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terça-feira, 27 de agosto de 2024

"Caro professor"

 

Foto: Getty Images


Caro professor: compreendo a sua situação. Foi contratado para ensinar uma disciplina e ganha para isso. A escolha do programa não foi sua. Foi imposta. Veio de cima. Talvez tenha ideias diferentes. Mas isso é irrelevante. Tem de ensinar o que lhe foi ordenado. Será julgado pelos resultados do seu ensino – e disso depende o seu emprego. A avaliação do seu trabalho faz-se por meio da avaliação do desempenho dos seus alunos. Se, de uma forma sistemática, os seus alunos não aprenderem, é porque não tem competência.

O processo de avaliação dos alunos é curioso. Imagine uma pessoa que conheça uma série de ferramentas, a forma como são feitas, a forma como funcionam – mas não saiba para que servem. Os saberes que se ensinam nas escolas são ferramentas. Frequentemente os alunos dominam abstractamente os saberes, sem entretanto conhecerem a sua relação com a vida.

Como aconteceu com aquela assistente de bordo a quem perguntei o nome de um rio perto de Londrina, no norte do Paraná. Ela respondeu-me: Acho que é o São Francisco. Apanhei um susto. Pensei que tinha apanhado o voo errado e que estava a chegar ao norte de Minas… Garanto que, numa prova, a rapariga responderia certo. No mapa saberia onde se encontra São Francisco. Mas não aprendera a relação entre o símbolo e a realidade.

É possível que os alunos acumulem montanhas de conhecimentos que os levarão a passar nos exames, sem saber para que servem. Como acontece com os “vasos comunicantes” que qualquer pedreiro sabe para que servem sem, entretanto, conhecerem o seu nome. O pedreiro seria reprovado na avaliação escolar, mas construiria a casa no nível certo. Mas você não é culpado. Você é contratado para ensinar a disciplina.

Cada professor ensina uma disciplina diferente: Física, Química, Matemática, Geografia, etc. Isso é parte da tendência que dominou o desenvolvimento da ciência: especialização, fragmentação. A ciência não conhece o todo, conhece as partes. Essa tendência teve consequências para a prática da medicina: o corpo como uma máquina formada por partes isoladas. Mas o corpo não é uma máquina formada por partes isoladas.

Às vezes, as escolas fazem-me lembrar o Vaticano. O Vaticano, 400 anos depois, penitenciou-se sobre Galileu e está prestes a fazer as pazes com Darwin. Os currículos, só agora, muito depois da hora, estão a começar a falar de “interdisciplinaridade”. “Interdisciplinaridade” é isto: uma maçã é, ao mesmo tempo, uma realidade matemática, física, química, biológica, alimentar, estética, cultural, mitológica, económica, geográfica, erótica…

Mas o facto é que você é o professor de uma disciplina específica. Ano após ano, hora após hora, ensina aquela disciplina. Mas, como ser de dever, tem de fazer de forma competente aquilo que lhe foi ordenado. A fim de sobreviver, faz o que deve fazer para passar na avaliação. A disciplina é o deus a quem você e os alunos se devem submeter. O pressuposto desse procedimento é que o saber é sempre uma coisa boa e que, mais cedo ou mais tarde, fará sentido.

São sobretudo os adolescentes que, movidos pela inteligência da contestação, perguntam sobre o sentido daquilo que têm de aprender. Mas frequentemente os professores não sabem dar respostas convincentes. Para quê aprender o uso dessa ferramenta complicadíssima se não sei para que serve e não vou usá-la? A única resposta é: Tens de aprender porque sai no exame – resposta que não convence por não ser inteligente mas simplesmente autoritária.

O que está pressuposto, nos nossos currículos, é que o saber é sempre bom. Isso talvez seja abstractamente verdade. Mas, nesse caso, teríamos de aprender tudo o que há para ser aprendido – o que é tarefa impossível. Quem acumula muito saber só prova um ponto: que é um idiota de memória boa. Não faz sentido aprender a arte de escalar montanhas nos desertos, nem a arte de fazer iglos nos trópicos. Abstractamente, todos os saberes podem ser úteis. Mas, na vida, a utilidade dos saberes subordina-se às exigências práticas do viver. Como diz Cecília Meireles: O mar é longo, a vida é curta.

Eu penso a educação ao contrário. Não começo com os saberes. Começo com a criança. Não julgo as crianças em função dos saberes. Julgo os saberes em função das crianças. É isso que distingue um educador. Os educadores olham primeiro para o aluno e depois para as disciplinas a serem ensinadas. Os educadores não estão ao serviço de saberes. Estão ao serviço de seres humanos – crianças, adultos, velhos. Dizia Nietzsche: Aquele que é um mestre, realmente um mestre, leva as coisas a sério – inclusive ele mesmo – somente em relação aos seus alunos. (Nietzsche, Além do bem e do mal).

Eu penso por meio de metáforas. As minhas ideias nascem da poesia. Descobri que o que penso sobre a educação está resumido num verso célebre de Fernando Pessoa: Navegar é preciso. Viver não é preciso.

Navegação é ciência, conhecimento rigoroso. Para navegar, são necessários barcos. E os barcos fazem-se com ciência, física, números, técnica. A própria navegação se faz com ciência: mapas, bússolas, coordenadas, meteorologia. Para a ciência da navegação é necessária a inteligência instrumental, que decifra o segredo dos meios. Barcos, remos, velas e bússolas são meios.

Já o viver não é coisa precisa. Nunca se sabe ao certo. A vida não se faz com ciência. Faz-se com sapiência. É possível ter a ciência da construção de barcos e, ao mesmo tempo, o terror de navegar. A ciência da navegação não nos dá o fascínio dos mares e os sonhos de portos onde chegar. Conheço um erudito que tudo sabe sobre filosofia, sem que a filosofia jamais tenha tocado a sua pele. A arte de viver não se faz com a inteligência instrumental. Ela faz-se com a inteligência amorosa.

A palavra amor tornou-se maldita entre os educadores que pensam a educação como ciência dos meios, ao lado de barcos, remos, velas e bússolas. Envergonham-se de que a educação seja coisa do amor-piegas. Mas o amor – Platão, Nietzsche e Freud sabiam-no – nada tem de piegas. O amor marca o impreciso círculo de prazer que liga o corpo aos objectos. Sem o amor tudo nos seria indiferente – inclusive a ciência.

Não teríamos sentido de direcção, não teríamos prioridades. A inteligência instrumental precisa de ser educada. Parte da educação é ensinar a pensar. Mas essa educação, sendo necessária, não é suficiente. Os meios não bastam para nos trazer prazer e alegria – que são o sentido da vida. Para isso é preciso que a sensibilidade seja educada. Fernando Pessoa fala, então, na educação da sensibilidade.

Educação da sensibilidade: Marx, nos Manuscritos de 1844, dizia que a tarefa da História, até então, tinha sido a de educar os sentidos: aprender os prazeres dos olhos, dos ouvidos, do nariz, da boca, da pele, do pensamento (Ah! O prazer da leitura!). Se fôssemos animais, isso não seria necessário. Mas somos seres da cultura: inventamos objectos de prazer que não se encontram na natureza: a música, a pintura, a culinária, a arquitectura, os perfumes, os toques.

No corpo de cada aluno encontram-se, adormecidos, os sentidos. Como na história da Bela Adormecida… É preciso despertá-los, para que a sua capacidade de sentir prazer e alegria se expanda.


in https://contadoresdestorias.wordpress.com/2012/02/19/caro-professor-rubem-alves/

Rubem Alves Gaiolas ou Asas - A arte do voo ou a busca da alegria de aprender

Porto, Edições Asa, 2004 (excertos adaptados)


SISMOS em Portugal. Ainda não aprendemos a lição!

 


"Os governantes estão fartos de ser avisados". Portugal tem um Sistema de Alerta Precoce de Sismos "construído" mas está "em fase de testes" desde 2021

Hoje às 07:00

Não se trata apenas de enviar SMS de alerta como a Proteção Civil já faz quando há risco de incêndios ou de cheias. Sem registo de vítimas nem danos, o sismo da madrugada de segunda-feira, o mais forte a atingir o território continental desde 1969, deixou a descoberto o que ainda está por fazer para o país estar mais bem preparado para um sismo potente, incluindo melhorar as infraestruturas e efetivar o chamado Sistema de Alerta Precoce de Sismos - que começou a ser instalado em 2021 ao largo de Sagres, mas cuja implementação ainda não está concluída

Existem mecanismos para emitir alertas preventivos de sismo, mas Portugal ainda não tem implementados os instrumentos necessários para tal. O sismo de 5,3 de magnitude na escala de Richter que abalou Portugal continental na madrugada desta segunda-feira veio relançar o debate sobre o que falta cumprir para o país estar mais bem preparado para um sismo de grandes dimensões – incluindo a implementação de um Sistema de Alerta Precoce de Sismos (EEWS, na sigla inglesa), que começou a ser instalado há alguns anos no barlavento algarvio, mas que continua por concretizar por “falta de investimento”, indica à CNN Portugal um especialista em risco sísmico.

“Um alerta preventivo seria uma possibilidade se houvesse em Portugal instrumentos para isso, instrumentos que Portugal não tem, aquilo a que chamamos Sistemas de Alerta Precoce, ou Earthquake Early Warning Systems”, diz Francisco Mota de Sá, investigador de risco sísmico do Instituto Superior Técnico (IST). “Já temos esse tipo de avisos para tsunamis, mas não para sismos. Nós quisemos instalar um desses sistemas para sismos, mas as coisas não andaram para a frente porque não havia financiamento.”

Países com elevada atividade sísmica, como o Japão, têm já em vigor os seus próprios Sistemas de Alerta Precoce de Sismos, que conseguem emitir um alerta de risco de tremor de terra entre cinco a 10 segundos antes do abalo. “O Japão tem isso tudo e mais alguma coisa, mal deteta que vai ocorrer um episódio envia imediatamente avisos para os telemóveis, para os media e por aí fora”, explica o engenheiro. “O México também tem, consegue enviar alertas com entre cinco e 10 segundos de antecedência, e os Estados Unidos também têm o seu sistema. Por cá, os governantes estão fartos de ser avisados, muitos dos meus colegas desta área, de várias universidades, já fizeram vários avisos a vários governos e ainda nada aconteceu, ninguém parece interessado…”

Investigadores de riscos sísmicos alertam que Portugal precisa de atualizar infraestruturas e concretizar a implementação do Sistema de Alerta Precoce de Sismos (Getty Images)

Em fase de testes desde 2021

Em março de 2021, a Universidade de Évora anunciava a instalação dos primeiros quatro sismómetros do país a entre 20 e 30 metros de profundidade ao largo de Sagres, no Algarve, para detetar potenciais abalos gravosos, incluindo sismos gerados “na região atlântica adjacente ao território português”, naquela que seria a primeira fase de implementação de um EEWS no país. 

Na altura, a instituição sublinhou em comunicado que a ideia era “capacitar a rede nacional de monitorização sísmica” através da instalação desse sistema de alerta precoce, que viria reforçar os sismómetros já existentes à superfície, um passo que definiu como “fundamental não só para Portugal, mas também para a Europa”. Mas mais de três anos depois, o projeto continua em fase de testes.

“Creio que o Sistema de Alerta Precoce está seguramente em fase de testes, entretanto saí do instituto e perdi o contacto com o projeto, mas sei que está construído, está desenvolvido, e quando se considerar que é fiável será colocado em funcionamento”, garante à CNN Portugal Miguel Miranda, ex-diretor do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). “Num sismo como este, a cerca de 60 quilómetros da costa de Sines, provavelmente não ganhávamos grande coisa com esse sistema, porque um sismo de 5,3 tem um tempo de desenvolvimento curto”, adianta o sismólogo. “Mas num com magnitude de 8 ou mais, que é aquilo que nos aterroriza, já podemos perder logo um quarto de hora na rutura, porque as ondas sísmicas são instantâneas, e com esse Sistema de Alerta Precoce ganhamos uns bons minutos entre sabermos que é um sismo importante e esse mesmo sismo atingir zonas mais críticas.”

Ter um EEWS em vigor permitiria, entre outras coisas, emitir alertas de risco sísmico, à semelhança do que a Proteção Civil já faz quando há risco de incêndios ou de cheias, através do envio automático de mensagens SMS à população. “Pelas nossas contas, conseguiríamos enviar um aviso entre cinco a 10 segundos antes [do sismo]”, explica Francisco Mota de Sá. “Cinco segundos parece pouco tempo mas dá para muita coisa, sobretudo no que toca a sistemas automatizados, por exemplo, dá para interromper processos que envolvem máquinas variadas e que estão a acontecer” quando é emitido o alerta. 

Para Miguel Miranda, o sismo desta madrugada provou que os sistemas de observação sísmica “estão a funcionar muito bem”, mas acima de tudo deve servir para “impulsionar uma melhoria dos sistemas”, nomeadamente concretizar a implementação do primeiro EEWS em Portugal, e adaptar as infraestruturas para que esse sistema seja eficaz. “O sistema de alerta precoce ainda precisa de uma outra coisa, que é infraestruturas preparadas para, por exemplo, de uma forma automática, ligarem geradores de emergência, cortarem pipelines de gás natural, diminuírem a velocidade dos comboios de alta velocidade – infelizmente ainda não os temos, mas quando tivermos, esse sistema será absolutamente essencial.”

"Um sismo no mesmo sítio com magnitude superior a 6 seria diferente"

O sismo desta madrugada, o mais forte a atingir o território continental em mais de meio século, foi localizado com rapidez, mas é incerta a profundidade do seu epicentro. O Serviço Geológico dos EUA fala em 10,7 quilómetros de profundidade, o Centro Sismológico Euro-Mediterrânico refere uma profundidade de cinco quilómetros, a rede nacional sísmica aponta para 19 quilómetros de profundidade. Como refere Francisco Mota de Sá, “normalmente é o IPMA que tem equipamentos para calcular esses dados, mas seria preciso ter uma rede sísmica mais bem montada para conseguir localizar o epicentro de forma mais rápida”.

“Falta precisão e, para isso, precisamos de estações no fundo do mar, e isso não temos, porque é muito caro”, acrescenta Mourad Bezzeghoud, professor catedrático da Universidade de Évora que esteve envolvido no projeto de instalação das quatro estações sísmicas em furos ao largo de Sagres. “Essas quatro estações foram instaladas no âmbito de um projeto europeu, graças aos fundos europeus conseguimos comprar as estações, mas não há investimento a longo prazo do próprio Estado, só a curto prazo, o prioritário é o dia a dia, mas não se olha para o futuro.”

Confirmando que o EEWS português está ainda em fase de testes, Bezzeghoud destaca que “os alertas precoces são obviamente importantes em qualquer evento catastrófico, mas o mais importante é a prevenção, é ter a população preparada e os edifícios preparados” e aí Portugal continua atrasado. Zonas com elevada atividade sísmica, como o Japão e a Califórnia, lidam com sismos como o desta madrugada e com magnitudes superiores “com poucos danos porque tudo está preparado, e o problema aqui em Portugal, e na Europa de forma geral, é esta falta de preparação”, refere o geofísico.

“O mais problemático nem são os SMS, porque acho que a população hoje em dia já está mais preparada do que há 10, 20 ou 30 anos, com as alterações climáticas acho que toda a gente já está sensibilizada para estes fenómenos. Agora, ouvimos o Governo a dizer que está tudo bem, mas não está tudo bem, desta vez tivemos um sismo de 5,3 a 19 quilómetros de profundidade, por isso não aconteceu nada, mas um sismo no mesmo sítio com magnitude superior a 6 seria diferente, há uma ordem de grandeza diferente.”

Sismo fez-se sentir sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo

Falhas de comunicação

“Atualmente”, refere Francisco Mota de Sá, “a Proteção Civil não tem meios para enviar alertas prévios à população, só consegue depois de o sismo já ter ocorrido” – o que também não foi o caso esta madrugada. Sentido às 05:11 da manhã, com epicentro a 58 quilómetros a oeste de Sines, a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) só emitiu um primeiro comunicado pelas 05:40, tendo “privilegiado o Facebook” para passar informações à população.

“O sismo foi sentido às 05:11 e às 05:40 foi quando tivemos a confirmação dos diferentes comandos regionais e subregionais de que, de facto, não houve danos pessoais nem materiais”, indicou o porta-voz da ANEPC, André Fernandes, numa conferência de imprensa durante a manhã. No rescaldo imediato do sismo, foi detetado um “pico de chamadas” para os serviços de Proteção Civil, período durante o qual o site do IPMA esteve em baixo, levando o grupo Iniciativa Cidadãos pela Cibersegurança a alertar para as “fragilidades” da morada online do único organismo capacitado para detetar e recolher dados precisos sobre sismos em território português. “Numa ocorrência deste tipo seria de esperar que o site do IPMA fosse a principal, mais fiável e segura fonte de informação, [mas] infelizmente não foi”, referiu o grupo, notando que o site esteve em baixo “entre as 05:11 e, pelo menos, as 05:40/05:55”. 

Ao longo desse período de mais de meia hora, apenas os utilizadores Android receberam alertas para o abalo que acordou inúmeras pessoas em sobressalto, sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo. O Google também disponibilizou de imediato informações sobre o sismo e recomendações à população para quem recorreu ao motor de busca no rescaldo do tremor de terra.

Os responsáveis da ANEPC dizem que foi dada primazia ao Facebook para a divulgação das primeiras informações sobre o sismo porque os dados mostram que “as pessoas acorrem mais a essa rede social” nestes eventos. Também adiantaram que a comunicação imediata com a população só está prevista quando estão em causa sismos com uma magnitude mínima de 6,1 na escala de Richter, por acarretarem maior risco de tsunamis – mas “a questão não se limita à magnitude”, destaca Francisco Mota de Sá.

“Não é só a magnitude que, por si só, torna útil o envio de um alerta, é a magnitude e a localização, a que distância está o epicentro. Este sismo de 5,3, se tivesse sido em terra ou muito próximo de alguma povoação, poderia ter causado danos muito graves – 5,3 de magnitude debaixo dos pés já causa muitas chatices.”

"Surpreendidos por um sismo moderado"

Os especialistas são unânimes a considerar que é preciso concretizar um sistema de alerta precoce também para sismos, nas palavras de Mourad Bezzeghoud “para que as autoridades, as forças de emergência e de segurança, possam rapidamente preparar o país para esse impacto e minimizar a destruição e as consequências” do abalo – incluindo emitir um aviso imediato à população que permita reduzir o número de feridos, de vítimas mortais e de danos à propriedade.

“Seria bom melhorar o sistema de alerta via SMS que, aliás, já existe, mas é sabido que não podemos impedir a ocorrência de um sismo”, observa o especialista da Universidade de Évora. “O que podemos fazer é tomar as devidas precauções para minimizar as suas consequências, quer no plano económico, quer no plano humano. A redução do número de vítimas durante um sismo passa por adaptar as estruturas dos edifícios e de outros tipos de obras” – e aqui ainda há trabalho a fazer. “O Estado faz auditorias, há planos de construção, mas não me parece que haja cuidado com isto. Há, aliás, poucos países com este cuidado, só aqueles com grande sismicidade. Acompanho a sismicidade nesta zona, o IPMA faz um acompanhamento automático também, e sabemos que esta é uma zona com sismicidade fraca a moderada, o que não significa que não vamos ter sismos mais fortes no futuro. Este sismo veio confirmar a suspeita de que há falhas geológicas também nesta zona, e acabámos por ser surpreendidos por um sismo moderado quando antes havia sismos de mais fraca magnitude nesta zona.”

Numa visita à sede nacional da Proteção Civil esta manhã, Paulo Rangel, o ministro de Estado e da Presidência que está a acumular funções como primeiro-ministro durante as férias de Luís Montenegro, disse que o sismo sentido esta madrugada foi “um teste real às nossas capacidades de resposta no caso de uma catástrofe grave” e sublinhou que esteve em contacto “estreitíssimo” com a Proteção Civil desde o primeiro momento.

O ministro Paulo Rangel fala num "teste" às capacidades dos diferentes organismos e instituições portugueses (Lusa)

“Sobre aquilo que são os planos que estão já testados e vistos há muito tempo, que têm de ser constantemente atualizados e renovados, houve aqui alguma projeção para o futuro no sentido de preparar as estruturas portuguesas, a proteção civil nacional e regional, e a população em geral para termos capacidade de resposta”, disse Rangel. Questionado sobre o eventual resultado desse teste, o ministro fez uma “avaliação muito positiva quanto à capacidade de resposta, à prontidão da resposta, à forma como a informação circulou”. 

Em declarações aos jornalistas, o Presidente da República teceu os mesmos elogios à “capacidade de resposta muito rápida” das autoridades e à “muito boa coordenação entre o Governo e a Proteção Civil”, adiantando que o Palácio de Belém foi informado do sucedido minutos depois de o abalo se ter feito sentir. “Funcionou aquilo que devia ter funcionado”, assegurou Marcelo Rebelo de Sousa.

Ecoando a mesma ideia de Miguel Miranda, o engenheiro Francisco Mota de Sá admite que, na zona onde foi registado este sismo, “no vale inferior do Tejo, um Sistema de Alerta Precoce, mesmo que avançado, não conseguiria avisar com antecedência, porque as ondas sísmicas chegam sempre mais depressa do que os alertas”. Contudo, destaca que a instalação desse sistema em Sagres “faria todo o sentido” – “devia haver pelo menos um sistema no sul de Portugal, no sudoeste algarvio, no cabo de Sagres, que tem uma localização ótima para instalar um sistema destes”, refere o especialista. 

A CNN questionou a ANEPC e o IPMA sobre em que fase se encontra o Sistema de Alerta Precoce de Sismos no território continental e como respondeu durante este sismo, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo. Também não recebeu resposta do Governo sobre se vão ser dados passos para melhorar os sistemas de comunicação de risco sísmico após o abalo desta madrugada.

domingo, 18 de junho de 2023

Metsola na Assembleia da República

A tragédia de Pedrógão e o esquecimento do governo

 



16 de junho de 2023 - Memorial aberto sem inauguração. Seis anos depois, Pedrógão Grande sente-se esquecido


Para espanto e mágoa dos que ainda choram a tragédia do fogo de 2017, a abertura do memorial às vítimas aconteceu sem a presença dos mais altos representantes da nação

 Memorial aberto sem inauguração. Seis anos depois, Pedrógão Grande sente-se esquecido

Silêncio, lágrimas e suspiros. A primeira reacção de quem perdeu familiares ou amigos no fogo de 2017, assim que dá de caras com o muro no qual foram gravados os nomes das vítimas, oscila entre a saudade e o respeito. “Ainda mexe muito, está tudo muito presente”, confessava Maria Graciete, depois de reconhecer vários nomes de amigos e vizinhos, de Castanheira de Pêra, cravados naquele bloco de pedra cinzenta. Não que eles estivessem esquecidos. Pelo contrário. “Não temos outra estrada para passar e não há dia em que não me lembre deles”, reforçava, com os olhos postos no grande lago artificial que, juntamente com o mural, constitui o memorial de homenagem às vítimas dos incêndios de 2017.

https://www.publico.pt/2023/06/16/sociedade/reportagem/memorial-aberto-inauguracao-seis-anos-pedrogao-sentese-esquecido-2053629


Maria José Santana (Texto) e Adriano Miranda (Fotos)

sábado, 15 de abril de 2023

Democracia não é assim tão simples


Estará a democracia a morrer? Que desafios enfrenta hoje? E como poderá vencê-los? Para responder a estas questões, Pedro Pinto entrevista o professor da Universidade de Harvard e perito em democracias Daniel Ziblatt, neste episódio de «Isto Não É Assim Tão Simples». Nesta conversa, o autor do livro «How Democracies Die», um best-seller do «The New York Times», os sinais de alerta de uma democracia que está sob ameaça, não através de um golpe de estado, mas por parte de políticos autoritários que «minam» os seus alicerces a partir do poder. Ziblatt dá também exemplos de países onde a democracia está de boa saúde. Analisa ainda o impacto da guerra da Rússia contra a Ucrânia nas democracias mundiais e o que poderá acontecer no futuro. Ziblatt aborda também as tentativas fracassadas – nos EUA e no Brasil – de anular o resultado das suas eleições presidenciais, e o que essas tentativas nos dizem sobre o futuro da democracia. Finalmente, Ziblatt debruça-se sobre Portugal e o crescimento da extrema-direita populista, discutindo como os principais partidos nas democracias ocidentais podem lidar com essa ameaça, numa conversa que vale a pena ouvir.

terça-feira, 14 de março de 2023

Debate sobre a extinção das touradas em 1821


Na sessão de 4 de agosto de 1821 das Cortes Constituintes, as touradas estiveram em debate.

Borges Carneiro apresentou um projeto de lei para a proibição dos espetáculos tauromáquicos, entendidos como contrários “às luzes do século, e à natureza humana”. Em causa, estava um entretenimento baseado no sofrimento dos animais, criados para servir o homem, mas não para serem martirizados.

 “Os homens não devem combater com os brutos, e é horroroso estar martirizando o animal, cravando-lhe farpas, fazendo-lhe mil feridas, e queimando-lhe estas com fogo: tão bárbaro espetáculo não é digno de nós, nem da nossa civilização.”

 Também o Deputado Teixeira Girão classifica as touradas como um” bárbaro divertimento”, uma “tolice em expor a vida sem fim útil, sem necessidade, uma “traição em inutilizar aos touros as armas que lhes deu a natureza” e uma “crueldade e cobardia em atormentá-los depois”.

 Em sentido contrário, vários Deputados argumentam com a tradição e popularidade do espetáculo, mas também pela existência de outros costumes que agridem os animais, como a caça ou, noutros países as “carreiras de cavalos e o combate dos galos”. Referindo-se ao projeto de lei de Borges Carneiro, Lemos Bettencourt afirma:

 “Admira-me, como levado de tão filosóficas tenções, não incluiu no mesmo projeto a proibição da caça, pois sendo todos os animais e aves entes sensitivos, não deviam ser objeto de divertimento do homem; e não devia o caçador matar a ave inocente”.

 Outros Deputados entendem que a sociedade portuguesa não está ainda preparada para a decisão de extinguir as corridas de touros. Assim pensa Serpa Machado, que defende ainda a diminuição da barbaridade do espetáculo e a abolição dos “touros de morte”:

 “Eu não seria de opinião que desde já fossem proibidas as festas de touros, porque ainda não é tempo; é necessário ir preparando os costumes. Entretanto apoio que o projeto vá à discussão, não para se abolir esse espetáculo, senão para diminuir a sua barbaridade. Vamos por ora preparando os costumes, que lá virá tempo em que ele caia por si mesmo.”

 Manuel Fernandes Tomás, confessando ser “amigo deste divertimento” e espetador semanal de touradas, refere que não se pode, de repente, transformar o país numa “Nação de filósofos”, sendo necessário preparar a sociedade:

 “Para extinguir-se aqui este espetáculo, é preciso que os costumes se vão preparando, querer de repente reduzir uma Nação a Nação de filósofos não me parece correto, nem sensato; este costume há de acabar entre nós, quando se extinguir na Espanha. Eu o declaro francamente, sou amigo deste divertimento; não é por ser valoroso, nem deixar de o ser, nem querer que os outros o sejam, senão porque fui criado com isso. Na teoria sou dos mesmos sentimentos filantrópicos; mas na prática não posso. Confesso a minha fraqueza: vou ver os touros todos os domingos. Eu não pugnarei porque os haja; mas tão pouco me oporei diretamente a que deixe de havê-los."

 O projeto de lei de Borges Carneiro para a extinção das touradas seria rejeitado.

 

in https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/Debate-sobre-a-extincao-das-touradas-1821.aspx

 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

José Gomes Ferreira e o ensino da História




Ocasionalmente, apareceu-me este vídeo... https://www.msn.com/pt-pt/entretenimento/tv/novo-livro-de-jos%C3%A9-gomes-ferreira-%C3%A9-um-grito-de-revolta-contra-a-maneira-como-a-nossa-hist%C3%B3ria-%C3%A9-contada/vi-AA14JI3r?rc=1&ocid=winp1taskbar&cvid=efadb45d04e54cf39f098277b4b2e47f

Santa ignorância, quer do autor quer, até, da apresentadora!...

Este jornalista, que habitualmente faz um programa sobre Economia/Finanças na SIC, anda agora a vestir a roupagem de historiador e a revisitar a História, à sua maneira, claro, criticando a torto e a direito (como é habitual nas suas intervenções) desconhecendo, efetivamente, os programas atuais de História/os conteúdos e a forma crítica como os mesmos são dados e até referenciados pelo Ministério da Educação. 

Nem 8 nem 80! 

Não escondemos a verdade histórica mas também não mentimos aos nossos alunos nem mascaramos a realidade histórica ao nosso gosto ou ao gosto da nossa ideologia político-partidária.

A visão deste jornalista, que revela o desconhecimento daquilo que se faz neste âmbito, integra-se claramente numa perspetiva saudosista, imperialista, colonialista… Já é o 2º livro que escreve desta forma sensacionalista-nacionalista, como se o que ele escreve ("investigou") tenha que ser, agora, uma verdade científica comumente aceite e uma espécie de cartilha para o seguidismo de má memória.

Que pedantismo! Que desconhecimento da realidade! 

Fala em manuais, manuais... Que manuais? De que anos de escolaridade?

Que fontes históricas consultou para apresentar este discurso?

Leu as orientações do Ministério da Educação relativamente ao ensino da História? 

Por exemplo:

- as aprendizagens essenciais da História A - 10º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/10_historia_a.pdf; 

- as aprendizagens essenciais da História A - 11º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/11_historia_a.pdf

as aprendizagens essenciais da História A - 12º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/12_historia_a.pdf

- as aprendizagens essenciais da História B - 10º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/10_historia_b.pdf

- as aprendizagens essenciais da História B - 11º ano

https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Aprendizagens_Essenciais/11_historia_b.pdf



Nazaré Oliveira


terça-feira, 27 de setembro de 2022

"Não há volta a dar-lhe": ou se é pela Rússia ou se é pela Ucrânia


"A ONU apresentou como confirmados desde o início da guerra 5.916 civis mortos e 8.616 feridos, sublinhando que estes números estão muito aquém dos reais".
Infelizmente, agravar-se-á este número com a mobilização de milhares de russos decidida por Putin para continuar o seu programa de crueldade e morte contra ucranianos e contra os que, mesmo russos, se opõem ao seu ideário extremista e belicista.
Esta guerra que Putin iniciou, porque de guerra se trata, também nos diz respeito e nos merece a maior atenção e apreensão, uma vez que estão em causa valores e princípios completamente espezinhados pelo mesmo, como o respeito pela soberania das nações, pela sua independência, pelas disposições da Carta das Nações Unidas, pelos Direitos Humanos e pelo Direito Internacional.
Nada justifica o que está a acontecer, exceto o desejo imperialista de um homem que, pela violência e pela força, negando a História recente da Europa a a partir de 1989, quer fazer renascer os horrores pelos quais passaram as ditas democracias populares e ressuscitar a velha e prepotente URSS.
Quem não critica abertamente Putin por tudo isto que tem feito também é como ele.
Neste contexto, e perante os factos e esta terrível realidade, não há lugar para os que, estranha e cobardemente se escondem na "abstenção" ou comodamente se viram contra os países que estão a ajudar a Ucrânia.
Isto nunca foi operação militar especial, mas guerra. Guerra!
"Não há volta a dar-lhe": ou se é pela Rússia ou se é pela Ucrânia.


 Nazaré Oliveira


Já agora, para consulta

https://www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/world/20220127STO22047/de-que-forma-a-uniao-europeia-apoia-a-ucrania

 https://youtu.be/LI5dbfr3Xp0 


terça-feira, 16 de agosto de 2022

Incêndios em Portugal

 


Esta é a área ardida na Serra da Estrela.
Imaginem que ardia tudo desde o Parque da Nações até Cascais!!!
O combate aos incêndios passa pela prevenção, com muitas mais campanhas DURANTE TODO O ANO, nas escolas, junto das populações, mass media mas, sobretudo, por mais e melhores equipamentos e melhores salários dos bombeiros.
Se o recente contratado Sérgio Figueiredo vai ganhar mais do que o Medina, quanto deveria ganhar um bombeiro? Um professor? Um médico? Um enfermeiro? Um polícia?
Uma tristeza e uma revolta, estas decisões "vindas de cima"! Esta inversão de prioridades, esta falta de visão e sensatez política e social.
A extrema direita aproveitar-se-á de tudo isto para engrossar cada vez mais as suas hostes, para infortúnio da nossa democracia.
A quem pedir responsabilidades pelos próximos números da abstenção, pelos desafetos políticos, pela quebra de confiança no sistema pluripartidário?
Continuarei a lutar pela Democracia e pelo Estado de Direito. Sempre.

terça-feira, 15 de março de 2022

O presidente Vladimir Putin está a abusar da História para justificar a invasão da Ucrânia

 




É com choque e horror que testemunhamos os acontecimentos que se desenrolam na Ucrânia, iniciados por ordem do presidente russo, Vladimir Putin, de invadir o país. 

O presidente Vladimir Putin está a abusar da História para justificar esta invasão e o ataque armado ao estado soberano da Ucrânia. Baseia-se numa visão unilateral da História que glorifica a Rússia e caracteriza erroneamente o povo ucraniano e o seu governo democraticamente eleito. Ele abusa da História para deslegitimar as atuais fronteiras da Ucrânia. 

Putin, a sua liderança e os mídia controlados pelo Estado, promoveram o sentimento anti-ucraniano ao disseminar falsidades centradas numa narrativa de “desnazificação” do governo. A equação da atual administração e do povo da Ucrânia com nazis e colaboradores nazis é a-histórica. As alegações de que a Ucrânia não tem tradição de Estado são falsas.

A EuroClio  posiciona-se firmemente contra o abuso da História – o uso da História com a intenção de enganar. O uso da violência que testemunhamos atualmente mostra até onde isso pode levar. Acreditamos que é imperativo que historiadores e educadores de História estejam vigilantes e se manifestem contra tais abusos sempre que possível, tanto dentro quanto fora dos ambientes educacionais.

Estamos solidários com o povo da Ucrânia, que viu o seu território invadido e a sua segurança ameaçada. Também estamos com todas as pessoas que, na Rússia, também estão em choque e protestam contra as ações do seu governo.

Os nossos pensamentos vão, em particular,  para os nossos colegas na Ucrânia que estão em perigo e com quem trabalhamos há décadas para promover o entendimento mútuo por meio da Educação. Esperamos vê-los em breve, com segurança. 

Que possamos testemunhar o fim deste sofrimento o mais cedo possível. 




Artigo disponível em https://euroclio.eu/2022/02/27/statement-against-the-abuse-of-history-and-in-solidarity-with-the-people-of-ukraine/ (consultado dia 15.03.2022)





quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Maldade responde-se com Humanidade (Gustavo Carona)


Pela segunda vez na minha vida estive cara-a-cara com o Estado Islâmico. Mete medo, é assustador. Muitos arrepios na espinha.  A primeira vez foi na Síria em finais de 2013 que tive o desprazer de me cruzar com este grupo de pura maldade. Cruzei-me com alguns dos seus elementos no hospital onde trabalhei, mas foi acima de tudo na reacção de medo e petrificação que vi nos rostos do povo sírio, que me apercebi do espectro infinito de terror e sofrimento que fez construir a minha imagem sobre este grupo. 

Desta vez no Iraque, em Mosul, 4 anos depois, a história foi bem diferente para pior. É difícil de explicar o inexplicável, mas para contar esta história ou estas histórias é imperativo que se tente analisar como apareceu o estado Islâmico desde a geopolítica macro ao humilde indivíduo que não sabe ler nem escrever e que no fundo não teve outra opção, passando também por algumas opiniões sobre o que os une, a religião. Sei que quando chegarem ao fim desta história vão perceber um bocadinho mais e vão olhar para o mundo com mais coração. 

O Iraque é um país cuja politica é sempre extremamente explosiva. Como sabem o médio-oriente foi dividido após a 1a guerra mundial num acordo entre os franceses e os ingleses, que assim criaram fronteiras que nunca existiram, e com isso dividiram povos a seu belo prazer de uma forma artificial com graves consequências até hoje. Existem duas facções do Islão os sunitas e os xiitas (assim como no cristianismo existem os católicos e os protestantes (e outros)). A tensão entre estes dois sub-grupos do Islão é enorme. Quase toda a tensão/guerras do médio-oriente afunila nesta dicotomia. E o Iraque é o único país no mundo que tem algum equilíbrio percentual entre sunitas e xiitas, sendo cerca de 60% xiitas e 40% sunitas. Recuemos no tempo até 2003. Quando se inicia uma guerra, com a agravante que foi sob os falsos pressupostos da existência de armas químicas, para derrubar Sadam Hussein (sem dúvida um ditador terrível) que era sunita e dominava o país com mão de ferro e toda uma elite nas diferentes estruturas governamentais e privadas também composta por sunitas. Ao derrubar o regime o mundo patrocinou uma alternância de poder para os xiitas, e assim deixou desamparados todos os sunitas influentes e poderosos, intelectualmente capazes e influentes do Iraque. Nasce uma revolta, um ódio extremo, uma promessa de vingança eterna, após esta alternância de poder. Por esta altura o mundo já conhecia bem o extremismo sunita patrocinado pelos países sunitas mais influentes, Arábia Saudita e emirados e sultanatos á volta, a quem chamávamos Alqaeda. Então em 2010 (Sadam é enforcado em 2006), nasceu um grupo chamado Alqaeda no Iraque, essencialmente no norte do país onde há uma expressiva maioria de sunitas. Mais tarde também a propósito da guerra da Síria (que começa em 2011), cria-se um terreno fértil para este grupo ir além da ideologia e de ataques estratégicos, para a tomada de cidades e largas áreas de terreno essencialmente no leste da Síria e no Norte do Iraque, e assim se cria o Estado Islâmico, ou Islamic State of Iraq and Siria (ISIS), ou Daesh (“estado” em Árabe). E em Julho de 2014 acontece o que ninguém imaginaria ser possível, o Estado Islâmico conquista em poucos dias, a segunda maior cidade do Iraque com 2 milhões de habitantes e estrategicamente imensamente importante, Mosul. E do alto do minarete da mesquita mais emblemática da cidade, Al-Nuri, o seu líder Al-Baghdadi, declara o auto-proclamado Estado Islâmico, com pretensões de unir todo um mundo muçulmano num só califato. E aqui compreendemos que mexer na política interna de outros países a nosso belo prazer, faz mais mal do que bem. Abanar os ódios, exponencia-os. A criação do Estado Islâmico nasce directamente da inexplicável guerra do Iraque de 2003. Mas não só.

A religião e o poder sempre se imiscuíram. Toda a história das grandes religiões se confunde com a forma como exerceram poder sobre as pessoas. Eu tenho um respeito enorme por todas as religiões e até admiração pela forma como conseguiram agregar multidões, povos, países e continentes inteiros, à volta da reflexão sobre o certo e o errado. Na minha óptica enquanto ateu, as religiões tinham tudo para ser algo de maravilhoso, não fosse o “pequeno” pormenor que são sustentadas numa mentira. E esta influência que a religião tem sobre as pessoas depende da forma de como é manobrada pelos seus actores principais, por aqueles que se colocam numa posição de lideres de opinião e subsequentemente de controladores de acções dos crentes. Na minha muito humilde opinião, acreditar na reencarnação de humanos em animais, acreditar que Jesus é filho de deus, ou que Maomé falou com Alah dentro de uma gruta, ou deuses com trombas de elefante, são tudo histórias de encantar. Talvez na sua génese o Islão interfira mais na política de toda uma sociedade do que as suas principais rivais. Ainda assim o Islão difunde uma mensagem absolutamente humana e inspiradora de humildade, de cooperação, de bondade, que eu aprendi a admirar à semelhança da minha admiração por outras religiões. O grande problema das religiões reside nos dogmas e nas certezas absolutas. É o primeiro passo para todo um fim. Quando as pessoas acreditam cegamente, são manietadas, são moldadas à imagem de quem manda, e são persuadidas com muita força a fazer o que quer que seja. Porque vem de deus, e como tal nada se questiona. E é esta também a simples história do Estado Islâmico. Num país em desordem, com gente poderosa sedenta de vontade de regressar ao poder, o factor unificador é a palavra de deus, e a criação de um inimigo comum. A injustiça, a revolta, a pobreza, a humilhação, levam uma franja da população sunita a acreditar que a palavra de deus, vem deste grupo de radicais oportunistas, que rapidamente através dos seus dogmas de fé recolheram o apoio de gente suficiente para criar este poderosíssimo grupo que se vendia como lobo em pele de cordeiro. O extremismo, o fanatismo, o radicalismo vem do oportunismo de gente má, que usa pessoas de visão curta, sustentados nas suas certezas absolutas. Nos seus dogmas de fé. Que neste caso vêm das vozes que Maomé ouviu sozinho numa gruta.

Quem é o individuo que se junta ao Estado Islâmico? Segundo se sabe o seu líder Al-Baghdadi (agora morto) esteve vários anos preso, numa prisão militar americana, dizem que seria até uma espécie de informador para os americanos, mas certamente estava a camuflar a sua raiva e humilhação. A ele se juntam poderosos e gananciosos, revoltados e frustrados, com o apoio dos quadros sunitas que até há pouco tempo dominavam todo o Iraque. Mas eu penso que a reflexão mais importante está no controlo das massas, como é que se conquista o coração das pessoas cometendo crimes hediondos, sabendo que as pessoas na sua génese são boas. O comum dos mortais iraquianos foi persuadido com o radicalismo da palavra de deus, e uma arma na cabeça. São duas forças difíceis de questionar. Difíceis de resistir. E assim compreendem que entre os militantes e os militares do Estado Islâmico e o comum dos Iraquianos que por uma questão de sobrevivência e ignorância se submeteu ao jugo desta gente horrível e foi participante, facilitadora e conivente com todas as atrocidades deste grupo, mas eles próprios vítimas de uma lavagem cerebral e de uma coação moral/divina e ameaça física muito real, da sua pele e dos seus. 
Aquilo que o Estado Islâmico fez não caberia em todos os livros que já foram escritos até hoje. E eu poderia escrever textos e textos, e continuaria a ser uma mera introdução ao tema. Mataram todos os que consideravam infiéis, desde xiitas, cristãos, yazidis, kurdos, e tudo mais o que encontravam pela frente. Escravizaram pessoas, violaram enormes quantidades de mulheres que usaram como objectos sexuais, torturam de todas as formas que a nossa imaginação possa encontrar, queimaram casas com pessoas lá dentro, executaram pessoas em praça pública para aterrorizar e entreter as multidões que eles obrigavam a assistir. As histórias que me chegavam quer pelos meus companheiros de trabalho iraquianos que tinham vivido sobre o domínio do Estado Islâmico, quer pelos doentes que ainda tremiam de medo eram arrepiantes. É o que acontece quando deixamos crescer o egoísmo e a maldade. 

O anoitecer era uma fase maravilhosa do dia. O calor abrandava. Abrandava apenas, mas já era tão bom. Os iraquianos que estavam a jejuar durante o ramadão animavam-se com o Iftar (a refeição que quebra o jejum diurno) e normalmente encontrávamos aqui um momento para viajarmos através das conversas de mundo e do ali mesmo. Um dos médicos que trabalhava comigo contava-me algumas histórias de horror do Estado Islâmico. Uma delas tinha uns dias. Disse-me que estava sentado à conversa com um amigo também médico no lado leste de Mosul (recentemente libertado), e que este foi assassinado por um sniper que disparou da outra margem do rio (Mosul oeste) que estava ainda dominada pelo Estado Islâmico. Disse-me que era frequente eliminar profissionais de saúde marcando uma posição sobre o terror que impunham em todos que estivessem contra eles. Retirar a saúde a um povo, é retirar-lhes a esperança de viver. Os feridos e os familiares que nos chegavam ao hospital por vagas, à medida que a cidade de Mosul ia sendo libertada quarteirão a quarteirão, todos referiam histórias de familiares que em algum momento tentaram fugir e foram abatidos pelas costas na fuga, e os seus corpos ali ficavam no meio da rua, pois ninguém se atrevia a aproximar-se das linhas que delimitavam a fronteira deste conflito. 

Um mundo de ódios, um mar de maldade, todo um infinito de atrocidades. E a grande maioria da população que limitou-se a sofrer, quando se libertarva deste inferno, encontrava de imediato um enorme alívio mas também o desespero de vidas e vidas perdidas para trás que deixarão cicatrizes até os tempos serem tempos, e um ódio reactivo a toda maldade que lhes foi feita. Várias reportagens jornalísticas deram conta das atrocidades cometidas pela exército iraquiano na reconquista do norte do Iraque. Fizeram igual ou pior que o Estado Islâmico a todos que consideravam culpados, em julgamentos instantâneos. Porque o grande problema aqui se põe. Quem são os verdadeiramente culpados? Porque entre os que ajudaram, os simpatizantes, os que alguma vez colaboraram, os que tinham primos, os que fizeram algum negócio com o Estado Islâmico, etc, etc. Quem são os verdadeiros culpados? Foi uma matança desprovida de critério, e menos ainda de justiça. Foi-se torturando e matando ao sabor de quem tinha a arma na mão.

Perto do hospital onde eu estava a trabalhar, havia uma prisão para todos os elementos pertencentes, ou amigos, ou suspeitos do Estado Islâmico. Talvez fosse melhor a morte. As condições de vida ou falta delas eram alucinantes. O cheiro a podridão era agoniante. Era uma espécie de pena de morte, sem premir o gatilho. O que esperar dum país em guerra, que não tem dinheiro para dar de comer ao seu povo, a contas com a pior batalha da história contemporânea, e com toda uma quantidade de gente cuja culpa era extremamente difícil de dissecar e mais ainda de perdoar...?

Várias vezes recebemos presos que estavam gravemente doentes no nosso hospital. É aqui que todas as questões se levantam. A ética a moral, a deontologia, e a bipolaridade de emoções que esta questão nos levantava. Quem é que quer salvar estes assassinos? Assassinos, supostos-assassinos, simpatizantes de assassinos, obrigados a ser assassinos... sei lá. O que é que eu sei? Tive vários destes doentes sob a minha responsabilidade porque nos chegavam ao hospital em estado crítico, quase a morrer. O quadro clínico era semelhante entre eles. As faltas de condição de higiene, e alimentação paupérrima levava-os a um extremo de franqueza, desnutrição e desidratação e com gastroenterites á mistura, estavam às portas da morte. Eu continha as lágrimas para os ver como pessoas depois de dias e dias a ouvir histórias de horror. Olhava-os nos olhos e em silêncio perguntava-lhes: “quem és tu?” ... mas desta pergunta nascia em mim outra pergunta em silêncio: “quem sou eu?” ... Entre lágrimas escondidas esforcei-me muito para lhes salvar a vida. Noites perdidas a examiná-los e reavaliá-los até que recuperassem forças para voltar para a prisão de onde talvez nunca saíram. Mas o que também é óbvio, é que eu sou um turista. E para eles? E para os iraquianos? Eu tive conversas e interacções com alguns dos enfermeiros dos cuidados intensivos cuja intensidade e a profundidade, dói. Dói muito. Porque não foi a minha família que foi torturada, violada e assassinada por este grupo de ódio. Foram as deles. Todos eles. Não havia ali ninguém sem uma história de sangue muito directa. 

Cada vez que recebia um destes presos em estado crítico, eu sentava-me com os enfermeiros à conversa sobre estes dilemas éticos. E diziam-lhes... “eu sei que isto é complicado para vocês... eu nem me atrevo a imaginar o que vocês devem estar a sentir...” ... eu ainda acrescentava... “ se vocês não conseguirem cuidar destes homens, eu percebo, eu juro que eu percebo...” ... Eu via nos olhos deles lágrimas raiadas de sangue, mas várias vezes me repetiam... “Eles são seres humanos... nós vamos fazer o nosso trabalho” ... Eu não cabia em mim, em tanto orgulho, em tanta admiração, em tanta inspiração, em tanta humanidade... Foi talvez a maior lição que eu aprendi até hoje... Viver inspirado não tem preço...

Os enfermeiros tinham que lhes dar banho, limpar a cama cheia de diarreia, dar-lhes a medicação, dar-lhes de beber e de comer, e tudo mais... a pessoas, que pintaram a tons de dor toda a história das suas vidas, dos seus pais, dos seus irmãos, dos seus filhos... Foi a coisa mais bonita que eu vi até hoje. Sentia calafrios pelo corpo todo quando os via a a fazer cuidados de enfermagem numa interacção que os devia estar a destruir por dentro, mas certamente percebiam que a solução para o seu país estava também nestas pequenas vitórias heroicas... Eu dava a vida por eles, porque um ensinamento de tanto amor no meio do horror, não tem preço e tem um valor eterno e inestimável. 

Eu sabia que a tarefa ia ser dura. Quando podia ia ajudando ou vendo pelo canto do olho como os estavam a tratar. Era duríssimo. Nunca vi uma troca de palavras para além do mínimo. Nunca vi um sorriso, nem posso dizer que tenha visto compaixão, embora ela estivesse lá. Vi um trabalho sério, e cuidado. Vi que à maldade se responde com humanidade. 

No meio de tantos horrores, vemos também o melhor do ser humano. Nunca lhes agradeci pela inspiração infinita que deixaram em mim, espero que ao contar a sua história deixe bem claro o profundo agradecimento que tenho por estas pessoas, terem cruzado a minha vida.

Obrigado por me terem mostrado que há amor no meio do horror. Obrigado.

Maldade responde-se com Humanidade.


in http://gustavocarona.blogspot.com/?fbclid=IwAR17BExz8A72jn-wBxtoZcggP1SsVG-2D6ajaFdztJBQ4b5bROi3xUKu934

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

O tempo e a Terra



Minha palestra no Vale das Buracas do Camilo no dia 18/9/2021 a abrir um concerto do ensemble da Orquestra Clássica do Centro:

Estamos num lugar espectacular, o vale das Buracas, no Camilo, é uma paisagem calcária, pertencente ao maciço calcário de Sicó. Conheço-o bem, porque entre os 15 e os 20 anos pratiquei espeleologia, o desporto-aventura da exploração de grutas que é ao mesmo tempo uma disciplina científica. Andei por estas serras, dormi em tendas, desci ao interior da Terra. Era membro do centro de espeleologia em Coimbra e o principal responsável pelo boletim A Gruta, onde publicávamos as descobertas que fazíamos nesta região. Lembro-me de ter ido à Biblioteca Geral da Universidade consultar revistas e livros antigos sobre as grutas de Condeixa. Há um artigo em 1854 intitulado “Grutas de Condeixa” na revista “O Instituto” de António Augusto da Costa Simões que foi professor de Medicina, presidente da Câmara de Coimbra, em 1856-1867, e reitor da Universidade, muito mais tarde, entre 1892 e 1898. Trata-se de um dos documentos científicos mais antigas sobre grutas portuguesas.

Os vazios da Terra 

Posso até contar uma história que na altura não foi nada divertida: fiquei uma vez preso nas profundidades da maior gruta portuguesa. As Grutas de Mira de Aire, que hoje os turistas podem percorrer em parte. Só ao fim de umas horas é que os meus colegas me conseguiram desentalar de um aperto numa passagem estreita. As Grutas de Mira de Aire, descobertas em 1947, são hoje a gruta mais comprida em Portugal: estendem-se por mais de 11 km, indo até mais de 110 m de profundidade. Mais profundas são os Olhos de Água do Alviela, uma das mais notáveis nascentes do país e mesmo do mundo pois os espeleólogos subaquáticos já conseguiram descer, no ano ano passado, sempre debaixo de água, a mais de 115 m de profundidade sem conseguirem encontrar a volta em U em que a água remonta no sifão. Nas regiões calcárias como esta a água que contém dióxido de carbono , dissolve a rocha calcária, que é formada por carbonato de cálcio, abrindo grutas, por vezes sem entrada para a superfície. O terreno é uma verdadeira esponja. A água acaba por aparecer na periferia do maciço em nascentes ou olhos de água. A gruta maior aqui do Sicó é o Soprador do Carvalho, em Ferrarias, Penela, que tem um rio subterrâneo, e que se estende por mais de 3 km. O interior da Terra tem muitos segredos por nos revelar… Nem o Soprador do Carvalho nem as Grutas de Mira de Aire se podem porém comparar com as maiores grutas do mundo. A maior é a Mammoth Cave, a gruta mamute, no Kentucky, EUA, cujas galerias subterrâneas se estendem por mais de 600 km. E a gruta mais profunda do mundo situa-se nas montanhas da Geórgia, na Europa de Leste, que alcança a profundidade de 2200 m. Uma descida até ao fundo dessa cavidade fará lembrar a Viagem ao Centro da Terra de Júlio Verne.

Aqui as grutas são mais pequena. Lembro-me de ter descido varias vezes ao Algar das Quintas, perto da capela da Senhora da Estrela, na Redinha, aqui um pouco mais a Sul. São 75 m a descer a pique e depois, o que é pior, outros 75 m para subir. 

As buracas que aqui vêem, não muito grandes mas muito abertas, deviam fazer parte de espaços subterrâneos, que foram escavados por um rio que cavou este vale ou canhão. A certa altura caíram as paredes e o interior subterrâneo ficou a descoberto, enquanto ao longo do tempo, o rio se ia afundando e o vale ia crescendo. O trabalho de erosão - a chuva e o vento -ajudaram a fazer esta paisagem. Demorou milhões e milhões de anos. Como diz Margareth Yourcenar, o tempo é o grande construtor. 

Este vales são típicos da regiões calcárias. Aqui mais a baixo há outro ainda maior e também com buracas, o Vale do Poio Novo, um sitio onde nos divertíamos a fazer eco entre uma vertente e a outra. Esta paisagem chama-se carso, o que vem da palavra eslovena karst, a região da Eslovénia, perto de Itália, onde a paisagem calcária está toda escavada. Já lá andei: há até uma gruta turística onde se anda de comboio lá dentro. Esta modelação da pedra a superfície, chama-se lapiás. Há também depressões circulares chamadas dolinas e depressões maiores chamadas poljes – há um em  Mira de Aire - Minde que alaga no Inverno por a água ficar retida pelo leito de argilas. E as grutas podem ser mais horizontais – chamamos-lhe lapas, ou mais verticais – chamamos lhe algares.

As eras geológicas

Falei do tempo, o grande construtor e também destruidor. A Terra é obra do tempo. Quando foram formadas estes estratos calcários? Os geólogos ensinam-nos que este calcário é do período Jurássico, mais propriamente de andares estratigráficos conhecidos como Bajociano e Batoniano que pertencem  ao Jurássico médio, que por sua vez pertence à era do Mesozóico que por sua vez pertence a uma divisão temporal maior, dita éon, chamado o Fanerozóico – palavra que significa vida visível, é o tempo no qual passou a haver marcas visíveis da vida. O Jurássico médio ocorreu há cerca de 170 milhões de anos. Napoleão disse aos seus soldados no Egipto: “Do alto destas pirâmides 4000 anos vos contemplam”. Aqui poderia dizer: “Do alto destes penhascos 170 milhões de anos vos contemplam.” Há marcas de vida dessa altura e a vida era dominada poe esses grandes répteis que eram os dinossauros. Toda a gente viu os filmes Parque Jurássico de Steven Spielberg. Estes grandes sáurios apareceram há cerca de 230 milhões de anos, no Triássico, antes do Jurássico, e desapareceram no Cretácico, já depois do Jurássico, há cerca de de 68 milhões de anos. Julga-se que foi um gigantesco meteorito que caiu na região do Iucatão do México combinado com invulgar atividade vulcânica que levou ao fim dos dinossauros. Com o seu fim, puderam triunfar os mamíferos. Em Portugal há marcas de dinossauros: ninhos na Lourinhã, pistas na Pedreira do Galinha na Serra de Aire, pegadas no cabo Mondego, Tudo isso são marcas do Jurássico,

Mas nessa altura, quando a terra era comunicada pelos dinossauros, já a história da Terra ia adiantada. Quando começou a Terra? Quantas velas devemos por no bolo se houvesse um dia de anos da Terra? Sabemos hoje que é contemporânea do sistema solar que tem cerca de 4,5 mil milhões de anos. Essa é a idade das rochas mais antigas da Terra, que podemos dar usando técnicas de radioatividade. É cerca de um terço da idade do Universo, pois de acordo com a teoria do Big Bang, o Universo terá começado há cerca de 14 mil milhões de anos. A melhor teoria que temos da formação do sistema solar é a de uma nuvem, formada principalmente por hidrogénio, mas tendo muitos outros elementos químicos pesados, que comprimida pela gravidade, e sempre em rotação rápida levou à formação do Sol, no centro, onde se acendeu uma fornalha termonuclear graças a forças de pressão incríveis. Perto ficaram planetas rochosos: Mercúrio, Vénus, Terra e Marte, os dois últimos com possibilidade de vida no sentido em que existiu ou existe água em várias fases: líquida, gelo e vapor de água.  E, depois de uma cintura de meteoritos, ficaram grandes planetas que são gasosos: Júpiter, Saturno, Úrano e Neptuno. A terra no inicio era mais pequena e foi crescendo com o bombardeamento de meteoritos. No início do sistema solar não havia a ordem que hoje há. A Lua, o nosso satélite natural, formou-se devido a colisão de um corpo celeste com a proto Terra: as pedras que os astronautas trouxeram da Lua são tão antigas como rochas muito antigas da Terra. Facto curioso: o Sol transforma hidrogénio em hélio irradiando energia, e há-se transformar hélio em carbono, mas não tem capacidade para produzir cálcio que existe no carbonato de cálcio destas rochas e, já agora, do cálcio que existe nos nossos ossos. Teve de haver por isso um outro sol anterior ao nosso que explodiu espalhando átomos pesados pelo espaço. Nós somos filhos dessa estrela mais remota. Essa explosão violenta de uma estrela chama-se supernova. Houve mais do que tempo para haver estrelas que explodiram, antes que o nosso sol se formasse. 

Desde que a Terra se formou passaram-se cerca de 700 milhões de anos antes que aparecesse vida, que remonta a 3800 mil milhões de anos. Não sabemos como apareceu a vida da Terra. Nem sequer sabemos se veio de fora ou se apareceu primeiro aqui devido a reacções química, que em condições particulares num meio aquoso, permitiram, a moléculas autorreproduzirem-se, fazendo cópias de si próprias. Os primeiros seres vivos, na base da grande arvores da vida –  há  seres vivos muito variados, pelo que falamos de biodiversidade –  , foram microscópicos. Nessa altura a reprodução consistia na divisão das células ao meio. Só mais tarde a evolução biológica haveria de inventar o sexo, que permitiu acelerar a biodiversidade. Mas, no início da vida, nem sequer havia atmosfera com oxigénio. Havia azoto, dióxido de carbono e metano, mas o oxigénio que hoje sustenta boa parte da vida só foi a certa altura produzido por um certo tipo de bactérias. No princípio foi o éon Hadeano, durou até há 4 mil milhões de anos. Depois, quando apareceu a vida, foi o Arqueano, até há 2,5 mil milhões de anos. Depois veio o Proterozoico, que durou muito, até há 500 milhões de anos. Só depois é que foi o Fanerozóico, dividio no Paleozóico, tempo dos peixes, no Mesozoico, o tempo dos dinossauros, e no Cenozóico, tempo dos mamíferos. Os primeiros hominídeos, ainda muito distantes de nós, surgiram de há cerca de 10 milhões de anos. O género homo já apareceu no quaternário, há cerca de dois milhões de anos, um tempo muito pequeno na vida da Terra. E o homo sapiens só  há 350 000 anos. Terá coexistido com o homem de Neandertal como mostra a criança do Lapedo, encontrada no Vale do Lapedo perto de Leiria. Hoje estamos no período do Quaternário chamado Holoceno, mas há quem defenda que mudámos de tal maneira a Terra que o nosso tempo se deveria chamar Antropoceno. 

Bestas buracas há marcas de ocupação pré-histórica. Os arqueólogos encontraram vestígios do Paleolítico, a idade da pedra lascada. Há até algumas marcas de arte rupestre, nas paredes de certas buracas: não são paleolíticas, mas já da idade do bronze. Lembro que da época neolítica  há vestígios aqui em Condeixa, como necrópole de Eira Pedrinha, que eu visitei como espeleólogo tendo ficado admirado com a enorme quantidade de ossos. Foi no Neolítico, há 10 000 anos,  que se deu a revolução agrícola, com a sedentarização das comunidades humanas e a domesticação dos primeiros animais. A época dos caçadores-recolectores tinha ficado para trás.

O que é o tempo?

O que é o tempo? Bem, de um modo operacional, é o que marca um relógio. Um segundo é uma fracção da hora, que é uma fracção do dia, que é uma fracção do ano, tudo isto marcado pelo movimentos astronómicos. Hoje em dia define-se os segundo com base em medidas atómicas, mas a definição inicial veio do movimento dos astros.

Podemos medir, mas nós não sabemos definir o tempo. É dos nossos grandes mistérios. Santo Agostinho dizia que se não lhe perguntassem o que era o tempo ele sabia, mas que se lhe perguntassem ele não sabia. Trago aqui uma citação  de Eça de Queiroz quando ele fala dos almanaques em “Notas Contemporâneas”:

 O tempo, essa impressão misteriosa a que chamamos tempo, é para o homem como uma planície sem forma, sem caminho, sem fim, sem luz, onde ele transita guiado pelo almanaque, que o segura pela mão, o vai puxando e a cada passo murmurando: "Aqui, estás em setembro!... Além, finda a semana!... Em breve alcanças o vinte e oito... Hoje é sábado..." Se o almanaque de repente, por facécia ou perfídia, lhe soltasse a mão, o abandonasse, o homem vaguearia irremissivelmente confuso e perdido dentro da vacuidade de o não ser do tempo. Sumida a noção do ano, do mês, do dia, ele não poderia mais cumprir, com ordem proveitosa, os atos da sua vida urbana, rural, religiosa, política, social — e logo se arriscaria àqueles dois erros de que galhofava o provérbio antigo: a semear o seu trigo em julho e a celebrar a sua Páscoa em novembro. Só com o almanaque, sempre presente e sempre vigilante, pode existir regularidade na vida individual ou coletiva.”

De facto, sem os calendários estaríamos perdidos no tempo. A nossa vida nãio estaria organizada. Por um lado há no tempo um lado de continuação, eternidade. Houve um início e provavelmente não haverá fim. Mas, por outro lado, ao contrário das viagens  no espaço, no tempo não se pode ir e voltar. As viagens  são num só sentido. Todos nós andamos para a frente no tempo. Os físicos descobriram uma lei -  a 2ª. Lei da Termodinâmica. que diz precisamente isso: que só se pode andar para a frente no tempo. Define-se uma grandeza, a entropia, que é uma medida da desordem. Num sistema isolado a entropia só pode crescer. Este Vale das Buracas é resultado da erosão do tempo, do crescimento da entropia. E nós que nos deslumbramos com o vale? Bem nós não somos sistemas fechados, recebemos energia do exterior, pelo que a desordem não cresce em nós.

Há uma história curiosa de um dos descobridores da 2.ª Lei da Termodinâmica. O britânico William Thomson, lorde Kelvin (há numa relação com Portugal: ele casou com a filha do cônsul inglês no Funchal, que conheceu quando andava a instalar linhas de telégrafo eléctrico entre Portugal e  o Brasil). Pois Kelvin,  um dos maiores sábios do século XIX,  cometeu um importante erro na avaliação da idade da Terra. Fez umas contas a partir do tempo que um corpo quente, como a Terra primitiva, demora a arrefecer e falhou por muito. Os geólogos conheciam o enorme tempo que é preciso para formar paisagens como este estavam mais certos do que os físicos quanto à idade da Terra. Vale a pena contar a história da disputa científica sobre a idade do nosso planeta.

O erro da idade da Terra

Quando falamos em história da Terra, estamos a falar de longos períodos de tempo. A busca do relógio da Terra iniciou-se há muito tempo. O alemão Abraham Werner, que viveu entre os séculos XVII e XIX, foi  um dos” avôs” da geologia.  Werner defendia que a formação da Terra teria sido um processo rápido e que todas as rochas se teriam depositado num oceano primordial, num espaço de tempo muito curto – esta é a chamada cronologia curta da Terra. A teoria werniana estava de acordo com os ensinamentos bíblicos (Deus teria criado todo o Universo, incluindo a Terra, em apenas alguns dias). E foi por isso que permaneceu, durante algum tempo, inabalada.

 Acabou por ser questionada nos finais do século XVIII pelo geólogo inglês James Hutton. Hutton, ao observar rochas sedimentares depositadas horizontalmente, concluiu que estas teriam sido depositadas em diferentes épocas e que, portanto, era longa a história da Terra – esta é a chamada cronologia longa da Terra. Já antes um médico dinamarquês do século XVII,  Nicolau Steno, tinha intuído isso: Os estratos por baixo são mais antigos do que os que estão por cima. Marcas de vegetais ou animais nesses estratos são mais antigas que marcas de animais por cima. Em 1795, Hutton publicou o livro Theory of Earth, no qual fala de uma história geológica uniforme, permanente, sem início nem fim: poder-se-ia mesmo falar de uma idade infinita! Claro que para as pessoas que levavam à letra a palavra da Bíblia, a ideia de um tempo infinito era uma verdadeira heresia, uma vez que proibia o cato criador reportado nas Escrituras. Hoje sabe-se que a teoria de Hutton estava essencialmente correcta, tendo servido de base para as teorias de geologia e biologia que se lhe seguiram. 

O geólogo inglês oitocentista Charles Lyell seguiu na peugada das ideias de Hutton. Considerado por muitos o pai da Geologia, publicou entre 1830 e 1833 o livro fundador dessa ciência - Principes of Geology (em três volumes), onde defendeu as conceções de Hutton contra as de Werner. Lyell datou rochas através dos fósseis que continham, tendo concluído não só que a Terra teria vários milhões de anos como também que teria mudado lentamente ao longo de todo esse tempo, devido a factores como a erosão. O princípio do uniformismo defendido por Hutton ganhou nesta altura tal preponderância que, a partir de meados do século XIX, a Bíblia quase desapareceu do estudo da história da Terra.

 Charles Darwin, o autor da Origem daas Espécies (1859), foi um adepto das ideias do seu amigo Lyell, tendo feito uso delas na sua teoria da evolução. Por sua vez, Lyell, que antes acreditava que as espécies se tinham mantido imutáveis ao longo dos tempos, quando toma conhecimento da teoria de Darwin, tornou-se um dos seus maiores defensores. O desenvolvimento da estratigrafia e da paleontologia, já preliminarmente estudadas por sábios como da Vinci e Lavoisier, ajudou à aceitação das teses uniformistas de Hutton e Lyell. O estudo dos fósseis permitiu datar sequências de estratos e conhecer melhor a cronologia da história da Terra.

Em 1859, Darwin estimou em 300 milhões de anos, um tempo claramente longo, o período de escavação de um grande vale inglês. Esse cálculo concordava “grosso modo” com outro relativo à salinidade dos oceanos, que fixava em 100 milhões de anos o tempo necessário para salinizar toda a água do mar.

 Mas, em 1863, o físico William Thomson, mais conhecido pelo seu título de Lorde Kelvin, que na altura era considerado o “papa” da Física, voltou, embora sem invocar a Bíblia, às ideias da cronologia curta presentes em Werner. Baseado na 1.ª Lei da Termodinâmica – a Lei da Energia, que estipulava a conservação dessa grandeza física – estudou o fluxo de calor emitido pela Terra, concluindo que o nosso planeta teria, no máximo, 100 milhões de anos. Em 1987 Kelvin, com novos cálculos, atribuiu à Terra cerca de 20 milhões de anos, um valor que provocou um grande alvoroço entre geólogos. Lyell respondeu-lhe afirmando que haveria reacções químicas no interior da Terra que não tinham sido consideradas nesses cálculos mas não conseguiu demover o teimoso Kelvin, que, quando muito, estava apenas disposto a admitir o valor de 400 milhões de anos.

 Kelvin estava rotundamente errado e a chave para mostrar o seu erro só apareceria mais tarde, em 1896, com a descoberta da radioactividade pelo físico francês Henri Becquerel. De facto, a radioactividade, que está associada à emissão de calor, não entrava nos cálculos de Kelvin! E, curiosamente, foi a radioactividade de algumas rochas naturais que permitiu finalmente datar com precisão o planeta Terra. Um dos geólogos mais famosos do século XX que investigou o problema da datação da Terra foi o britânico Arthur Holmes. Holmes concluiu que a Terra teria uma idade entre 1400 e 3000 milhões de anos. Contudo, determinações mais recentes dão à Terra, como de resto a todo o sistema solar, a provecta idade de 4,5 mil milhões de anos, como já referi. Não é um tempo infinito como defendia Hutton, mas é muito maior do que o tempo bíblico ou do que o tempo de Kelvin. Kelvin não viveu o suficiente para reconhecer o seu erro!

A ciência é feita de erros, mas de erros que são corrigidos com o evoluir do tempo. Mas já falei de mais. A mensagem mais importante é que o tempo é mudança – já dizia Camões – “todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre  novas qualidades”, - a Terra é um sitio dinâmico. No tempo do Jurássico foi quando o grande continente único - a Pangeia - se começou a separar em duas grandes parte. Foi quando se começou a formar o oceano Atlântico. Por falar em oceano, estres estratos que aqui vemos formaram-se por deposição de carbonato de cálcio no fundo de um oceano. A Terra está sempre a mudar a sua geografia, comos sabemos da teoria da deriva dos continentes devido ao movimento das placas tectónicas, que foi aventada elo alemão Alfred Wegener, levantando grande controvérsia. Fiquei um dia muito impressionado porque numa placa à entrada de um museu da Terra em Edimburgo dizia lá que aquele sitio já tinha estado no equador. Não sabemos - apenas podemos fazer previsões, quando será a geografia dos continentes  daqui a 170 milhões de anos ainda ontem saiu um artigo sobre isso no Expresso. É uma previsão, que pode falhar… Porque há surpresas, a Terra é uma caixinha de surpresas!

Tempo da música 

Mas é tempo e dar lugar a música, que obviamente está relacionada com o tempo. A música é uma sucessão de sons no tempo e o ritmo com que se sucedem podem ser maiores ou menores. Mas é curioso que há um tempo psicológico: perante uma bela peça de música não vemos o tempo passa- já passou vinte minutos desde que comecei  a falar - com certeza que repararam  que o tempo nunca mais passava - e agora o tempo vai passar depressa – por vezes vai ficar suspenso com estes artistas do ensemble da Orquestra Clássica do Centro.

Vamos ouvir trechos antigos como a música de Vivaldi das Quatro Estações, que nos lembra o clima e a meteorologia. Mas vamos também ouvir músicas de autores contemporâneos como Asthor Piazolla, que se fosse vivo, faria este ano 100 anos. E como Enio Morricone, falecido há pouco tempo. Vamos também ouvir vários temas de música rock. O rock and roll teve origem nos EUA nos anos 30 e 40 e vem da música de blues e de jazz. Rock and roll remete para o movimento rítmico: significa á letra balança e rola. Música é movimento, como vamos ouvir já a seguir com o grupo da Orquestra Clássica do Centro. Bom espectáculo!

 

Posted by Carlos Fiolhais at 23:39 

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