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domingo, 17 de março de 2019

A justiça climática é a luta pelo destino da Humanidade



Só faremos isto em conjunto, pela acção persistente e decidida de milhões de pessoas. “Vamos mudar o destino da Humanidade.”


15 de Março de 2019


Hoje é um dia histórico, com uma das maiores mobilizações globais de sempre, sobre qualquer tema que seja. É a maior mobilização de jovens e a maior mobilização pela justiça climática que alguma vez aconteceu. Todas as pessoas que mobilizaram, que convocaram e que hoje se juntam e se encontram nas ruas de mais de mil cidades por todo o mundo devem saber que fazem parte de um momento extraordinário. Começa uma nova História da justiça climática.

Durante as últimas três décadas, milhares de pessoas por todo o mundo empurraram um comboio pesado, o comboio da inércia, o comboio da conformação, o comboio do sistema, à procura de soluções e vontade política para resgatar a civilização. Muito mais grave do que a meia dúzia de negacionistas de alterações climáticas (com desproporcionado impacto mediático), foram mesmo os arquitectos das políticas dos últimos anos os grandes responsáveis por vivermos numa emergência climática sem paralelo na História da Humanidade.


“O desprezo pelos jovens, o desprezo pelas pessoas comuns, foi convertendo superficialmente milhares de milhões em cínicos, em hipócritas, em seres amorfos e autocentrados. O poder retirado pela economia e pela política às populações foi criando um espírito de derrota, de impotência, de conformação a tudo o que viesse de cima, à ordem e à obediência. Apesar de haver sempre quem resistisse, esse espírito imperou durante muito tempo.”


De nada serviram Barack Obamas, Justin Trudeaus ou Uniões Europeias a gritar o seu empenho no combate às alterações climáticas, de nada nos serviram as tintas verdes com que empresas destruidoras como a BP ou a Volkswagen se foram pintando porque, apesar de andarmos há décadas à procura de acordos para cortar as emissões de gases com efeito de estufa, 2018 foi o ano com o mais alto nível de emissões alguma vez registado. Nesse contexto de enorme frustração, de enorme contradição, empurrámos, contra o senso comum, contra a política banal, contra a TINA (There Is No Alternative), assistimos ao colapso em Copenhaga, exigimos que não houvesse mais explorações de petróleo, gás e carvão, se queríamos salvar o futuro da civilização. Às costas, levávamos a Ciência, a vontade e a certeza de que isto não podia acabar assim, que a Humanidade não podia ser só isto. 

O desprezo pelos jovens, o desprezo pelas pessoas comuns, foi convertendo superficialmente milhares de milhões em cínicos, em hipócritas, em seres amorfos e autocentrados. O poder retirado pela economia e pela política às populações foi criando um espírito de derrota, de impotência, de conformação a tudo o que viesse de cima, à ordem e à obediência. Apesar de haver sempre quem resistisse, esse espírito imperou durante muito tempo. Chegados a um dia como hoje percebemos como era superficial esse espírito, e especialmente superficial a análise de que isso se poderia manter.

A temperatura média global nas últimas três décadas só tem comparação com o período interglacial do Eemiano, há mais de 115 mil anos. Haveria nessa altura, quanto muito, alguns milhões de seres humanos (menos do que os dedos de uma mão). O centro da Europa era uma savana, o Reno e o Tamisa tinham hipopótamos e crocodilos. O nível médio do mar era seis a nove metros mais alto do que hoje. Os cinco anos mais quentes desde que há registos são os últimos cinco (2016, 2015, 2017, 2018, 2014). Devido à queima massiva de gases com efeito de estufa que começou na Revolução Industrial e que disparou a partir do final da Segunda Guerra Mundial, criámos um clima em que nunca vivemos antes, diferente daquele em que foi possível inventar a agricultura, a escrita, a civilização. O capitalismo industrial fóssil acabou com o Holoceno, o período geológico dos últimos 12 mil anos que permitiu que a nossa espécie de instalasse e proliferasse por todo o planeta.

Mas a inacção garante-nos uma degradação muito maior do que esta, e cada dia, cada semana, cada mês em que a máquina industrial fóssil se mantém em produção máxima agrava o nosso futuro. Cada momento em que a máquina industrial fóssil se mantém em produção ficam em causa a viabilidade dos territórios em que habitamos hoje, a sua capacidade de nos continuar a sustentar, quer pela redução da capacidade de produção alimentar e da disponibilidade de água, quer pelos fenómenos climáticos extremos e a subida do nível médio do mar. A reacção perante este estado de coisas é uma manifestação de autoprotecção. Não estamos a defender a Terra, nós somos parte da Terra e estamos a defender-nos a nós mesmos.

Nomeada para o Prémio Nobel da Paz, Greta Thunberg, a jovem sueca de 16 anos que disse exactamente isto na cara das lideranças mundiais na Polónia, foi o ponto de apoio e a sua greve, todas as sextas-feiras frente ao Parlamento da Suécia, foi a inspiração para a greve mundial climática. Mais tarde, o colectivo que convocou esta greve diria em carta aberta publicada no The Guardian: “Vamos mudar o destino da Humanidade.” Não é menos do que isto o que precisa de acontecer. 

Esta chamada à acção colectiva retira o derrotista enfoque na acção individual que vigorou nas últimas décadas. Só faremos isto em conjunto, pela acção persistente e decidida de milhões de pessoas. Tentar reduzir o que acontece neste 15 de Março de 2019 a uma chamada para pequenas acções individuais ou locais é perverter o que está a acontecer: “Vamos mudar o destino da Humanidade.”

Tudo irá mudar nas nossas economias e nas nossas sociedades. Se não formos nós a organizar estas mudanças, será o novo clima, sem qualquer contemporização. Vivemos neste momento dentro do arranha-céus em chamas do capitalismo global e todos os alarmes estão a tocar. Não existe nenhum bombeiro mágico para apagar as chamas. Está na hora de sair e construir uma nova casa para a Humanidade.


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Greta Thunberg



quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Cremos haver avançado, mas, de facto, retrocedemos (J. Saramago)



“Cremos haver avançado, mas, de facto, retrocedemos. E cada vez se irá tornando mais absurdo falar de democracia se persistirmos no equívoco de identificá-la com as suas expressões quantitativas e mecânicas, essas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem proceder antes a um exame sério e conclusivo do modo como eles utilizam o voto que os colocou no lugar que ocupam. 

Uma democracia bem entendida, inteira, redonda, irradiante, como um sol que por igual a todos ilumine, deverá, em nome da pura lógica, começar por aquilo que temos mais à mão, isto é, o país onde nascemos, a sociedade em que vivemos, a rua onde moramos. Se esta condição primária não for observada (e a experiência de todos os dias diz-nos que não o é), toda a fundamentação teórica e o funcionamento experimental do sistema estarão, desde o início, viciados e corrompidos. 

Os povos não elegeram os seus governos para que eles os “levassem” ao mercado, mercado que condiciona por todos os modos os governos para que lhe “levem” os povos.

Nos tempos modernos, o mercado é o instrumento por excelência do autêntico, único e insofismável poder realmente digno desse nome que existe no mundo: o poder económico e financeiro transnacional e pluricontinental, esse, que não é democrático porque não o elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que não é democrático porque não visa a felicidade do povo.” 



José Saramago

sábado, 29 de julho de 2017

As crianças foram as mais afetadas pelo aumento da pobreza ou exclusão social



Não me surpreende, infelizmente, mas segundo uma notícia da RR de hoje, as crianças foram as mais afetadas pelo aumento da pobreza ou exclusão social.

Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgados esta quinta-feira referem que em 2013 mais de ¼ dos portugueses vivia em privação material, isto é, muito muito pobre, e que, em relação às crianças, a intensidade da pobreza para este grupo aumentou 6,2 pontos percentuais em 2012 face ao ano anterior.

Se considerarmos que um agregado está em privação material quando não tem acesso a pelo menos três itens de uma lista de nove relacionados com necessidades económicas e bens duráveis, a saber, atrasos no pagamento de rendas, empréstimos ou despesas correntes da casa, não conseguir comer uma refeição de carne e peixe de dois em dois dias, não ter carro, televisão ou máquina de lavar roupa ou não conseguir fazer face ao pagamento de uma despesa inesperada, entre outros, é simplesmente aterrador pensar como estamos e como vamos continuar a estar.

Os resultados definitivos do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento realizado em 2013, sobre rendimentos de 2012, referem que a população infantil apresenta, desde 2010, riscos de pobreza ou exclusão social superiores aos da população em geral.

Os dados divulgados neste dia por ocasião da comemoração do Dia Internacional da Erradicação da Pobreza (17 de Outubro), mostram que as crianças foram as mais afetadas pelo aumento da pobreza ou exclusão social (mais 3,8 pontos percentuais entre 2012 e 2013).
De acordo com este inquérito, 18,7% das pessoas estavam em risco de pobreza em 2012, o valor mais elevado no período iniciado em 2009 (entre 2009 e 2011 o risco de pobreza afetava, em média, cerca de 17,9% da população residente).

Até quando esta realidade cada vez mais medonha e mais trágica para os pobres?

Até quando esta política de austeridade cruel e desumana, implacável para com os que sempre viveram à espera de melhores dias? 

Até quando este fosso cada vez mais cavado entre ricos e pobres?


Portugal está muito orgulhoso de ter conseguido uma 'saída limpa' do programa de resgate. É uma 'saída limpa' de um ponto de vista económico e financeiro mas é uma saída muito dolorosa para muita gente, disse Salil Shetty, da Amnistia Internacional, em entrevista à agência Lusa.

sexta-feira, 10 de março de 2017

Banca e banqueiros em Portugal: uma história de podridão


Vídeo da SIC Notícias - Texto in https://vaievem.wordpress.com/2017/03/07/assalto-ao-castelo-o-jornalista-e-a-sua-fonte-misterio/


A reportagem em três episódios, da SIC,  “Assalto ao Castelo“, da autoria do jornalista Pedro Coelho, é um trabalho inovador e de grande seriedade que merece ser estudado e analisado nas escolas de jornalismo e nas redacções. Não apenas a construção das peças, a narrativa que percorre os três episódios, a encenação dos diálogos do jornalista com a “fonte-mistério”, os cenários interiores e exteriores, as paisagens reais ou criadas, os excertos escolhidos das intervenções públicas dos protagonistas, os depoimentos de lesados, a conversa do jornalista com o treinador Carlos Queirós, em suma, toda a concepção dos episódios revela domínio de uma estética própria da televisão, inspirada no melhor que podemos ver em séries internacionais.
Independentemente da importância das revelações substantivas proporcionadas neste trabalho de Pedro Coelho, que outros mais conhecedores já analisaram, assinalo outras vertentes que contribuem para tornar este conjunto de reportagens um marco na história da televisão portuguesa.
O fio condutor das reportagens são documentos internos do Banco de Portugal que uma “fonte-mistério” deu ao jornalista. Os dois primeiros episódios começam com um diálogo entre o jornalista e essa “fonte-mistério”, representada por uma voz e uma figura feminina, ambos filmados de costas caminhando ou captados de frente a grande distância de modo a não ser possível identificar o rosto da figura que representa a “fonte-mistério”.
A “fonte-mistério” acompanha o jornalista nos três episódios e constitui juntamente com o próprio jornalista quer como narrador quer em off ou em intervenções directas e em curtas entrevistas a alguns participantes, uma das grandes inovações desta reportagem.
Desde o início do primeiro episódio o jornalista faz questão de salientar o papel da “fonte-mistério” que lhe “fez chegar às mãos” os documentos que constituem a substância da reportagem. Ao contrário do que é frequente, o jornalista não esconde a fonte nem usou a velha frase “A SIC sabe…” ou  “A SIC teve acesso…”.  Pelo contrário, na terceira reportagem revela que a “fonte-mistério” tem “mais de três décadas no Banco de Portugal”.

Pedro Coelho participou ao longo da semana em que os episódios fioram exibidos em debates sobre o seu trabalho. Mas foi no programa Expresso da Meia-Noite, da SIC Notícias, que o jornalista  foi mais longe no desejo de tornar transparente o seu trabalho. Questionado por Nicolau Santos sobre ter sido ele, Pedro Coelho, um jornalista que não é da área de economia, a receber tão importante e vasta documentação de uma instituição tão fechada como o BdP,  Pedro Coelho afirmou sem qualquer hesitação que não conhece o BdP e que foi “por interposta pessoa”, alguém que quis dar aqueles documentos a uma televisão, que  esta história lhe “caíu no colo” sendo ele o escolhido devido, presume,  a trabalhos anteriores que fez sobre, o BPN e o BANIF .
O trabalho de Pedro Coelho e o debate subsequente que suscitou mostram também que a sua “fonte-mistério” percebeu que teria de ser um jornalista sem relações próximas e confidenciais nem cumplicidades com a administração do Banco a receber e a tratar tão importante e explosiva documentação. Percebeu também que a televisão seria o meio mais capaz de levar ao grande público, de maneira atraente, concisa e persuasora, matérias que num jornal se perderiam em páginas e páginas que só os iniciados leriam na íntegra. A escolha do jornalista Pedro Coelho foi também para a “fonte-mistério” uma escolha sem riscos, dadas as garantias de seriedade e profissionalismo do citado jornalista.
A reacção do governador do BdP ao pedir para ir ao Parlamento esclarecer todos os pontos da reportagem revela o incómodo causado pelo trabalho do SIC e pelas revelações da “fonte-mistério”.
Imagino que o BdP não resistirá a uma caça às bruxas para encontrar a “fonte-mistério”.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O património de apenas oito homens é igual ao de metade mais pobre do mundo

Apenas 8 pessoas detêm património equivalente a mais de metade da população mundial


PUBLICADO EM 14/02/2017


No relatório recente publicado em Janeiro último pela OXFAM sobre a situação atual das desigualdades no mundo, conclui-se que: “novas estimativas indicam que o património de apenas oito homens é igual ao de metade mais pobre do mundo”.
O presente relatório relembra a preocupação geral em torno das desigualdadesidentifica as causas para a mesma, os argumentos que sustentam as desigualdades e aponta potenciais vias para reverter a atual situação.
Em 2012, no Fórum Económico Mundial, o aumento da desigualdade económica foi apontado como uma grande ameaça à estabilidade social, mais tarde, o Banco Mundial vinculou como objetivo erradicar a pobreza e a necessidade de promover uma prosperidade partilhada. Já em 2016, Barack Obama no seu discurso de despedida na Assembleia Geral da ONU referiu que “um mundo no qual 1% da população controla a riqueza equivalente à dos restantes 99% nunca será estável”. Perante este cenário, o relatório aponta como efeito do não combate à desigualdade a possibilidade de desintegração das sociedades, o aumento da criminalidade e a falta de esperança.
Como causas para a desigualdade, foram identificadas alguns factos, como as empresas estão atualmente a trabalhar para os mais ricos, onde segundo estimativas da Oxfam, as 10 maiores empresas mundiais tiverem entre 2015 e 2016, tantos lucros como o equivalente ao PIB de 180 países. Outro fator que explica o nível de desigualdade verificado prende-se com o facto de serem sacrificados os trabalhadores e os fornecedores, onde por exemplo, na India, o diretor executivo da maior empresa de informática recebe 416 vezes mais do que a média dos funcionários. A evasão fiscal é outro fator apontado. O super-capitalismo dos acionistas também contribui para o aumento das desigualdades, onde no Reino Unido, em 1070, 10% dos lucros eram distribuídos pelos acionistas, e em 2016 essa percentagem passou para os 70%. Os lobbies, ou capitalismo de camaradagem ajuda a justificar a desigualdade, principalmente pela via da manutenção destas posições privilegiadas, mantendo influência nas regulações e políticas públicas nacionais e internacionais. O papel dos super-ricos na crise das desigualdades e ainda a competição entre países para a atração de investimento criando benefícios fiscais são ainda apontados como causas para as desigualdades existentes.
São expostos no relatório 6 argumentos/premissas teóricas que alimentam e impulsionam a economia pensada para os 1% mais ricos. A lista das seis falsas premissas é a seguinte:
1.    O mercado está sempre certo e o papel dos Governos deve ser minimizado;
2.    As empresas precisam de maximizar os seus lucros e retornos para os acionistas a todo o custo;
3.    A riqueza individual extrema é benéfica e um sinal de sucesso, e a desigualdade não é relevante;
4.    O crescimento do PIB deve ser o principal objetivo da formulação de políticas;
5.    O nosso modelo económico é neutro em relação ao género;
6.    Os recursos do nosso planeta são ilimitados;
Para sustentar esta lista de argumentos, a Oxfam no relatório destaca três intervenções, Robert Kennedy, em 1968 afirmou que “O PIB mede tudo, exceto o que faz a vida valer a pena”, já a declaração da responsabilidade do FMI – Fundo Monetário Internacional diz que “Em vez de gerar crescimentos, algumas políticas neoliberais aumentam a desigualdade, colocando em risco uma expansão duradoura”, por fim Charlotte Perkin Gillman afirma que “É impossível melhorar o mundo com tantas pessoas mantidas no fundo”.
            Ainda no relatório, são apontados oito bases sólidas de construção de uma economia humana:
1.    Os Governos trabalharem para os 99%;
2.    Os Governos cooperarem, ao invés de competirem;
3.    As empresas trabalharem em beneficio de todos;
4.    A extrema riqueza será eliminada para que a extrema pobreza possa ser erradicada;
5.    A economia funcionar a favor de homens e mulheres igualmente;
6.    A tecnologia ser colocada ao serviço dos 99%;
7.    A economia ser movida por energias renováveis sustentáveis;
8.    O que realmente importa ser valorizado e mensurado.
É ainda, nesta matéria, deixado um aviso pelo relatório, que devemos e podemos construir uma economia humana antes que seja tarde demais.
Por: Pedro Perdigão 



In https://observatorio-das-desigualdades.com/2017/02/14/relatorio-oxfam-uma-economia-para-os-99/

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Hanna Arendt explica Trump



Por que se recorre a Hannah Arendt para explicar Trump e não só ele. O mundo esta prestes a reproduzir os processos sociais magistralmente analisados por Hanna Arendt no clássico “As origens do totalitarismo”.
O clássico de George Orwell “1984” não é o único que está celebrando o retorno: o ensaio filosófico “As origens do totalitarismo” também vem chamando atenção. Entenda por que a autora é tão relevante.
De origem judaica, Hannah Arendt (1906-1975) nasceu na Alemanha e deixou o país quando Adolf Hitler assumiu o poder em 1933. Ela passou um período como refugiada apátrida na França e foi deportada para um campo de internamento sob o regime Vichy. Em 1941, Arendt emigrou para os EUA, assumindo mais tarde a cidadania americana.
Tendo vivenciado de perto o quase colapso de uma civilização avançada, ela também se tornou uma das primeiras teóricas políticas a analisar como o totalitarismo pôde se desenvolver no início do século 20. As raízes do nazismo e do stalinismo estão descritas em seu primeiro grande livro, As origens do totalitarismo, publicado originalmente em inglês em 1951.
Desde então, o livro se tornou leitura obrigatória para muitos estudantes, e agora a densa obra política de mais de 500 páginas se tornou um best-seller. Ele tem voado das prateleiras americanas desde que Donald Trump subiu ao poder no país. Esses novos fãs de Arendt estão, presumivelmente, tentando entender para onde pode levar a presidência do republicano.
“Na compreensão de Hannah Arendt, Trump não é um totalitário; ele incorpora o que ela chama de ‘elementos’ do totalitarismo”, explicou recentemente à DW Roger Berkowitz, professor e chefe do Centro Hannah Arendt de Política e Humanidade no Bard College em Nova York.
Berkowitz disse, no entanto, que fortes sinais de alerta não devem ser ignorados: “Arendt acreditava que um dos elementos centrais do totalitarismo é que ele é baseado num movimento (…) e Trump afirmou explicitamente que seria o porta-voz de um movimento. Essa é uma posição muito perigosa para um político.”
Soluções fáceis em tempos de ansiedade mundial
A análise de Arendt se concentra sobre os acontecimentos do período em que viveu. Embora as suas observações não possam explicar, obviamente, tudo sobre os complexos desenvolvimentos políticos de hoje, muitas delas ainda são bastante reveladoras: o populismo de direita a se espalhar pela Europa e EUA é uma reminiscência, em diferentes formas, da situação nos anos 1920 e 1930 que permitiu que nazistas e comunistas subissem ao poder.
Os livros de Arendt proporcionam uma visão sobre os mecanismos que levam tantas pessoas a aceitar prontamente mentiras, em tempos de incerteza global. Enquanto grandes jornais, como o New York Times e Washington Post, estão resgatando os escritos da filósofa, os usuários nas redes sociais compartilham amplamente frases como esta de As origens do totalitarismo:
“Num mundo incompreensível e sempre em mutação, as massas chegariam a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditariam em tudo e nada, pensariam que tudo seria possível e nada seria verdade.”
Narrativas simplificadas, repetidas
Em tal contexto, narrativas simplificadas, repetidas – e falsas –, que põem a culpa em bodes expiatórios e oferecem soluções fáceis, têm preferência sobre análises mais profundas que levam a opiniões informadas. Essa abordagem foi aplicada por líderes totalitários como Hitler, escreveu Arendt.
Neste sentido, não é nenhuma novidade a estratégia de Trump de colocar a culpa generalizada em muçulmanos e mexicanos pelo terrorismo, crime ou desemprego, e reivindicar um veto de viagem ou um muro como uma solução fácil.
Segundo Arendt, no início do século 20, os líderes totalitários basearam a sua propaganda nesta suposição explicitada em As origens do totalitarismo: “Pode-se fazer com que as pessoas acreditem em determinado dia nas mais fantásticas declarações, e esperar que, no dia seguinte, elas se refugiem no cinismo ao receber provas irrefutáveis da falsidade dessas afirmações; em vez de abandonar os líderes que mentiram para elas, as pessoas iriam clamar que sabiam o tempo todo que a declaração era uma mentira e admirariam os líderes por sua esperteza tática superior.”
Agora, Trump eleva essa abordagem a novos extremos. Mesmo que nunca tenha havido tantas pessoas dedicadas a expor as mentiras do novo presidente americano, a astuta tática presidencial é fazer com que tais relatos sejam desacreditados como vindos da mídia tradicional e “desonesta”. Atualmente, as crenças do movimento liderado pelo magnata são apoiadas por fontes alternativas amplamente disponíveis.
Em 1974, Hannah Arendt declarou em entrevista: “Se todo mundo sempre mentir para você, a consequência não é que você vai acreditar em mentiras, mas sobretudo que ninguém passe a acreditar mais em nada.”
A “banalidade do mal”
Num relato de Arendt, de 1961, sobre o julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto, ela ganhou fama com a expressão “a banalidade do mal” ao descrever o seu ponto de vista que a maldade poderia não ser algo tão radical quanto se espera.
Em seu livro Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, Arendt explica como crimes foram cometidos por pessoas que obedeciam a ordens cegamente, para estar em conformidade com as massas. “Há uma estranha interdependência entre a irreflexão e o mal”, escreveu a filósofa em seu clássico.
A definição de irreflexão elaborada num primeiro trabalho publicado em 1958, A condição humana, poderia muito bem ter sido escrita para descrever as ordens executivas assinadas apressadamente por Trump, como também os seus esforços para justificá-las: “Irreflexão – a imprudência negligente ou desesperançada confusão ou repetição complacente de ‘verdades’ que se tornaram triviais e vãs – parece ser uma das características mais notáveis de nosso tempo.”
Desobediência civil
Claro, tais citações fora de seu contexto podem ser fáceis e confortáveis de compartilhar online, mas elas não refletem a totalidade das ideias de Arendt. Da mesma forma, aqueles que quiserem encontrar todas as respostas em As origens do totalitarismo estão fadados a se decepcionar.
Não foi Arendt quem escolheu o título, mas seu editor. Segundo Berkowitz, ela acreditava que o mundo era complexo e confuso demais para se identificar as raízes do totalitarismo.
Ao revisitar os escritos de Arendt, tentando impossivelmente prever se seremos tomados por novas formas de totalitarismo no futuro, pode-se encontrar consolo em outras observações da filósofa: ela considerava a desobediência civil uma parte essencial do sistema político americano – e os fortes movimentos de protesto atualmente no país demonstram isso novamente. Como na famosa frase da escritora: “Ninguém tem o direito de obedecer.”
in http://www.revistaprosaversoearte.com/por-que-se-recorre-hannah-arendt-para-explicar-trump/

sábado, 22 de outubro de 2016

Ainda sobre os incêncios



Incêndios de hoje e palavras de anteontem


Eu sei que ninguém terá paciência para ler um post com esta extensão e ainda por cima referente a declarações feitas feitas em 2003. Mas lembrei-me de como, ao ouvir as notícias e comentários sobre a tragédia em curso dos incêndios, se sentirá, o meu camarada Agostinho Lopes que, ao longo de anos e anos, na AR e fora dela, se pronunciou dezenas de vezes com rigor e qualificação (é só consultar o Google ou a página do PCP) sobre as questões estruturantes que rodeiam este problema. Naturalmente que muita coisa se terá passado depois de 2003 mas não fica mal dar este testemunho de há 13 anos. Aguenta, Agostinho, é nossa sina ser preciso passar muito tempo para, de vez em quando, nos darem razão.


A pequena propriedade florestal, bode expiatório da política agro-florestal de direita
Causas e responsabilidades políticas

O ano de 2003 fica assinalado, infelizmente, pela pior tragédia de que há memória em matéria de fogos florestais: 423 949 hectares de área ardida, valor nunca antes atingido, dos quais 86% foram grandes incêndios; 20 mortos; mais de 5 mil agricultores atingidos; aldeias devastadas pelas chamas; edifícios e patrimónios, culturas e animais destruídos; centenas de postos de trabalho liquidados.Perante a tragédia, para lá das medidas de urgência de resposta aos problemas mais imediatos, a primeira tarefa de qualquer governo, seria a procura e identificação séria, rigorosa, objectiva, das causas do acontecido, do que falhou no combate aos incêndios, da determinação das responsabilidades políticas – determinação dos erros e omissões das políticas agro-florestais, do aparelho do Estado que tutela aos áreas florestais, etc..Ora, não é isso que vem sendo feito desde o passado mês de Setembro. Bem pelo contrário. Ao que temos assistido é ao desenvolvimento de uma estratégia mistificadora sobre o assunto e com objectivos políticos bem claros (embora em alguns casos ainda não suficientemente explicitados): a desresponsabilização do Governo PSD/CDS-PP e da política da direita pela tragédia ocorrida no Verão de 2003.Três decisões governamentais são particularmente relevantes e significativas nessa estratégia de manipulação e mistificação políticas das causas, das responsabilidades políticas e na decisão sobre as medidas a tomar: a nomeação do eng. João Soares para a recuperada Secretaria de Estado das Florestas (9 de Outubro de 2003); a publicitação do Livro Branco do Ministério da Administração Interna (15 de Outubro de 2003); a Resolução do Conselho de Ministros de 30 de Outubro de 2003.A indicação do eng. João Soares para a coordenação governamental da política florestal é uma peça central da estratégia do Governo. Com um currículo que não deixa lugar a dúvidas, e se dúvidas houvesse, as suas últimas intervenções públicas esclarecem em definitivo as suas opções e a sua estratégia para a floresta portuguesa.Com a sua nomeação, os grupos industriais (celuloses, aglomerados, cortiça, etc.) que monopolizam a fileira florestal, vêem (certamente com agrado) fechado um importante triângulo de amigos no Poder: Sevinate Pinto no Ministério da Agricultura, Álvaro Barreto na Comissão de Agricultura da Assembleia da República, e agora João Soares, o todo poderoso coordenador da tutela do Governo na floresta portuguesa.Para esses grupos, é claro, a floresta é fundamentalmente, se não exclusivamente, um produtor de matéria-prima, que deve estar acessível em quantidade e qualidade e a baixo preço, para abastecimento das suas indústrias. É disso que trata a estratégia florestal posta em marcha por João Soares e o Governo PSD/CDS-PP.Para João Soares, a causa principal para a existência de incêndios florestais é a ausência de uma gestão profissional da floresta. Di-lo de forma explícita: «A questão fulcral da actual floresta portuguesa é a ausência de uma gestão activa e profissional. Sem ela, os espaços florestais estão abandonados e apenas são objecto de uma exploração “mineira”. Com esta situação vem o maior risco e a maior susceptibilidade ao fogo e nunca é possível gerar as mais valias associadas às (ausentes) práticas técnicas de gestão.». (Expresso, 18 de Outubro de 2003)E porque é que não há a tal gestão profissional da floresta»? Resposta de João Soares: porque «(...) a gestão florestal exige uma área mínima de intervenção silvícola. É por isso que importa garantir essa área mínima (...).»! Logo, a actual estrutura minifundiária, dominante na propriedade florestal em Portugal, é de facto a razão primeira para os fogos florestais e outros males decorrentes da actual ausência da tal gestão florestal «profissional e activa»!O Livro Branco sobre os incêndios florestais é outra peça significativa, pela sua origem, pelo que diz e pelo que não diz sobre a matéria que é o seu objecto. Em primeiro lugar, é apenas um livro branco sobre as operações de combate aos incêndios florestais. E já diz muito sobre a táctica governamental, o confinar a sua elaboração ao Ministério da Administração Interna, afastando o Ministério da Agricultura dessa abordagem.O Governo, que desde o início tentou minimizar a dimensão da tragédia, não fez no Livro Branco qualquer hierarquização ou abordagem profunda das causas dos incêndios, limitando-se a uma amálgama onde mistura alhos com bugalhos, e de onde resulta o excessivo relevo dado aos fenómenos climatéricos. A Resolução do Conselho de Ministros sobre uma alegada «Reforma Estrutural do Sector da Floresta», e a consequente criação no Orçamento do Estado para 2004 de um Fundo Florestal Permanente, são a terceira peça da resposta do Governo à tragédia dos incêndios e aos problemas das matas portuguesas.Reproduzindo as teses do secretário de Estado João Soares, a Resolução atribui à «ausência de gestão florestal» e ao «excessivo parcelamento fundiário» (a par dos «desequilíbrios na constituição dos povoamento», do «desordenamento da sua implantação» e do «abandono a que se encontram votadas extensas áreas florestais»), as razões centrais dos incêndios. Igualmente se releva na determinação dos «quatro estrangulamentos principais» do sector: «a estrutura da propriedade» (a par da «descoordenação da acção pública sobre a floresta», da «complexidade dos actos e procedimentos de acesso aos financiamentos públicos», e da «elevada taxa de risco associada aos incêndios»). A evidente utilidade política das análises e soluções do Governo PSD/CDS-PPA tese do secretário de Estado das Florestas e do Governo PSD/CDS-PP de que a causa dos incêndios florestais em Portugal (e valeria a pena reflectir sobre o problema em outras paragens) resulta da ausência de gestão profissional das áreas florestais, e de que não há gestão, dada a dominância da pequena propriedade/estrutura minifundiária, na estrutura fundiária florestal do País, tem uma evidente oportunidade e utilidade políticas.Perante a comoção colectiva que varreu o País durante o Verão, desresponsabiliza-se inteiramente o actual Governo e a política agro-florestal de direita de sucessivos governos do PSD, PS e a cumplicidade mais ou menos activa do CDS-PP, e apaga-se a causa principal da tragédia. E aproveitando a disponibilidade da opinião pública portuguesa, avança-se com soluções que em outras ocasiões se mostraram inviáveis ou saíram goradas pela luta das populações rurais.Aquela tese – responsabilizando a pequena propriedade e o pequeno proprietário pelo abandono das matas e bouças – absolve este e outros governos por políticas agro-florestais e não só, que desertificaram e desertificam o mundo rural e o interior do País, que retiraram coerência produtiva e ambiental à simbiose terras de cultivo/pecuária/matas ou bouças metas das explorações agrícolas familiares do Norte e Centro do País, que prosseguiram, praticamente desde o 25 de Abril, uma política atentatória da Constituição e de rotura com os compartes dos baldios, impedindo que estes utilizassem plenamente o acesso aos fundos comunitários, tudo fazendo para boicotar a sua autogestão.Aquela tese – responsabilizando a pequena propriedade – desresponsabiliza o Governo pela falta de ordenamento da floresta portuguesa. No entanto, é sabido que a Lei de Bases da Política Florestal foi aprovada em 1996, mas que os governos (PS e PSD/CDS) não a puseram em prática, inclusive não disponibilizando os meios orçamentais e humanos necessários, não promoveram a elaboração dos Planos Regionais de Ordenamento Florestal (PROF) e Planos de Utilização dos Baldios (PUB), não executaram as medidas de emergência nela inscritas para o combate aos fogos, não criaram o fundo financeiro previsto, só o fazendo agora e em condições profundamente questionáveis.Aquela tese – responsabilizando o pequeno proprietário florestal e os compartes dos baldios pela pouca ou nenhuma viabilidade económica da floresta portuguesa – pretende fazer esquecer as responsabilidades de sucessivos governos por uma política de comercialização das madeiras inteiramente nas mãos e conforme os interesses das celuloses, dos aglomerados e outras indústrias grandes consumidoras, quer pela política de preços, quer pela política de liberalização das importações. (Quem ouvir o secretário de Estado pode julgar que ao longo dos últimos anos os pequenos produtores florestais retiraram grossas maquias das suas pequenas parcelas de floresta, quando se sabe que a venda de madeira não dá qualquer rendimento significativo aos seus produtores directos, grandes e pequenos, e que o grosso do valor acrescentado da fileira tem sido apropriado pelos grandes intermediários madeireiros, e sobretudo pelas empresas transformadoras. Ou não se sabe que o preço do eucalipto está praticamente congelado desde 1996?! Ou que o duo Portucel/Soporcel domina 60% do mercado nacional de madeira?!)Aquela tese – responsabilizando o pequeno proprietário florestal pela ausência de gestão profissional da floresta – procura passar uma esponja sobre a responsabilidade do Estado (e de sucessivos governos) como co-gestor técnico dos baldios, procurando fazer-nos esquecer que, ao não cumprir o seu papel de gestor técnico nos cerca de 400 mil hectares de mata dos baldios, se tem traduzido na degradação e abandono dessa floresta, a venda desvalorizada da sua produção lenhosa e outros subprodutos na não afectação de apoios comunitários, e consequente perda de mais valias geradas no sector. Ou que o Estado se tem limitado, em geral, a sacar a parte que lhe compete das receitas (e às vezes até a parte dos compartes) para as gastar nas despesas decorrentes do aparelho do Ministério da Agricultura, em vez de o investir na floresta.Aquela tese – a da responsabilidade do pequeno proprietário pelo estado a que chegou a floresta portuguesa – pretende fazer esquecer as políticas do Estado mínimo, que dentro da boa filosofia neoliberal sucessivos governos vêm aplicando à estrutura do Ministério da Agricultura virada para a floresta, liquidando a extensão florestal, reduzindo os serviços regionais ao osso, liquidando paulatinamente o número de guardas florestais (privatizando algumas das suas funções, como no caso da caça), contendo ou reduzindo os meios de vigilância e fiscalização para as brigadas de sapadores entretanto criadas, em particular dificultando ao máximo a mobilidade dos quadros e profissionais existentes. Isto sem, agora e aqui, nos referirmos aos processos de corrupção verificados na aplicação dos fundos comunitários e no ordenamento da caça, até hoje sem esclarecimento à vista!Aquela tese é também partilhada pelo PS, e percebe-se bem porquê.Prosseguindo, agora na oposição, a política florestal do ex-governo de António Guterres e do então ministro da Agricultura Capoulas Santos, o Grupo Parlamentar do PS avançou recentemente com um Projecto de Lei que, independentemente da sua bondade técnica e política, refere no seu preâmbulo o seguinte: «A estrutura de propriedade florestal que a história nos legou tem constituído e constitui o principal constrangimento à gestão activa e profissional de uma parte significativa da floresta nacional e, por consequência, a maior limitação à optimização do aproveitamento das potencialidades sociais, económicas e ambientais do importante recurso natural que é a floresta, para além de representar um factor determinante para a propagação dos incêndios.»Nada distingue esta análise da que é referida pelo actual secretário de Estado do Governo PSD/CDS-PP, com uma pequena diferença: o eng. João Soares quer que «as propriedades florestais sejam geridas de forma profissional e activa»; o PS pretende uma gestão activa e profissional!Mas a questão central é que aquela tese é rotundamente falsa e só pode ser erigida em pedra angular de uma política florestal por quem tem culpas no cartório, e sobretudo por quem pretende justificar e desenvolver soluções identificadas com os interesses dos grandes proprietários florestais, e com os grandes grupos industriais que exploram a matéria-prima lenhosa da floresta portuguesa. Ou ainda dos que vêem as potencialidades e possibilidades de especulação imobiliária nas áreas de floresta localizadas junto dos aglomerados urbanos. Dos que pretendem intencionalmente contrapor como antagónicas a fragmentação da propriedade florestal em pequenas e médias dimensões à boa gestão e ao ordenamento florestal.Sublinhe-se, tanto quanto se sabe, a grande propriedade florestal, mesmo de áreas contíguas, do País em geral e do Norte e Centro em particular, não é propriamente sinónimo de boa gestão e ordenamento, e não tem sido mais poupada que as pequenas à praga dos incêndios. E tal sem ignorar que, sendo verdade apenas 1% das explorações ter cem ou mais hectares, contudo a concentração da superfície florestal nas grandes explorações é notória, dispondo 1% das explorações de 55% da superfície florestal total (Estudo do Plano de Desenvolvimento Sustentável da Floresta Portuguesa).Porque arderam extensas áreas de montados de sobro no Verão, na área da grande propriedade alentejana e ribatejana? Para não falar de algumas áreas geridas pelas celuloses!Porquê significativas e extensas áreas de floresta (dimensões de milhares de hectares) onde o Estado tem particulares responsabilidades, como nas já citadas áreas baldias ou nas matas nacionais (ardeu este ano 20-25% do Pinhal de Leiria), ou nas áreas protegidas (parques naturais, por exemplo S. Mamede e Peneda-Gerês) o flagelo dos fogos tem igual e fortemente assolado, se não neste Verão, claramente em anos anteriores?O argumento da pequena propriedade é falso, e só pode pretender esconder incompetências, incapacidades e erros de sucessivas políticas. E, fundamentalmente, para justificar soluções adequadas aos interesses do grande capital. As soluções do Governo PSD/CDS-PP têm apenas um mérito: são coerentes com as análises efectuadasA responsabilidade é da pequena propriedade florestal, da estrutura minifundiária? Abata-se a pequena propriedade. A responsabilidade é do pequeno proprietário florestal? Exproprie-se o pequeno proprietário florestal. A culpa é dos compartes dos baldios? Extingam-se os seus direitos seculares – o uso, posse e fruição das terras baldias – e entregue-se a sua gestão aos privados. A culpa é do mau funcionamento dos serviços florestais do Estado? Privatizem-se esses serviços e entreguem-se as suas missões, atribuições e competências a empresas privadas.«Privatizem-se» a pequena propriedade privada e as terras baldias a favor de quem as saiba gerir de forma activa e profissional: os privados que têm dimensão e são capazes de uma «gestão profissional activa», os que são capazes de viabilizar economicamente a floresta portuguesa. Os que produzirão a matéria-prima lenhosa de que as indústrias da fileira necessitam.Para isso, contem com os dinheiros públicos e a força coerciva do Estado.Dinheiros dos contribuintes, tais como o imposto sobre os combustíveis, os fundos comunitários e nacionais, as receitas que cabem ao Estado da gestão dos baldios, as receitas dos instrumentos fiscais criados para a «penalização do fraccionamento e do abandono da propriedade florestal»! A força coerciva do Estado para elaborar e fazer aplicar «os instrumentos regulamentares e fiscais que se mostrarem adequados», por exemplo «preparação expedita de processos de expropriação de espaços», para «induzir e fomentar de forma enérgica» um «processo de reestruturação fundiária das explorações florestais». Não haja dúvidas, o sr. secretário de Estado das Florestas o disse, e mais que uma vez: «(...) é preciso ter a coragem de admitir que muitos dos actuais proprietários florestais terão de abdicar de sê-lo ou, no mínimo, terão de passar a terceiros a gestão dos seus espaços silvícolas». (Expresso, 18 de Outubro de 2003, Intervenção em Seminário da CNA na Guarda).As soluções avançadas pelo Governo PSD/CDS-PP são à medida dos grandes interesses económicos ligados à floresta e até do capital financeiro.As medidas agora propostas pelo Governo não são propriamente nenhuma novidade. Elas tinham sido avançadas pelo grande capital da fileira num Estudo independente(?!) preparado para a Portucel, Sonae, Soporcel e CAP pelo BPI, AGRO.GES e JAAKKO POYRY, de Novembro de 1996, onde, na avaliação das «insuficiências da produção florestal», surgem como questões essenciais «uma insuficiente ocupação de solos com vocação florestal; uma estrutura da propriedade inadequada (...)».Mais recentemente, a Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal (AIMMP)recordou, em Agosto último, em carta dirigida ao primeiro-ministro, o documento entregue a Durão Barroso durante o período eleitoral «Fileira Florestal – Proposta de Intervenção Urgente», e subscrito pela referida AIMMP e pelas suas congéneres das subfileiras da cortiça (APCOR) e da papeleira/celulose (CELPA). Documento onde diz o mesmo que o Estudo acima referido e as teses do secretário de Estado das Florestas.Podemos assim dizer que a dita Resolução do Conselho de Ministros é também o cumprimento de uma promessa eleitoral. Um cumprimento tardio, mas os incêndios só foram no Verão de 2003... Outra visão, outros caminhos para a floresta portuguesa – as respostas do PCPÉ com autoridade política de uma continuada, coerente e rigorosa intervenção e proposta sobre a matéria, e feita não ao ritmo do impacto mediático dos fogos florestais, que o PCP critica e contesta a falsificação e os eixos centrais das propostas do Governo, mesmo que se avaliem positivamente alguns dos seus aspectos, que, no essencial, pretendem afastar pequenos proprietários e produtores e compartes dos baldios da intervenção e exploração das suas áreas florestais, despovoando ainda mais os espaços florestais, substituindo-os, através de uma política de concentração da propriedade nas mãos de grandes empresas florestais e das celuloses.Continuamos a insistir como questões estruturantes e centrais:– A aplicação da Lei de Bases da Política Florestal e o consequente Plano de Desenvolvimento Sustentável da Floresta Portuguesa para a concretização do necessário e inadiável ordenamento da floresta e áreas florestais do País, com uma forte participação dos proprietários e compartes, e no respeito pelas soluções constitucionais do associativismo e do emparcelamento para os problemas da pequena propriedade florestal. – Uma única Autoridade Florestal Nacional (cujas atribuições eram assumidas pela Direcção-Geral das Florestas, hoje baptizada Direcção-Geral dos Recursos Florestais), mas dotada dos meios financeiros, humanos e capacidades técnicas que lhe permita cumprir as suas missões e funções. – Disponibilização de meios técnicos e financeiros para as medidas de redução do material combustível da floresta, sobretudo o que resulta da não limpeza das matas e do subproduto dos cortes. – Na área do combate, importa complementar o heróico esforço dos bombeiros voluntários com a participação efectiva de técnicos florestais e corpos profissionais especializados no combate aos fogos florestais, colocados com o respectivo material nos pontos mais sensíveis e de risco da floresta. Refira-se que as dotações do Orçamento do Estado para 2004 do Ministério da Administração Interna para alguns destes objectivos não correspondem ao discurso governamental sobre o reforço dos meios para o combate.

Sobre os incêndios florestais e a anunciada política florestal do Governo
Declaração de Agostinho Lopes, da Comissão Política do PCP

3 Dezembro 2003

in http://otempodascerejas2.blogspot.pt/2016/08/a-nossa-sina.html

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

O Neoliberalismo é um fascismo

Manuela Cadelli, presidente da Associação Sindical dos Magistrados belgas


O liberalismo foi uma doutrina produzida da filosofia das Luzes, tanto politica como económica, que tinha como objectivo impor ao Estado a distância necessária para o respeito das liberdades e o começo das emancipações sociais. Ele foi o motor do nascimento e da ascensão das democracias ocidentais. O neoliberalismo é essa economia total que ataca cada esfera das nossas sociedades a qualquer instante da nossa época. É um extremismo.
O fascismo define-se como a sujeição de todos os elementos que compõem um Estado a uma ideologia totalitária e niilista.
Eu afirmo, que o neoliberalismo é um fascismo porque a economia sujeitou os governos dos países democráticos, como também cada um dos fragmentos do nosso pensamento.
O Estado, está agora ao serviço da economia e da finança, que o tratam como um subordinado, explorando-o até ao ponto de por em risco a preservação do bem comum.
A austeridade tão desejada nos meios financeiros transformou-se num valor superior que substituiu a política. Sucede que “fazer poupanças” tornou-se uma maneira de evitar qualquer outro objectivo público. O princípio da ortodoxia orçamental é de tal ordem, que quer mesmo que seja inscrito na Constituição dos Estados. A noção de serviço público é ridicularizada. O niilismo que agora decorre permitiu mesmo anular o universalismo e os valores humanos mais importantes: solidariedade, fraternidade, integração e o respeito de todos pelas diferenças. Até mesmo a economia clássica tem dificuldades em se realizar. O trabalho era antes um factor de procura e por isso os trabalhadores eram respeitados; a finança internacional fez do trabalho uma variável simples de ajustamento.
Deformação do real
Todo o totalitarismo é primeiro uma desvirtuação da linguagem e assim, como no romance de Georges Orwel, o neoliberalismo tem a sua novilíngua e os seus elementos de comunicação permitem deformar o real. Assim, qualquer corte orçamental releva actualmente da modernização dos factores atingidos. Os mais necessitados deixam de poder pagar cuidados de saúde e renunciam ir ao dentista? Esta é a modernização da Segurança Social. A abstracção domina o discurso público para evitar as implicações sobre o ser humano. Assim, tratando-se de refugiados, torna-se imperativo que o seu acolhimento não crie novas despesas que as nossas finanças não possam assumir. Como acontece com certas pessoas classificadas de “assistidas” porque dependem da solidariedade Segurança Social.
Culto da avaliação
O darwinismo social domina e obriga todos e cada um às mais severas prescrições em matéria de performance: enfraquecer é falhar. Os nossos fundamentos culturais são subvertidos: todo o postulado humanista é desclassificado ou desmonetarizado porque o neoliberalismo tem o monopólio da racionalidade e do realismo. Margareth Thatcher indicou-o em 1985: “Não há alternativa”. Tudo o resto é mera utopia, irracionalidade e regressão. As virtudes do debate e da conflitualidade são por isso desacreditadas, uma vez que a História é regida por um imperativo de necessidade.
Esta sub-cultura oculta uma ameaça existencial que lhe é própria. A ausência de performance condena ao desaparecimento, e ao mesmo tempo cada um é acusado de ineficácia e constrangido a justificar-se por tudo. A confiança foi quebrada. A avaliação reina, e com ela a burocracia que impõe a definição e a procura do excesso de objectivos e de indicadores, aos quais nos devemos conformar. A criatividade e o espírito crítico são oprimidos pela gestão. E cabe a cada um a mea-culpa pelos desperdícios e inercias de que é culpado.
A justiça negligenciada
A ideologia neoliberal produz uma normatividade que faz concorrência às leis do parlamento. Desta maneira o poder democrático do direito fica comprometido. Para evitar a concretização que representa as liberdades e os direitos adquiridos, evitando pela mesma ocasião os abusos que impõem, o direito e o procedimento jurisdicional são a partir de agora encarados como obstáculos. Assim como o poder judiciário, que susceptível de contrariar as linhas deste pensamento deve ser dominado.
Até a justiça belga é sub-financiada; em 2015 ela era a última de um ranking europeu que incluía todos os estados situados entre o Atlântico e os montes Urais. Em dois anos, o governo conseguiu tirar-lhe a independência que a Constituição lhe tinha conferido no interesse do cidadão, para ele poder ter o papel de contra-poder. O projecto é forçosamente este: que deixe de haver justiça na Bélgica.
Uma casta acima de outros
No entanto, a classe dominante não se auto administra a mesma dose que prescreve aos outros cidadãos comuns, porque a austeridade bem gerida começa pelos outros. O economista Thomas Piketty descreveu-o perfeitamente no seu estudo sobre as desigualdades e o capitalismo no século XXI. Apesar da crise de 2008 e as evocações éticas que se seguiram, nada se passou para civilizar os meios financeiros e os submeter às exigências do bem comum. Quem pagou? As pessoas comuns, vocês e eu. E enquanto o Estado belga consentiu em 10 anos prendas fiscais de 7 mil milhões às multinacionais, o cidadão comum viu ser-lhe negado o acesso à justiça, através duma sobretaxa (aumento dos custos de tribunal, e aumento de 21% dos honorários do advogado). A partir de agora, para obter uma indemnização, as vítimas de injustiça têm que ser ricos. Isto num país onde o número de cargos públicos desafia todos os standards mundiais.
Neste sector particular, não existe avaliação nem estudos relativos aos custos de privilégios. Um exemplo: trinta anos depois do federalismo, a instituição provinciana sobrevive sem que ninguém possa dizer para que serve. A racionalização e a ideologia gestora ficaram paradas à porta do mundo político.
O ideal da segurança
O terrorismo, outro niilismo que revela as nossas fraquezas e a nossa cobardia na afirmação dos nossos valores, é susceptível de agravar o processo, permitindo em breve justificar todos os ataques às liberdades, à contestação, com juízes classificados de ineficazes, diminuindo ainda mais a protecção social dos mais necessitados, sacrificada a este “ideal” de segurança.
A salvação por aliança
Este contexto ameaça, sem alguma duvida, os fundadores das nossas democracias, mas por isso mesmo condena ao desespero e desencorajamento? Certamente que não. Há 500 anos, no auge das derrotas que fizeram cair a maior parte dos estados italianos, impondo-lhes uma ocupação estrangeira de mais de três séculos, Nicolas Maquiavel exortava os homens virtuosos a enfrentar o destino e, face à adversidade dos tempos, preferir a acção e a audácia do que a prudência. Por mais que a situação seja trágica, mais ela pede acção e recusa “o abandono”. (O Príncipe, capítulos XXV XXVI).
Essa lição impõe-se de forma evidente à nossa época, na qual tudo parece comprometido. A determinação dos cidadãos profundamente ligados aos valores democráticos constitui um inestimável recurso que, pelo menos na Bélgica, ainda não revelou o seu potencial de mobilização e o poder de modificar o que é inevitável.
Graças às redes sociais e à liberdade de expressão que estas facilitam, cada um pode agora se manifestar particularmente no seio dos serviços públicos, nas universidades, no mundo estudantil, na magistratura e nos tribunais para levar o bem comum e a justiça ao seio do debate público e ao seio da administração do Estado e das comunidades.

O neoliberalismo é um fascismo. Deve ser combatido e um humanismo total deve ser restabelecido.



Texto de Manuela Cadelli, Presidente da Associação Sindical dos Magistrados Belgas, publicado no Le Soir.

Ler o original, em francês, aqui.