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domingo, 14 de abril de 2024

Mulheres, em casa, a reproduzir filhos e preconceitos

 



14 de abril de 2024 

Mulheres, em casa, a reproduzir filhos e preconceitos

Bárbara Wong

Passaram quase 30 anos. Estávamos sentadas no bar da faculdade, a um semestre de terminar o curso, cheias de dúvidas sobre o que iríamos fazer a seguir, se iríamos trabalhar, onde, a fazer o quê. Ela, com uma écharpe e umas argolas pejadas de pérolas disse, segura, com a sua voz anasalada: "Eu vou casar, bem, e ficar em casa a educar os meus filhos." Houve quem se risse, quem gozasse. Eu fiquei atónita porque percebi que aquele era mesmo o plano: casar, "bem", ficar em casa e ter filhos.

Anos depois, encontrei-a na praia, num fato de banho preto com bolas brancas, escondido por detrás de um páreo branco, não trazia pérolas nas orelhas, mas ao pescoço, e tentava controlar uma ninhada, toda vestida aos quadradinhos, eles de azul-bebé, elas de rosa clarinho e folhos. Atrapalhadíssima e nuns decibéis acima das ondas que batiam na areia, chamava, com a sua voz anasalada, petit nom atrás de petit nom, tratando-os por "você" — já se sabe, como contam Ana e Isabel Stilwell, há sempre guerras entre irmãos. Com os olhos varri a praia, à procura do pai (que não conhecia), percebi mais tarde que estava sentado debaixo do toldo da família.

Reconhecemo-nos, mas não falámos. Eu só tinha uma pergunta em mente, "sempre cumpriste o teu plano?", e achei por bem não a fazer. Sorrimos e acenámos. Mas tinha de colocar a questão a alguém. Liguei a uma amiga comum, que me respondeu que o marido da colega das pérolas era um advogado de sucesso, que eram uma família ultraconservadora (a indumentária de mãe e filhos já o tinha denunciado) e que, quando ela tinha um jantar de amigas, ele ligava e mandava mensagens a pedir-lhe para voltar para casa, que ele e os filhos estavam "cheios de saudades".

Vivemos um momento em que, aparentemente, os homens se sentem inseguros e têm medo das mulheres, têm medo da sua inteligência (elas estudam mais que eles, é certo), da sua independência e, Liliana Carona acrescenta, da sua beleza. Na sua crónica, a jornalista cita estudos norte-americanos que revelam que "os homens distanciam-se e mostram menos interesse pelas mulheres que os ultrapassavam, a nível de inteligência/capacidades". E assistimos a este movimento entre os jovens rapazes, muitos votantes na extrema-direita não democrática.

Lembrei-me da colega das pérolas quando, nesta semana, se deu a apresentação do livro Identidade e Família — é possível que ela lá estivesse —, e ouvimos tantas palavras vindas do passado, sobre famílias tradicionais e da função da mulher dona de casa. Lembrei-me dela ao ler o texto de Monica Hesse sobre mulheres que ficam em casa e o lazer feminino. A jornalista norte-americana destaca as mulheres que perceberam que a vida pode ser mais fácil se ficarem dependentes de alguém. Se casarem "bem", acreditam que não terão problemas. Há um movimento de influencers nas redes sociais que louvam os benefícios de ser dona de casa. O que Hesse não refere é que muitas destas mulheres são evangélicas ou apoiadas por movimentos evangélicos, os mesmos que apoiam Trump, os mesmos que, por cá, aparentemente estão por detrás do ADN, como escreveu Carmen Garcia há umas semanas.

Mas Hesse foca também a falta de tempo das mulheres trabalhadoras para o lazer (queixa que os homens também terão). No fundo, tudo isto é um pau de dois bicos. Por um lado, conquistámos o direito ao trabalho fora de casa; por outro, o de dentro de casa mantém-se. Por um lado, conquistámos o direito a uma carreira; por outro, somos mal remuneradas — é entre os jovens que o fosso salarial é mais grave. Por um lado, sonhamos com promoções; por outro, estamos exaustas quando chegamos a casa. Diz Monica Hesse: "As mulheres que foram educadas sobre as virtudes da independência feminina foram enganadas. Sim, podemos ter carreiras de sucesso. Mas ninguém diminuiu a quantidade de roupa suja ou de tarefas que ainda precisam de ser feitas. Ninguém acrescentou mais horas ao relógio.​"

Fomos enganadas porque ainda há homens que "ajudam" lá em casa e não percebem que têm de dividir tarefas. Monica Hesse dá exemplos de mulheres que optaram pela casa até sonharem com um trabalho. "E ela é feliz?", perguntei à minha amiga sobre a colega das pérolas. Fez-se um silêncio: "Eu acredito que o feminismo também é isto, o teres liberdade para viveres a vida que planeaste." Sem dúvida, eu concordo que tens liberdade para viveres o teu sonho, mas não tens de o impor aos outros, não tens de pôr em causa todos os direitos conquistados e quereres que todas tenhamos de ficar em casa, a reproduzir filhos e preconceitos. Além disso, não foi isso que perguntei. "Não a vejo a ter momentos de dúvida. Eles são ultraconservadores", responde a nossa amiga comum. 

Assustam-me sempre as pessoas que não têm dúvidas (ou raramente as têm), como é o caso do "cara valente" sobre o qual Ana Lázaro escreve, em mais um dos seus contos. É um homem capaz de tudo, menos de viver emoções — porque os homens não são educados para falarem sobre as suas emoções. "Faltava-lhe o atrevimento, a coragem para o amor. Porque para o amor é preciso bravura. É preciso audácia para mergulhar no desconhecido de uma escuridão profunda que se esconde para dentro de nós." Foi mais uma relação que não resultou na vida da nossa narradora.

Inês Meneses fala-nos da "prateleira da vergonha", aquela onde colocamos as relações que não foram felizes, mas como essas foram importantes para crescermos: "É preciso rir para que o amor possa ser sempre melhor e nos tornemos mais exigentes com ele. Connosco." O psicólogo Jason Wu explica como combater a vergonha pode ajudar a construir um sentido de identidade saudável. Por isso, cara colega das pérolas, se algum dia tiveres dúvidas, não tenhas vergonha e sabe que podes pedir uma indemnização pelo trabalho em casa não remunerado e recomeçar uma nova vida. 

Boa semana!

Bárbara Wong

bwong@publico.pt

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Rússia - A Revolução virá de dentro

 


A minha esperança é que uma revolução que venha de dentro da própria Rússia, traga a mudança efetiva de regime e devolva o poder ao povo. Verdadeiramente.

A contestação de rua, sobretudo de jovens, nas principais cidades, e apesar da dura repressão, são um sinal inequívoco de uma mudança anunciada.

Assim ela venha, rapidamente.


Nazaré Oliveira


Ver aqui:

https://exame.com/mundo/guerra-na-ucrania-mais-de-800-pessoas-sao-detidas-em-protesto-na-russia/

https://exame.com/mundo/guerra-na-ucrania-mais-de-800-pessoas-sao-detidas-em-protesto-na-russia/

https://pt.euronews.com/2022/02/25/protestos-na-russia-contra-a-guerra

https://www.publico.pt/2022/03/06/mundo/noticia/4300-detidos-russia-manifestacoes-guerra-1997793

https://www.tsf.pt/mundo/acordar-no-lado-errado-da-historia-portuguesa-conta-como-tem-sido-a-vida-em-moscovo-14663899.html

terça-feira, 27 de setembro de 2022

"Não há volta a dar-lhe": ou se é pela Rússia ou se é pela Ucrânia


"A ONU apresentou como confirmados desde o início da guerra 5.916 civis mortos e 8.616 feridos, sublinhando que estes números estão muito aquém dos reais".
Infelizmente, agravar-se-á este número com a mobilização de milhares de russos decidida por Putin para continuar o seu programa de crueldade e morte contra ucranianos e contra os que, mesmo russos, se opõem ao seu ideário extremista e belicista.
Esta guerra que Putin iniciou, porque de guerra se trata, também nos diz respeito e nos merece a maior atenção e apreensão, uma vez que estão em causa valores e princípios completamente espezinhados pelo mesmo, como o respeito pela soberania das nações, pela sua independência, pelas disposições da Carta das Nações Unidas, pelos Direitos Humanos e pelo Direito Internacional.
Nada justifica o que está a acontecer, exceto o desejo imperialista de um homem que, pela violência e pela força, negando a História recente da Europa a a partir de 1989, quer fazer renascer os horrores pelos quais passaram as ditas democracias populares e ressuscitar a velha e prepotente URSS.
Quem não critica abertamente Putin por tudo isto que tem feito também é como ele.
Neste contexto, e perante os factos e esta terrível realidade, não há lugar para os que, estranha e cobardemente se escondem na "abstenção" ou comodamente se viram contra os países que estão a ajudar a Ucrânia.
Isto nunca foi operação militar especial, mas guerra. Guerra!
"Não há volta a dar-lhe": ou se é pela Rússia ou se é pela Ucrânia.


 Nazaré Oliveira


Já agora, para consulta

https://www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/world/20220127STO22047/de-que-forma-a-uniao-europeia-apoia-a-ucrania

 https://youtu.be/LI5dbfr3Xp0 


terça-feira, 15 de março de 2022

O presidente Vladimir Putin está a abusar da História para justificar a invasão da Ucrânia

 




É com choque e horror que testemunhamos os acontecimentos que se desenrolam na Ucrânia, iniciados por ordem do presidente russo, Vladimir Putin, de invadir o país. 

O presidente Vladimir Putin está a abusar da História para justificar esta invasão e o ataque armado ao estado soberano da Ucrânia. Baseia-se numa visão unilateral da História que glorifica a Rússia e caracteriza erroneamente o povo ucraniano e o seu governo democraticamente eleito. Ele abusa da História para deslegitimar as atuais fronteiras da Ucrânia. 

Putin, a sua liderança e os mídia controlados pelo Estado, promoveram o sentimento anti-ucraniano ao disseminar falsidades centradas numa narrativa de “desnazificação” do governo. A equação da atual administração e do povo da Ucrânia com nazis e colaboradores nazis é a-histórica. As alegações de que a Ucrânia não tem tradição de Estado são falsas.

A EuroClio  posiciona-se firmemente contra o abuso da História – o uso da História com a intenção de enganar. O uso da violência que testemunhamos atualmente mostra até onde isso pode levar. Acreditamos que é imperativo que historiadores e educadores de História estejam vigilantes e se manifestem contra tais abusos sempre que possível, tanto dentro quanto fora dos ambientes educacionais.

Estamos solidários com o povo da Ucrânia, que viu o seu território invadido e a sua segurança ameaçada. Também estamos com todas as pessoas que, na Rússia, também estão em choque e protestam contra as ações do seu governo.

Os nossos pensamentos vão, em particular,  para os nossos colegas na Ucrânia que estão em perigo e com quem trabalhamos há décadas para promover o entendimento mútuo por meio da Educação. Esperamos vê-los em breve, com segurança. 

Que possamos testemunhar o fim deste sofrimento o mais cedo possível. 




Artigo disponível em https://euroclio.eu/2022/02/27/statement-against-the-abuse-of-history-and-in-solidarity-with-the-people-of-ukraine/ (consultado dia 15.03.2022)





quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Maldade responde-se com Humanidade (Gustavo Carona)


Pela segunda vez na minha vida estive cara-a-cara com o Estado Islâmico. Mete medo, é assustador. Muitos arrepios na espinha.  A primeira vez foi na Síria em finais de 2013 que tive o desprazer de me cruzar com este grupo de pura maldade. Cruzei-me com alguns dos seus elementos no hospital onde trabalhei, mas foi acima de tudo na reacção de medo e petrificação que vi nos rostos do povo sírio, que me apercebi do espectro infinito de terror e sofrimento que fez construir a minha imagem sobre este grupo. 

Desta vez no Iraque, em Mosul, 4 anos depois, a história foi bem diferente para pior. É difícil de explicar o inexplicável, mas para contar esta história ou estas histórias é imperativo que se tente analisar como apareceu o estado Islâmico desde a geopolítica macro ao humilde indivíduo que não sabe ler nem escrever e que no fundo não teve outra opção, passando também por algumas opiniões sobre o que os une, a religião. Sei que quando chegarem ao fim desta história vão perceber um bocadinho mais e vão olhar para o mundo com mais coração. 

O Iraque é um país cuja politica é sempre extremamente explosiva. Como sabem o médio-oriente foi dividido após a 1a guerra mundial num acordo entre os franceses e os ingleses, que assim criaram fronteiras que nunca existiram, e com isso dividiram povos a seu belo prazer de uma forma artificial com graves consequências até hoje. Existem duas facções do Islão os sunitas e os xiitas (assim como no cristianismo existem os católicos e os protestantes (e outros)). A tensão entre estes dois sub-grupos do Islão é enorme. Quase toda a tensão/guerras do médio-oriente afunila nesta dicotomia. E o Iraque é o único país no mundo que tem algum equilíbrio percentual entre sunitas e xiitas, sendo cerca de 60% xiitas e 40% sunitas. Recuemos no tempo até 2003. Quando se inicia uma guerra, com a agravante que foi sob os falsos pressupostos da existência de armas químicas, para derrubar Sadam Hussein (sem dúvida um ditador terrível) que era sunita e dominava o país com mão de ferro e toda uma elite nas diferentes estruturas governamentais e privadas também composta por sunitas. Ao derrubar o regime o mundo patrocinou uma alternância de poder para os xiitas, e assim deixou desamparados todos os sunitas influentes e poderosos, intelectualmente capazes e influentes do Iraque. Nasce uma revolta, um ódio extremo, uma promessa de vingança eterna, após esta alternância de poder. Por esta altura o mundo já conhecia bem o extremismo sunita patrocinado pelos países sunitas mais influentes, Arábia Saudita e emirados e sultanatos á volta, a quem chamávamos Alqaeda. Então em 2010 (Sadam é enforcado em 2006), nasceu um grupo chamado Alqaeda no Iraque, essencialmente no norte do país onde há uma expressiva maioria de sunitas. Mais tarde também a propósito da guerra da Síria (que começa em 2011), cria-se um terreno fértil para este grupo ir além da ideologia e de ataques estratégicos, para a tomada de cidades e largas áreas de terreno essencialmente no leste da Síria e no Norte do Iraque, e assim se cria o Estado Islâmico, ou Islamic State of Iraq and Siria (ISIS), ou Daesh (“estado” em Árabe). E em Julho de 2014 acontece o que ninguém imaginaria ser possível, o Estado Islâmico conquista em poucos dias, a segunda maior cidade do Iraque com 2 milhões de habitantes e estrategicamente imensamente importante, Mosul. E do alto do minarete da mesquita mais emblemática da cidade, Al-Nuri, o seu líder Al-Baghdadi, declara o auto-proclamado Estado Islâmico, com pretensões de unir todo um mundo muçulmano num só califato. E aqui compreendemos que mexer na política interna de outros países a nosso belo prazer, faz mais mal do que bem. Abanar os ódios, exponencia-os. A criação do Estado Islâmico nasce directamente da inexplicável guerra do Iraque de 2003. Mas não só.

A religião e o poder sempre se imiscuíram. Toda a história das grandes religiões se confunde com a forma como exerceram poder sobre as pessoas. Eu tenho um respeito enorme por todas as religiões e até admiração pela forma como conseguiram agregar multidões, povos, países e continentes inteiros, à volta da reflexão sobre o certo e o errado. Na minha óptica enquanto ateu, as religiões tinham tudo para ser algo de maravilhoso, não fosse o “pequeno” pormenor que são sustentadas numa mentira. E esta influência que a religião tem sobre as pessoas depende da forma de como é manobrada pelos seus actores principais, por aqueles que se colocam numa posição de lideres de opinião e subsequentemente de controladores de acções dos crentes. Na minha muito humilde opinião, acreditar na reencarnação de humanos em animais, acreditar que Jesus é filho de deus, ou que Maomé falou com Alah dentro de uma gruta, ou deuses com trombas de elefante, são tudo histórias de encantar. Talvez na sua génese o Islão interfira mais na política de toda uma sociedade do que as suas principais rivais. Ainda assim o Islão difunde uma mensagem absolutamente humana e inspiradora de humildade, de cooperação, de bondade, que eu aprendi a admirar à semelhança da minha admiração por outras religiões. O grande problema das religiões reside nos dogmas e nas certezas absolutas. É o primeiro passo para todo um fim. Quando as pessoas acreditam cegamente, são manietadas, são moldadas à imagem de quem manda, e são persuadidas com muita força a fazer o que quer que seja. Porque vem de deus, e como tal nada se questiona. E é esta também a simples história do Estado Islâmico. Num país em desordem, com gente poderosa sedenta de vontade de regressar ao poder, o factor unificador é a palavra de deus, e a criação de um inimigo comum. A injustiça, a revolta, a pobreza, a humilhação, levam uma franja da população sunita a acreditar que a palavra de deus, vem deste grupo de radicais oportunistas, que rapidamente através dos seus dogmas de fé recolheram o apoio de gente suficiente para criar este poderosíssimo grupo que se vendia como lobo em pele de cordeiro. O extremismo, o fanatismo, o radicalismo vem do oportunismo de gente má, que usa pessoas de visão curta, sustentados nas suas certezas absolutas. Nos seus dogmas de fé. Que neste caso vêm das vozes que Maomé ouviu sozinho numa gruta.

Quem é o individuo que se junta ao Estado Islâmico? Segundo se sabe o seu líder Al-Baghdadi (agora morto) esteve vários anos preso, numa prisão militar americana, dizem que seria até uma espécie de informador para os americanos, mas certamente estava a camuflar a sua raiva e humilhação. A ele se juntam poderosos e gananciosos, revoltados e frustrados, com o apoio dos quadros sunitas que até há pouco tempo dominavam todo o Iraque. Mas eu penso que a reflexão mais importante está no controlo das massas, como é que se conquista o coração das pessoas cometendo crimes hediondos, sabendo que as pessoas na sua génese são boas. O comum dos mortais iraquianos foi persuadido com o radicalismo da palavra de deus, e uma arma na cabeça. São duas forças difíceis de questionar. Difíceis de resistir. E assim compreendem que entre os militantes e os militares do Estado Islâmico e o comum dos Iraquianos que por uma questão de sobrevivência e ignorância se submeteu ao jugo desta gente horrível e foi participante, facilitadora e conivente com todas as atrocidades deste grupo, mas eles próprios vítimas de uma lavagem cerebral e de uma coação moral/divina e ameaça física muito real, da sua pele e dos seus. 
Aquilo que o Estado Islâmico fez não caberia em todos os livros que já foram escritos até hoje. E eu poderia escrever textos e textos, e continuaria a ser uma mera introdução ao tema. Mataram todos os que consideravam infiéis, desde xiitas, cristãos, yazidis, kurdos, e tudo mais o que encontravam pela frente. Escravizaram pessoas, violaram enormes quantidades de mulheres que usaram como objectos sexuais, torturam de todas as formas que a nossa imaginação possa encontrar, queimaram casas com pessoas lá dentro, executaram pessoas em praça pública para aterrorizar e entreter as multidões que eles obrigavam a assistir. As histórias que me chegavam quer pelos meus companheiros de trabalho iraquianos que tinham vivido sobre o domínio do Estado Islâmico, quer pelos doentes que ainda tremiam de medo eram arrepiantes. É o que acontece quando deixamos crescer o egoísmo e a maldade. 

O anoitecer era uma fase maravilhosa do dia. O calor abrandava. Abrandava apenas, mas já era tão bom. Os iraquianos que estavam a jejuar durante o ramadão animavam-se com o Iftar (a refeição que quebra o jejum diurno) e normalmente encontrávamos aqui um momento para viajarmos através das conversas de mundo e do ali mesmo. Um dos médicos que trabalhava comigo contava-me algumas histórias de horror do Estado Islâmico. Uma delas tinha uns dias. Disse-me que estava sentado à conversa com um amigo também médico no lado leste de Mosul (recentemente libertado), e que este foi assassinado por um sniper que disparou da outra margem do rio (Mosul oeste) que estava ainda dominada pelo Estado Islâmico. Disse-me que era frequente eliminar profissionais de saúde marcando uma posição sobre o terror que impunham em todos que estivessem contra eles. Retirar a saúde a um povo, é retirar-lhes a esperança de viver. Os feridos e os familiares que nos chegavam ao hospital por vagas, à medida que a cidade de Mosul ia sendo libertada quarteirão a quarteirão, todos referiam histórias de familiares que em algum momento tentaram fugir e foram abatidos pelas costas na fuga, e os seus corpos ali ficavam no meio da rua, pois ninguém se atrevia a aproximar-se das linhas que delimitavam a fronteira deste conflito. 

Um mundo de ódios, um mar de maldade, todo um infinito de atrocidades. E a grande maioria da população que limitou-se a sofrer, quando se libertarva deste inferno, encontrava de imediato um enorme alívio mas também o desespero de vidas e vidas perdidas para trás que deixarão cicatrizes até os tempos serem tempos, e um ódio reactivo a toda maldade que lhes foi feita. Várias reportagens jornalísticas deram conta das atrocidades cometidas pela exército iraquiano na reconquista do norte do Iraque. Fizeram igual ou pior que o Estado Islâmico a todos que consideravam culpados, em julgamentos instantâneos. Porque o grande problema aqui se põe. Quem são os verdadeiramente culpados? Porque entre os que ajudaram, os simpatizantes, os que alguma vez colaboraram, os que tinham primos, os que fizeram algum negócio com o Estado Islâmico, etc, etc. Quem são os verdadeiros culpados? Foi uma matança desprovida de critério, e menos ainda de justiça. Foi-se torturando e matando ao sabor de quem tinha a arma na mão.

Perto do hospital onde eu estava a trabalhar, havia uma prisão para todos os elementos pertencentes, ou amigos, ou suspeitos do Estado Islâmico. Talvez fosse melhor a morte. As condições de vida ou falta delas eram alucinantes. O cheiro a podridão era agoniante. Era uma espécie de pena de morte, sem premir o gatilho. O que esperar dum país em guerra, que não tem dinheiro para dar de comer ao seu povo, a contas com a pior batalha da história contemporânea, e com toda uma quantidade de gente cuja culpa era extremamente difícil de dissecar e mais ainda de perdoar...?

Várias vezes recebemos presos que estavam gravemente doentes no nosso hospital. É aqui que todas as questões se levantam. A ética a moral, a deontologia, e a bipolaridade de emoções que esta questão nos levantava. Quem é que quer salvar estes assassinos? Assassinos, supostos-assassinos, simpatizantes de assassinos, obrigados a ser assassinos... sei lá. O que é que eu sei? Tive vários destes doentes sob a minha responsabilidade porque nos chegavam ao hospital em estado crítico, quase a morrer. O quadro clínico era semelhante entre eles. As faltas de condição de higiene, e alimentação paupérrima levava-os a um extremo de franqueza, desnutrição e desidratação e com gastroenterites á mistura, estavam às portas da morte. Eu continha as lágrimas para os ver como pessoas depois de dias e dias a ouvir histórias de horror. Olhava-os nos olhos e em silêncio perguntava-lhes: “quem és tu?” ... mas desta pergunta nascia em mim outra pergunta em silêncio: “quem sou eu?” ... Entre lágrimas escondidas esforcei-me muito para lhes salvar a vida. Noites perdidas a examiná-los e reavaliá-los até que recuperassem forças para voltar para a prisão de onde talvez nunca saíram. Mas o que também é óbvio, é que eu sou um turista. E para eles? E para os iraquianos? Eu tive conversas e interacções com alguns dos enfermeiros dos cuidados intensivos cuja intensidade e a profundidade, dói. Dói muito. Porque não foi a minha família que foi torturada, violada e assassinada por este grupo de ódio. Foram as deles. Todos eles. Não havia ali ninguém sem uma história de sangue muito directa. 

Cada vez que recebia um destes presos em estado crítico, eu sentava-me com os enfermeiros à conversa sobre estes dilemas éticos. E diziam-lhes... “eu sei que isto é complicado para vocês... eu nem me atrevo a imaginar o que vocês devem estar a sentir...” ... eu ainda acrescentava... “ se vocês não conseguirem cuidar destes homens, eu percebo, eu juro que eu percebo...” ... Eu via nos olhos deles lágrimas raiadas de sangue, mas várias vezes me repetiam... “Eles são seres humanos... nós vamos fazer o nosso trabalho” ... Eu não cabia em mim, em tanto orgulho, em tanta admiração, em tanta inspiração, em tanta humanidade... Foi talvez a maior lição que eu aprendi até hoje... Viver inspirado não tem preço...

Os enfermeiros tinham que lhes dar banho, limpar a cama cheia de diarreia, dar-lhes a medicação, dar-lhes de beber e de comer, e tudo mais... a pessoas, que pintaram a tons de dor toda a história das suas vidas, dos seus pais, dos seus irmãos, dos seus filhos... Foi a coisa mais bonita que eu vi até hoje. Sentia calafrios pelo corpo todo quando os via a a fazer cuidados de enfermagem numa interacção que os devia estar a destruir por dentro, mas certamente percebiam que a solução para o seu país estava também nestas pequenas vitórias heroicas... Eu dava a vida por eles, porque um ensinamento de tanto amor no meio do horror, não tem preço e tem um valor eterno e inestimável. 

Eu sabia que a tarefa ia ser dura. Quando podia ia ajudando ou vendo pelo canto do olho como os estavam a tratar. Era duríssimo. Nunca vi uma troca de palavras para além do mínimo. Nunca vi um sorriso, nem posso dizer que tenha visto compaixão, embora ela estivesse lá. Vi um trabalho sério, e cuidado. Vi que à maldade se responde com humanidade. 

No meio de tantos horrores, vemos também o melhor do ser humano. Nunca lhes agradeci pela inspiração infinita que deixaram em mim, espero que ao contar a sua história deixe bem claro o profundo agradecimento que tenho por estas pessoas, terem cruzado a minha vida.

Obrigado por me terem mostrado que há amor no meio do horror. Obrigado.

Maldade responde-se com Humanidade.


in http://gustavocarona.blogspot.com/?fbclid=IwAR17BExz8A72jn-wBxtoZcggP1SsVG-2D6ajaFdztJBQ4b5bROi3xUKu934

terça-feira, 6 de julho de 2021

O Agitador



Enfrentando a crise climática numa jornada de autodescoberta

É em tempos de crise que descobrimos o que realmente importa para nós, quem realmente somos, como indivíduos e como sociedade. The Troublemaker investiga profundamente as ideias e emoções por detrás da onda internacional de protesto civil, nascida em virtude da crise climática que se vivemos. Através dos olhos de um líder visionário que co-fundou a ?Extinction Rebellion? e de um cidadão respeitador da lei inspirado a agir, The Troublemaker aspira a despertar o público da resistência passiva para uma defesa de afirmação da vida do nosso futuro. Agora que entendemos mais sobre como é uma "crise global", ela não pode mais ser ignorada.



quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Elvis Presley - In The Ghetto (Music Video) (1969)


As the snow flies
On a cold and gray Chicago mornin'
A poor little baby child is born
In the ghetto
And his mama cries
'Cause if there's one thing that she don't need
It's another hungry mouth to feed
In the ghetto
People, don't you understand
The child needs a helping hand
Or he'll grow to be an angry young man some day
Take a look at you and me,
Are we too blind to see,
Do we simply turn our heads
And look the other way
Well the world turns
And a hungry little boy with a runny nose
Plays in the street as the cold wind blows
In the ghetto
And his hunger burns
So he starts to roam the streets at night
And he learns how to steal
And he learns how to fight
In the ghetto
Then one night in desperation
The young man breaks the

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Monstros de pedra

 

Manifestantes derrubam a estátua do traficante de escravos Edward Colston no porto de Bristol, durante manifestação Black Lives Matter, em Bristol, na Inglaterra
- Foto: Ben Birchall/PA via AP - 



Monstros de pedra


Um artigo de João Camargo in EXPRESSO de 26.06.2020


Uma das expressões mais claras da revolta contra o racismo que começou nos Estados Unidos e se expandiu por todo o mundo ocidental, foi a remoção e ataque a estátuas que representam directamente ou indirectamente a história colonial, esclavagista e racista sobre a qual se construiu muito do Ocidente. Sectores mais conservadores, tradicionais e a extrema-direita criaram uma onda de indignação. Para estes sectores, a destruição de estátuas e símbolos desse passado configura-se como uma crime indesculpável, pois ataca as identidades criadas com base em feitos históricos (reais, mistificados ou inventados) afirmados no espaço público como imortais através desses símbolos.

Sem entrar em profundidade na questão específica das estátuas e monumentos, que foi discutida durante as últimas semanas, enquadro-a na promessa do “regresso ao passado”, tão utilizada nas últimas décadas pelos sectores conservadores e pela extrema-direita como ferramenta de recrutamento e mobilização. Esta promessa tenderá a ter um papel crescente na política nacional e internacional. A promessa que fazem é de um regresso a um passado seguro, idealizado e místico. Quando Donald Trump promete “fazer a América grande de novo”, quando Jair Bolsonaro defende a ditadura militar de 1964, quando Marine Le Pen defende “Voltar a pôr França na ordem” ou, de forma mais simples, Viktor Órban diz STOP com uma mão levantada, devemos perceber do que estão a falar: parar e voltar para trás. Mas este regresso ao passado requer que esqueçamos o que foi o passado ou que mantenhamos uma visão “higiénica” do que foi o passado. Por isso mesmo é-lhes tão ofensiva a ideia de olhar para o passado com uma visão crítica ou, ainda mais, que sejam tiradas das praças e dos espaços públicos algumas das estátuas que perpetuam essa visão higiénica.

A estratégia da promessa do regresso ao passado tem o seu maior potencial quando existem crises sistémicas e repetidas, que agravam as tensões sociais e colocam os campos políticos em oposição cada vez mais directa. Não é por isso de estranhar a sua ascensão agora. Mas esta estratégia é principalmente uma expressão do poder das elites para conservar o seu status. Por isso mesmo percebe-se a oposição a qualquer revisão histórica e ainda mais à reparação histórica aos povos que foram sistematicamente oprimidos. Há uma tentativa de cobrir a estratégia com uma capa popular, apostando em pequenos conflitos sociais e criminais de expressão muitas vezes insignificante na sociedade, enquanto se ignoram os grandes temas que afectam o conjunto da civilização humana. Este é o teste do algodão para explicar a natureza da promessa: o regresso ao passado é apenas o regresso ao passado dos poderosos, não o regresso ao passado do povo e das pessoas normais. É um isco para as pessoas normais.

A confusão que estas forças políticas pretendem manter institucionalizada é a de que a história das elites é igual à história dos povos, que a história dos colonos é a história dos colonizados, que a história dos homens é a história das mulheres. São histórias diferentes, divergentes e muitas vezes de sentido totalmente oposto: o sucesso da elites fez-se à custa da opressão dos povos, o sucesso do colonialismo fez-se à custa da destruição de povos e civilizações inteiras, a subjugação das mulheres aos homens implicou apagá-las da história. Construir uma ideia de futuro conjunta implica olhar para o mundo e para o passado com outros óculos, com muito mais informação. Implica também deixar de venerar monstros de pedra, que os há, e muitos, pelas ruas e praças de todo o mundo. Isso não significa apagar a história, pelo contrário. Significa deixar de defender acriticamente uma história de exclusões, omissões e obliteração, o que faz sentido especialmente quando, na enorme maioria, a população hoje viva é descendente de quem foi esmagado.

Quanto pior for a situação económica, quanto pior a degradação ambiental, quanto mais se forem potenciando fenómenos históricos como migrações de massas e escassez, com mais veemência será feita a promessa do regresso ao passado. A promessa será feita mais alto, a sua proposta política será feita com mais violência (oratória e física), será exigido com mais força o apagamento das vozes e da história que não batem certo com a história que é contada pelas estátuas. Essa estátuas imortalizam um passado cujas vitórias existiram para pouco mais do que uma minúscula minoria. Quanto mais estiver abalado o capitalismo global, mais promessas serão feitas para manter a sua estrutura de privilégio. Já vemos no últimos anos o reforço da aliança entre o conservadorismo e a extrema-direita para conservar esse privilégio. Perante o regresso da História, as elites do capitalismo prometem defender um passado que está esculpido na pedra.

É difícil defender que o colonialismo e a escravatura, com a sua expressão intelectualizada no racismo, não foram fenómenos monstruosos. Há quem o faça, há quem tente relativizar a destruição sistemática de povos inteiros, a depredação de territórios e destruição de modos de vida e culturas, enquadrando-as num espírito de época ou, ainda mais grave, numa “natureza humana”. Há até a defesa de que os povos colonizados e escravizados nem sequer tinham uma cultura, seriam folhas em branco à espera de uma impressão civilizadora e evangelizadora do ocidente. Na altura, a desumanização destas pessoas era institucionalizada na ideia de que não teriam alma, sendo apenas animais sem pensamento, e que portanto privá-las de qualquer réstia de dignidade humana seria aceitável. Tudo isto era afirmado para garantir que tudo o que podia ser extraído destas pessoas e destes territórios não seria crime, mas apenas um negócio como tantos outros. Legitimado pelos intelectuais da altura, pelo clero, pela nobreza, pela academia, pelos exploradores, esta desumanização precisava ser explicada ao povo que iria, na prática, fazer o trabalho sujo de manter os ricos ricos, fosse porque meios fosse. Muita dessa teorização manteve-se ao longo da história e o trabalho de desconstruí-la está por fazer. Para atrasar e travar esse trabalho há monstros de pedra erguidos e lançando longas sombras pelas ruas e praças de todo o mundo.

A promessa de um regresso ao passado como futuro é, literalmente, a promessa de um futuro de monstros. Muito mais do que aquelas estátuas que são derrubadas, que são contestadas ou grafitadas, o que o regresso ao passado promete é a criação de novas estátuas de monstros, de novos monstros e monstruosidades para responder a um tempo de enorme incerteza. A defesa dos poderosos, a falta de imaginação, de coragem e - também - um legítimo medo de um futuro cheio de incertezas, leva à promessa e à defesa de um regresso ao passado, de um regresso à monstruosidade do passado. A única coisa que o conservadorismo e a extrema-direita têm para oferecer hoje à Humanidade são monstruosidades.

O medo do futuro é compreensível. Vivemos no meio de uma pandemia, estamos na segunda grande recessão global desde o início do século, o sistema financeiro sorveu continuamente os rendimentos de Estados e populações inteiras, vivemos na 6ª extinção em massa de espécies na História do planeta, a crise climática ergue-se sobre toda esta realidade e, se não for travada, desmantelará os sistemas que foram montados para a existência de civilização. Nesta realidade, o regresso ao passado pode até ser um apelo que ecoa dentro da cabeça das pessoas, mas não passa de uma ratoeira, explorando o medo para institucionalizar monstruosidades. Um regresso ao passado não garantirá travar nenhum dos problemas existenciais em que vivemos. Pelo contrário, anexada a esse regresso ao passado está a garantia de ignorar todos estes problemas urgentes: a extrema-direita e a direita conservadora rejeitam ou menosprezam todas estas temáticas existenciais. Para manterem a sua ligação directa com os donos do capitalismo global, precisam ignorar a necessidade de acabar com este sistema, com estes monstros de pedra que bloqueiam qualquer caminho para o futuro. A obsessão pelo passado (especialmente um que não passa de um mito) é uma ratoeira que não nos serve enquanto espécie.




Nota:


A imagem que documenta este artigo foi escolhida por mim em https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/11/estatua-de-escravocrata-britanico-derrubada-por-manifestantes-e-retirada-do-rio.ghtml


sábado, 15 de junho de 2019

Refugiados

Disponível em https://www.publico.pt/2017/06/19/mundo/noticia/numero-de-pessoas-deslocadas-em-todo-o-mundo-bate-recordes-1776141 (consultado dia 15.06.2019)



Disponível em https://oglobo.globo.com/mundo/de-onde-vem-os-refugiados-por-que-17480704 (consultado dia 15.06.2019)

Disponível em https://sicnoticias.pt/especiais/afeganistao-capital-dos-errantes/2019-01-28-Os-refugiados-em-Portugal-e-no-mundo (consultado dia 15.06.2019)







Todos os que fogem da guerra, da fome, da miséria, da intolerância, e procuram uma vida em paz e com dignidade, todos têm direito a um abraço fraterno (asilo) e  todos devem dá-lo.
"Hoje eles, amanhã nós!" 
Os Direitos Humanos, a sua defesa, não se pode ficar por meras palavras. É preciso ação, ação e seriedade nas relações políticas e na diplomacia internacional.



Para os que se interessam por este tema, esta realidade, consultar:

domingo, 17 de março de 2019

A justiça climática é a luta pelo destino da Humanidade



Só faremos isto em conjunto, pela acção persistente e decidida de milhões de pessoas. “Vamos mudar o destino da Humanidade.”


15 de Março de 2019


Hoje é um dia histórico, com uma das maiores mobilizações globais de sempre, sobre qualquer tema que seja. É a maior mobilização de jovens e a maior mobilização pela justiça climática que alguma vez aconteceu. Todas as pessoas que mobilizaram, que convocaram e que hoje se juntam e se encontram nas ruas de mais de mil cidades por todo o mundo devem saber que fazem parte de um momento extraordinário. Começa uma nova História da justiça climática.

Durante as últimas três décadas, milhares de pessoas por todo o mundo empurraram um comboio pesado, o comboio da inércia, o comboio da conformação, o comboio do sistema, à procura de soluções e vontade política para resgatar a civilização. Muito mais grave do que a meia dúzia de negacionistas de alterações climáticas (com desproporcionado impacto mediático), foram mesmo os arquitectos das políticas dos últimos anos os grandes responsáveis por vivermos numa emergência climática sem paralelo na História da Humanidade.


“O desprezo pelos jovens, o desprezo pelas pessoas comuns, foi convertendo superficialmente milhares de milhões em cínicos, em hipócritas, em seres amorfos e autocentrados. O poder retirado pela economia e pela política às populações foi criando um espírito de derrota, de impotência, de conformação a tudo o que viesse de cima, à ordem e à obediência. Apesar de haver sempre quem resistisse, esse espírito imperou durante muito tempo.”


De nada serviram Barack Obamas, Justin Trudeaus ou Uniões Europeias a gritar o seu empenho no combate às alterações climáticas, de nada nos serviram as tintas verdes com que empresas destruidoras como a BP ou a Volkswagen se foram pintando porque, apesar de andarmos há décadas à procura de acordos para cortar as emissões de gases com efeito de estufa, 2018 foi o ano com o mais alto nível de emissões alguma vez registado. Nesse contexto de enorme frustração, de enorme contradição, empurrámos, contra o senso comum, contra a política banal, contra a TINA (There Is No Alternative), assistimos ao colapso em Copenhaga, exigimos que não houvesse mais explorações de petróleo, gás e carvão, se queríamos salvar o futuro da civilização. Às costas, levávamos a Ciência, a vontade e a certeza de que isto não podia acabar assim, que a Humanidade não podia ser só isto. 

O desprezo pelos jovens, o desprezo pelas pessoas comuns, foi convertendo superficialmente milhares de milhões em cínicos, em hipócritas, em seres amorfos e autocentrados. O poder retirado pela economia e pela política às populações foi criando um espírito de derrota, de impotência, de conformação a tudo o que viesse de cima, à ordem e à obediência. Apesar de haver sempre quem resistisse, esse espírito imperou durante muito tempo. Chegados a um dia como hoje percebemos como era superficial esse espírito, e especialmente superficial a análise de que isso se poderia manter.

A temperatura média global nas últimas três décadas só tem comparação com o período interglacial do Eemiano, há mais de 115 mil anos. Haveria nessa altura, quanto muito, alguns milhões de seres humanos (menos do que os dedos de uma mão). O centro da Europa era uma savana, o Reno e o Tamisa tinham hipopótamos e crocodilos. O nível médio do mar era seis a nove metros mais alto do que hoje. Os cinco anos mais quentes desde que há registos são os últimos cinco (2016, 2015, 2017, 2018, 2014). Devido à queima massiva de gases com efeito de estufa que começou na Revolução Industrial e que disparou a partir do final da Segunda Guerra Mundial, criámos um clima em que nunca vivemos antes, diferente daquele em que foi possível inventar a agricultura, a escrita, a civilização. O capitalismo industrial fóssil acabou com o Holoceno, o período geológico dos últimos 12 mil anos que permitiu que a nossa espécie de instalasse e proliferasse por todo o planeta.

Mas a inacção garante-nos uma degradação muito maior do que esta, e cada dia, cada semana, cada mês em que a máquina industrial fóssil se mantém em produção máxima agrava o nosso futuro. Cada momento em que a máquina industrial fóssil se mantém em produção ficam em causa a viabilidade dos territórios em que habitamos hoje, a sua capacidade de nos continuar a sustentar, quer pela redução da capacidade de produção alimentar e da disponibilidade de água, quer pelos fenómenos climáticos extremos e a subida do nível médio do mar. A reacção perante este estado de coisas é uma manifestação de autoprotecção. Não estamos a defender a Terra, nós somos parte da Terra e estamos a defender-nos a nós mesmos.

Nomeada para o Prémio Nobel da Paz, Greta Thunberg, a jovem sueca de 16 anos que disse exactamente isto na cara das lideranças mundiais na Polónia, foi o ponto de apoio e a sua greve, todas as sextas-feiras frente ao Parlamento da Suécia, foi a inspiração para a greve mundial climática. Mais tarde, o colectivo que convocou esta greve diria em carta aberta publicada no The Guardian: “Vamos mudar o destino da Humanidade.” Não é menos do que isto o que precisa de acontecer. 

Esta chamada à acção colectiva retira o derrotista enfoque na acção individual que vigorou nas últimas décadas. Só faremos isto em conjunto, pela acção persistente e decidida de milhões de pessoas. Tentar reduzir o que acontece neste 15 de Março de 2019 a uma chamada para pequenas acções individuais ou locais é perverter o que está a acontecer: “Vamos mudar o destino da Humanidade.”

Tudo irá mudar nas nossas economias e nas nossas sociedades. Se não formos nós a organizar estas mudanças, será o novo clima, sem qualquer contemporização. Vivemos neste momento dentro do arranha-céus em chamas do capitalismo global e todos os alarmes estão a tocar. Não existe nenhum bombeiro mágico para apagar as chamas. Está na hora de sair e construir uma nova casa para a Humanidade.


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Greta Thunberg