza era tida como imoral, quer à luz do Cristianismo, quer à luz da Razão. Os maus tratos aplicados aos animais eram considerados cada vez mais como resquícios da barbárie e da incivilização dos antigos tempos do obscurantismo. O Homem entrara numa nova nova idade da História, a idade da Razão e do progresso moral e essa evolução tinha necessariamente de se refletir na relação homem - homem e homem - animal.
Não tardaram a surgir propostas para que o poder político adotasse medidas de proteção aos animais. Os primeiros esforços legislativos contemporâneos para proteção animal contra os maus tratos dos humanos surgem no Reino Unido no início do século XIX. Em 1800, Sir William Pulteney tenta introduzir no código jurídico inglês uma lei que proíbe o bull-baiting, projeto-lei recusado pelo Secretário da Guerra William Windham (1750 - 1810) com o argumento de que tal lei era contra o entretenimento das classes populares da sociedade inglesa. No ano seguinte, William Windham rejeita uma outra proposta legislativa de proteção animal, da autoria de William Wilberforce (1759 - 1833) fundamentando que tal lei tinha sido idealizada pelos metodistas e jacobinos com a intenção de destruir o “antigo caráter inglês pela abolição dos desportos rurais”. Mais uma tentativa surge em 1809 pelo Lord Chancellor Thomas Erskine (1750 - 1823), ao propor uma lei de prevenção da crueldade sobre os animais, aprovada na Câmara dos Lordes mas rejeitada na Câmara dos Comuns. Uma vez mais William Windham insurge-se contra tais propostas legislativas, alegando desta vez que eram incompatíveis com os tão populares divertimentos da caça à raposa e a corrida de cavalos.
Após estas tentativas frustradas finalmente surge a primeira lei de proteção animal. É a lei Act to prevent the cruel and improper treatment of cattle (Lei de prevenção ao tratamento cruel e imprópio do gado) mais conhecida pelo nome do seu autor, "Martin's Act". Esta lei, da autoria do deputado Richard Martin (1754 - 1834) foi aprovada pelo parlamento britânico em 1822. A designação “gado” no título da lei apenas incluía boi, vaca, ovelha, mula, e burro, deixando de fora outras espécies como o touro e o cão que foram englobadas na lei em atualizações posteriores (leis de 1835, 1849 e 1876).
O primeiro julgamento ao abrigo do Martin’s Act foi o de Bill Burns, vendedor de fruta ambulante, que agrediu o seu burro de carga. O caso na altura ficou famoso em Inglaterra devido ao facto de o próprio Richard Martin ter acusado Bill Burns e durante julgamento ter levado o burro à sala do tribunal como prova das agressões para espanto dos juízes e público assistente.
"The trial of Bill Burns" (o julgamento de Bill Burns). O deputado do parlamento britânico, Richard Martin, leva o burro do acusado Bill Burns a uma das sessões do julgamento para demonstrar ao juiz os maus tratos infligidos pelo dono, episódio que causou grande sensação na época, nomeadamente nos jornais. Esta pintura (óleo sobre tela) está atualmente da seda da Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Trial_of_Bill_Burns.jpg
Richard Martin, Willian Wilberforce e outros estiveram envolvidos na fundação da Society for the Prevention of Cruelty to Animals em 1824, a primeira instituição do mundo dedicada à proteção animal. Esta instituição conseguiu fazer com que o Martin's Act de 1822 fosse alargado no seu âmbito pela Cruelty to Animals Act (lei da crueldade sobre os animais) de 1835, que abrangia cães e outros animais domésticos, abolia o bear-baiting e a luta de galos, assim como imponha melhores condições para os animais nos matadouros. A legislação de proteção animal inglesa foi sendo sucessivamente consolidada e ampliada ao longo do século XIX pelas leis de 1849 (Cruelty to Animals Act 1849 ), e de 1876 ( Cruelty to Animals Act 1876 ) de modo a abranger gradualmente mais espécies animais e modalidades de tratamento cruel ( consultar o site Animal Rights History para ter uma noção da produção legislativa inglesa sobre a proteção animal). O Reino Unido surge assim como o "berço" do movimento da causa animal e da legislação de proteção animal na contemporaneidade, sendo em breve trecho imitado por outros países europeus e americanos.
E em Portugal?
Em Portugal pouco se conhece sobre o estado de consciencialização para o bem estar animal na primeira metade de oitocentos. Percebe-se no entanto que a problemática da proteção animal está intimamente relacionada com as corridas de touros ou touradas. Existem referências para este período indicadoras de que as corridas de touros seriam mal vistas por certas pessoas. Sabe-se que um dos governadores do reino na ausência da corte no Brasil, o Principal Sousa (17-- 1817) se esforçou por proibir as touradas entre 1810 e 1817. Nas cortes constituintes (1821-1822) o deputado Borges Carneiro (1774 - 1833) apresentou à câmara constituinte um moção para a abolição das corridas de touros. No debate parlamentar perguntava ele aos seus colegas deputados: « Ora qual foi o fim da natureza criando estes animaes [os touros]? foi para que o homem se podesse servir delles, e quando muito que sei servissem para seu sustento; mas não foi de certo para que os martyrizasse, os enchesse de flexas, e se divertisse com elles, destruindo-os pouco a pouco por meio do fogo e do ferro. Taes não forão os fins para que a Divindade pôz os outros animaes debaixo do poder do homem.» Apesar da sua retórica e eloquência a moção foi rejeitada.
O deputado Borges Carneiro (1774 - 1833) eleito às cortes constituintes de 1821 -1822. No dia 04 de agosto de 1821 foi discutida nas cortes constituintes a sua moção para a abolição das touradas em Portugal. A moção foi rejeitada sob os mais variados argumentos. Fonte: http://www.arqnet.pt/dicionario/borgescarneirom.html
Com o advento do Setembrismo, o ministro do Reino Passos Manuel (1801 -1862) governando em ditadura, aboliu a 19 de setembro de 1836 as corridas de touros. Porém esta lei foi revogada no ano seguinte com Carta de Lei de 30 de junho de 1837. Com a Carta de Lei de 21 de agosto de 1837 as receitas das corridas de touros realizadas em Lisboa revertiam para a Casa Pia e as receitas das touradas realizadas nos restantes municípios do território português ficavam afetas às Misericórdias ou a outras instituições pias, associando assim as touradas à caridade, o que deu mais um argumento a favor dos defensores da tauromaquia.
in http://blog-de-historia.blogspot.com/2012/02/o-aparecimento-da-legislacao-de.html
(acesso dia 14.11.2020)
Manifestantes derrubam a estátua do traficante de escravos Edward Colston no porto de Bristol, durante manifestação Black Lives Matter, em Bristol, na Inglaterra - Foto: Ben Birchall/PA via AP -
Monstros de pedra
Um artigo de João Camargo in EXPRESSO de 26.06.2020
Uma das expressões mais claras da revolta contra o racismo que começou nos Estados Unidos e se expandiu por todo o mundo ocidental, foi a remoção e ataque a estátuas que representam directamente ou indirectamente a história colonial, esclavagista e racista sobre a qual se construiu muito do Ocidente. Sectores mais conservadores, tradicionais e a extrema-direita criaram uma onda de indignação. Para estes sectores, a destruição de estátuas e símbolos desse passado configura-se como uma crime indesculpável, pois ataca as identidades criadas com base em feitos históricos (reais, mistificados ou inventados) afirmados no espaço público como imortais através desses símbolos.
Sem entrar em profundidade na questão específica das estátuas e monumentos, que foi discutida durante as últimas semanas, enquadro-a na promessa do “regresso ao passado”, tão utilizada nas últimas décadas pelos sectores conservadores e pela extrema-direita como ferramenta de recrutamento e mobilização. Esta promessa tenderá a ter um papel crescente na política nacional e internacional. A promessa que fazem é de um regresso a um passado seguro, idealizado e místico. Quando Donald Trump promete “fazer a América grande de novo”, quando Jair Bolsonaro defende a ditadura militar de 1964, quando Marine Le Pen defende “Voltar a pôr França na ordem” ou, de forma mais simples, Viktor Órban diz STOP com uma mão levantada, devemos perceber do que estão a falar: parar e voltar para trás. Mas este regresso ao passado requer que esqueçamos o que foi o passado ou que mantenhamos uma visão “higiénica” do que foi o passado. Por isso mesmo é-lhes tão ofensiva a ideia de olhar para o passado com uma visão crítica ou, ainda mais, que sejam tiradas das praças e dos espaços públicos algumas das estátuas que perpetuam essa visão higiénica.
A estratégia da promessa do regresso ao passado tem o seu maior potencial quando existem crises sistémicas e repetidas, que agravam as tensões sociais e colocam os campos políticos em oposição cada vez mais directa. Não é por isso de estranhar a sua ascensão agora. Mas esta estratégia é principalmente uma expressão do poder das elites para conservar o seu status. Por isso mesmo percebe-se a oposição a qualquer revisão histórica e ainda mais à reparação histórica aos povos que foram sistematicamente oprimidos. Há uma tentativa de cobrir a estratégia com uma capa popular, apostando em pequenos conflitos sociais e criminais de expressão muitas vezes insignificante na sociedade, enquanto se ignoram os grandes temas que afectam o conjunto da civilização humana. Este é o teste do algodão para explicar a natureza da promessa: o regresso ao passado é apenas o regresso ao passado dos poderosos, não o regresso ao passado do povo e das pessoas normais. É um isco para as pessoas normais.
A confusão que estas forças políticas pretendem manter institucionalizada é a de que a história das elites é igual à história dos povos, que a história dos colonos é a história dos colonizados, que a história dos homens é a história das mulheres. São histórias diferentes, divergentes e muitas vezes de sentido totalmente oposto: o sucesso da elites fez-se à custa da opressão dos povos, o sucesso do colonialismo fez-se à custa da destruição de povos e civilizações inteiras, a subjugação das mulheres aos homens implicou apagá-las da história. Construir uma ideia de futuro conjunta implica olhar para o mundo e para o passado com outros óculos, com muito mais informação. Implica também deixar de venerar monstros de pedra, que os há, e muitos, pelas ruas e praças de todo o mundo. Isso não significa apagar a história, pelo contrário. Significa deixar de defender acriticamente uma história de exclusões, omissões e obliteração, o que faz sentido especialmente quando, na enorme maioria, a população hoje viva é descendente de quem foi esmagado.
Quanto pior for a situação económica, quanto pior a degradação ambiental, quanto mais se forem potenciando fenómenos históricos como migrações de massas e escassez, com mais veemência será feita a promessa do regresso ao passado. A promessa será feita mais alto, a sua proposta política será feita com mais violência (oratória e física), será exigido com mais força o apagamento das vozes e da história que não batem certo com a história que é contada pelas estátuas. Essa estátuas imortalizam um passado cujas vitórias existiram para pouco mais do que uma minúscula minoria. Quanto mais estiver abalado o capitalismo global, mais promessas serão feitas para manter a sua estrutura de privilégio. Já vemos no últimos anos o reforço da aliança entre o conservadorismo e a extrema-direita para conservar esse privilégio. Perante o regresso da História, as elites do capitalismo prometem defender um passado que está esculpido na pedra.
É difícil defender que o colonialismo e a escravatura, com a sua expressão intelectualizada no racismo, não foram fenómenos monstruosos. Há quem o faça, há quem tente relativizar a destruição sistemática de povos inteiros, a depredação de territórios e destruição de modos de vida e culturas, enquadrando-as num espírito de época ou, ainda mais grave, numa “natureza humana”. Há até a defesa de que os povos colonizados e escravizados nem sequer tinham uma cultura, seriam folhas em branco à espera de uma impressão civilizadora e evangelizadora do ocidente. Na altura, a desumanização destas pessoas era institucionalizada na ideia de que não teriam alma, sendo apenas animais sem pensamento, e que portanto privá-las de qualquer réstia de dignidade humana seria aceitável. Tudo isto era afirmado para garantir que tudo o que podia ser extraído destas pessoas e destes territórios não seria crime, mas apenas um negócio como tantos outros. Legitimado pelos intelectuais da altura, pelo clero, pela nobreza, pela academia, pelos exploradores, esta desumanização precisava ser explicada ao povo que iria, na prática, fazer o trabalho sujo de manter os ricos ricos, fosse porque meios fosse. Muita dessa teorização manteve-se ao longo da história e o trabalho de desconstruí-la está por fazer. Para atrasar e travar esse trabalho há monstros de pedra erguidos e lançando longas sombras pelas ruas e praças de todo o mundo.
A promessa de um regresso ao passado como futuro é, literalmente, a promessa de um futuro de monstros. Muito mais do que aquelas estátuas que são derrubadas, que são contestadas ou grafitadas, o que o regresso ao passado promete é a criação de novas estátuas de monstros, de novos monstros e monstruosidades para responder a um tempo de enorme incerteza. A defesa dos poderosos, a falta de imaginação, de coragem e - também - um legítimo medo de um futuro cheio de incertezas, leva à promessa e à defesa de um regresso ao passado, de um regresso à monstruosidade do passado. A única coisa que o conservadorismo e a extrema-direita têm para oferecer hoje à Humanidade são monstruosidades.
O medo do futuro é compreensível. Vivemos no meio de uma pandemia, estamos na segunda grande recessão global desde o início do século, o sistema financeiro sorveu continuamente os rendimentos de Estados e populações inteiras, vivemos na 6ª extinção em massa de espécies na História do planeta, a crise climática ergue-se sobre toda esta realidade e, se não for travada, desmantelará os sistemas que foram montados para a existência de civilização. Nesta realidade, o regresso ao passado pode até ser um apelo que ecoa dentro da cabeça das pessoas, mas não passa de uma ratoeira, explorando o medo para institucionalizar monstruosidades. Um regresso ao passado não garantirá travar nenhum dos problemas existenciais em que vivemos. Pelo contrário, anexada a esse regresso ao passado está a garantia de ignorar todos estes problemas urgentes: a extrema-direita e a direita conservadora rejeitam ou menosprezam todas estas temáticas existenciais. Para manterem a sua ligação directa com os donos do capitalismo global, precisam ignorar a necessidade de acabar com este sistema, com estes monstros de pedra que bloqueiam qualquer caminho para o futuro. A obsessão pelo passado (especialmente um que não passa de um mito) é uma ratoeira que não nos serve enquanto espécie.