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segunda-feira, 5 de maio de 2025

Algumas das expressões transmontanas

 

Abondar


Não, não tem nada que ver com “abundar”, apesar de ser muito semelhante. O verbo “abondar” significa o mesmo que dar, ou chegar, no sentido de dar objetos em mão. Por exemplo: “Ó António, chega-me/dá-me aí o comando da televisão” será o mesmo que “ó António, abonda-me aí o comando da televisão”. É parvo? É.

 Amanhã ou passado

Se não és transmontano, deves estar a pensar que isto não faz sentido nenhum. E realmente não faz. Mas se vens de Trás-os-Montes, entendes perfeitamente o que diremos a seguir! “Amanhã ou passado” é exatamente o mesmo que dizer “amanhã ou depois [de amanhã]“! Mas porquê, se “passado” é precisamente o contrário de “depois de amanhã”? Ninguém sabe porquê. Por mais voltas que demos à expressão, não vamos conseguir encontrar uma explicação plausível para isto.

 Barduada

Esta não tem muito que se lhe diga. Pode parecer uma coisa muito estranha (se não fores transmontano podes estar a imaginar uma trovoada ou um bicho muito feio com três cornos nas costas), mas é muito simples: “barduada” é o mesmo que “paulada”. Ex.: “deu-lhe uma barduada que o tombou”!

 

Eis que chegamos à palavra mais pedida pelos fãs. A palavra mais comum do léxico transmontano, aquela que tem mais significados e que é praticamente impossível de explicar o que significa, ainda que na cabeça do pessoal transmontano faça todo o sentido – “bô”. Quando queres dizer algo como “ora essa!”, podes dizer, simplesmente “bô”! Quando desconfias de algo que te acabaram de dizer, podes simplesmente dizer “bô”, com uma entoação ligeiramente diferente. Se preferires, também podes simplesmente substituir a palavra “bom” (que não poderias usar nos casos anteriores) por “bô”. Afinal, o que é, então, o “bô”? É uma palavra mítica que é quase tudo, sem ser nada!

 Embuligar/Embuldrigar

Um verbo absolutamente parvo que significa, basicamente, fazer figura de porco. “Embuligar” significa rebolar no chão, mais propriamente na sujeira do chão”. Alguém que esteja todo embuligado está, portanto, todo porco, cagado, larego, cheio de surro (não conheces esta palavra? Então continua a ler o artigo). Se preferires (isto das palavras transmontanas é tudo à vontade do freguês), podes dizer “embuldrigar”, que é exatamente o mesmo, mas com mais duas letras parvas.

 Lapantim

Lapantim é o que os mais velhos costumam chamar aos rapazes (ou raparigos, que também se usa em Trás-os-Montes) novos. “Lapantim” é o que se chama a um miúdo irrequieto ou de maus costumes, que só faz asneira e nada que sirva! Assim, esta palavra vem quase sempre a seguir a “está quieto”! “Está quieto, lapantim!”

 Uliar

E esta? Apesar de parecer (ao dizer a palavra), não tem nada que ver com óleo. Uliar é aquilo que os cães fazem quando se põem a cantar, virados para a Lua. Isso mesmo. “Uliar” é sinónimo de uivar, e, apesar de já ter sido mais comum do que é hoje em dia, ainda se usa em algumas regiões transmontanas!

 Arrebunhar

“Arrebunhar” é exactamente o mesmo que “arranhar”, só que com mais uma sílaba gratuita. Em vez de “O azeiteiro do teu gato arranhou-me o braço todo”, podes dizer “O azeiteiro do teu gato arrebunhou-me o braço todo”, mas com pronúncia transmontana, claro.

Albarda

A palavra vem do espanhol (o que é comum acontecer nas expressões do nordeste transmontano, visto que a região sofre bastante influência de Espanha) e designa as selas que se colocam nos cavalos, burros e outros animais de carga. Em Trás-os-Montes, refere-se também ao vestuário de alguém, mais frequentemente para falar de casacos grandes ou algo do género. Por exemplo: ” Não te metas nesse caminho de lama que dás cabo da albarda, rapaze!”.

 Amarrar

A palavra existe e é conhecida para toda a gente, certo? Significa, obviamente, atar com cordas, por exemplo. Contudo, em Trás-os-Montes, a palavra é utilizada como um sinónimo – ou substituto – de “agachar”. Se algum dia um gajo de Bragança te gritar “cuidado, amarra-te!”, não é suposto pegares numa corda e prenderes-te a um poste com ela (exceto em casos de sadomasoquismo brigantino). A única coisa que tens que fazer é baixar-te, ou ainda bater com o caco nalgum sítio.

 Carranha

É a palavra mais nojenta da lista e significa, simplesmente, “macaco do nariz”, ou monca. Se és daquelas pessoas que não se assoa, é bem provável que ouças alguém dizer-te “Pega lá um lenço, que tens aí uma carranha!”. Contudo, também é provável que ninguém te diga nada e que andes o dia inteiro a fazer uma figura triste com uma monca de fora.

 Cibo

Esta palavra significa exatamente o mesmo que “bocado”, podendo substituí-la em qualquer contexto. Ao lanche, numa terra transmontana, será comum oferecerem-te um “cibo de pão com manteiga”, por exemplo.

 C’moquera

Esta é uma das expressões mais difíceis de explicar. Quer dizer, mais ou menos, “pode ser que sim”, sendo utilizada tanto em tom “normal” como em tom de ameaça. Por exemplo, se não fizeres as cadeiras todas este ano – nós sabemos que estás à rasca – “c’moquera” que ainda perdes a bolsa de estudos, se a tiveres. Se se meterem contigo, poderás também só dizer “c’moquera!”, em tom de ameaça, como quem diz “Pode ser que leves uma saronda!” O que é uma saronda? Já lá vamos. Só mais um cibo.

C’mássim

Esta tem mais ou menos o mesmo significado que “assim sendo” com a vantagem de não precisar necessariamente de qualquer antecedente. Se a conversa estiver fraca podes simplesmente dizer “C’mássim, vou-me andando para casa”. Também pode significar algo como “tem que ser”, como no exemplo: “Bem, vou limpar aqui o chão da cozinha, c’mássim…”

 Emplouricar

Significa ir para cima de alguma coisa. Os gatos, por exemplo, gostam de andar sempre “emplouricados” nas mesas, nos armários, nas portas, nas janelas, na televisão, nos móveis da casa de banho, na bacia…..enfim, já percebeste a ideia. E uma coisa é certa: os gatos são mais fofos quando se andam a emplouricar do que quando nos estão a arrebunhar o couro por completo.

 Ele é

Esta é um cibo difícil de explicar porque não tem jeito nenhum. Basicamente, é o mesmo que “é”, mas por vezes junta-se o “ele” mesmo que não se justifique. Em vez de perguntares “É aqui o festival?”, poderás perguntar “Ele é aqui o festival?”. Qual é a vantagem? Nenhuma. E a necessidade? Também nenhuma.

 Fai

Isto é uma variante de “faz”, pelo que tem mais que ver com a pronúncia do que com a palavra em si. Por exemplo: “Ó Sandra, fai-me aí um sumo de laranja!”. Há quem diga que o verbo “fazer” pode ser conjugado nas outras formas verbais, ao estilo de “fai” (“fais”, “faem”) mas também há quem diga que não, por isso não nos vamos pronunciar no que toca a esse assunto.

 Massim

Não há uma correspondência 100% correta para isto mas é parecido com “não mas sim”, o que, por si só, já não faz sentido nenhum. Por exemplo, se disseres que não queres salada, a tua mãe pode dizer-te: “Massim, que te faz bem!”

 Manhuço

Manhuço é um aglomerado de qualquer coisa, numa quantidade que seja possível pegar com uma mão mas sem ser possível esconder. Um manhuço de cereais, por exemplo, seria quando metes mão na caixa dos Chocapitos do Lidl e tiras uma mão cheia deles. Um manhuço de terra é quando agarras numa mão cheia de terra. Um manhuço de cibos de pão é…é uma estupidez, já.

 Lapouço

Quer dizer sujo/porco/labrego. Se és uma daquelas pessoas que não consegue ir ao McDonald’s sem deixar cair metade do hambúrguer ao chão e na barriga inchada enquanto metes a boca no outro lado do pão, pode dizer-se que és um “lapouço”. Outras palavras com significado semelhante – ainda que o destas seja um pouco mais forte, significando que a pessoa é mesmo porca – são “Larego” ou “Cochino”.

 Ladradeira

Isto é o que se chama àquelas senhoras coscuvilheiras, que passam o dia a dar à língua para cá e para lá, a falar da vida do Sr. Francisco, do carro novo da Dona Teresa, da filha bastarda da Maria Cigana. Dedicada a todas essas senhoras, e palavra “ladrar” foi adaptada, de forma pejorativa, para esta bela forma: Ladradeira.

 Guicho/a

A pronúncia é “guitcho/a” e é o equivalente a “fino”, que descreve alguém inteligente, ou esperto! Em vez de dizer “e és pouco fino, ó Zé!”, dirias “E és pouco guitcho, ó Zé! C’moquera!”.

 Refustedo/Chaldraria

Ambas as palavras querem dizer confusão, ou barulheira. “Isto é que vai para aqui um refustedo/uma chaldraria do caraças!”. Contudo, “refustedo” pode também ser utilizado em substituição de uma palavra parecida, mais feia: “p**edo”. Por exemplo: “Não te metas nessa lanchonete que só há lá refustedo…”

Larpar

Esta palavra significa o mesmo que comer, mas de uma maneira ligeiramente mais torgueira. Não há muito mais a dizer acerca desta palavra, por isso não nos vamos alongar, até porque esta mesma frase foi feita precisamente para meter aqui mais um bocadinho de texto desnecessário.

 Engranhado/a

Uma pessoa engranhada – ou, noutra variante, engaranhada – é uma pessoa cheia de frio, ou que está toda encolhida por causa do mesmo. Por exemplo: “Aquela ladradeira está ali toda engaranhada e mesmo assim não se cala! C’moquera ainda apanha uma constipação.”

 Arreguichada/o

Arreguichar é mais ou menos sinónimo de empinar. Como tal, para dizer que alguém tem a mania, diz-se que anda de nariz “arreguichado”, em vez de empinado, e as raparigas mais oferecidas normalmente “arreguicham” a saia mais frequentemente….é um refustedo.

 Birolho/a

Um gajo birolho é, basicamente, alguém que tem os olhos tortos. Apesar de parecido, não é sinónimo de zarolho, que isso é alguém que só tem um olho. Por exemplo: “O Pedro é birolho, tem um olho no pão e outro no repolho”. Os birolhos são, portanto, mais frequentes. A Rita Pereira é um exemplo de uma leve birolhice.

 Furgalhos

Isto é exactamente o mesmo que migalhas. É uma questão de preferência. Poderás dizer, por exemplo, “Não deites os forgalhos na cama pá! És birolho ou quê?”, ou “Parte aí um cibo de pão com cuidado, para não esfurgalhar”.

 Porí

Porí é uma expressão que pode ser utilizada no lugar de “se calhar”. “- Porque é que a Maria está ali amarrada? – Não sei, está engaranhada, porí”. Em português de Lisboa isto seria equivalente a “- Porque é que a Maria está ali agachada? – Não sei, está com frio, se calhar”.

 Saronda/Tunda

“Saronda” (já referida anteriormente) é sinónimo de tareia, assim como “tunda”. “O ladrão armou-se em guicho mas levou uma saronda que ficou lá estendido!”

 Bardino/Gandulo

“Bardino”, bem como “gandulo”, são palavras utilizadas para descrever um indivíduo vadio, meio delinquente. o Justin Bieber, por exemplo, é um bardino.

Surro

Quando alguém tem algum tipo de sujidade na pele, por exemplo (os lapouços têm frequentemente sujidade que vem da comida que espalham), pode dizer-se que tem surro. “Ó garota vai-te lavar que estás cheia de surro na cara!” é uma expressão que se ouve várias vezes, quando se lida com crianças.

 Bilhó

Bilhó é uma maneira de designar castanhas assadas sem casca. Tão simples quanto isto. No outono, pela altura do S. Martinho, é frequente comer um manhuço de bilhós depois de almoçar. A palavra pode também ser usada para referir a uma criança pequena, atrevida, guicha. “Este bilhó não sabe estar quieto!”

 Zorra

Talvez das mas engraçadas, é uma palavra que significa “filha bastarda”, como, por exemplo, a filha da Maria Cigana da qual já falamos no slide da Ladradeira. A Maria Cigana tem, portanto, uma zorra em casa.

 A maneira de dizer as horas

Não, neste caso o título não é uma expressão transmontana. Neste caso, o que acontece é o seguinte: sempre que ouvires alguém dizer a preposição “as” ao dizer as horas (por exemplo: “são as 3h da manhã”, em vez de “são 3h da manhã), podes assumir, com 99% de certeza, que essa pessoa vem de Trás-os-Montes. Os transmontanos teimam que faz mais sentido assim, quem não é de lá teima que não. Contudo, achamos que ambas as formas são corretas.


Conhece outras expressões? Partilhe connosco: geral@amontesinho.pt

 




Fonte: Ser Transmontano - https://amontesinho.pt/tras-os-montes/algumas-das-expressoes-que-so-vai-ouvir-em-tras-os-montes/



 


terça-feira, 17 de setembro de 2024

Como é que a sociedade portuguesa vê a corrupção? (Trabalho da Fundação Francisco Manuel dos Santos)

 



Barómetro da Corrupção

Como é que a sociedade portuguesa vê a corrupção? A Fundação lança um novo barómetro para compreender o fenómeno, considerado um dos problemas mais graves que o país enfrenta. A maioria dos inquiridos acredita que a política corrompe, considerando a integridade dos candidatos fundamental na hora de ir às urnas. Entre nesta experiência interativa e conheça os resultados do inquérito.  infografia está disponível no final da página.
Para ler o relatório, clicar aqui

terça-feira, 27 de agosto de 2024

"Caro professor"

 

Foto: Getty Images


Caro professor: compreendo a sua situação. Foi contratado para ensinar uma disciplina e ganha para isso. A escolha do programa não foi sua. Foi imposta. Veio de cima. Talvez tenha ideias diferentes. Mas isso é irrelevante. Tem de ensinar o que lhe foi ordenado. Será julgado pelos resultados do seu ensino – e disso depende o seu emprego. A avaliação do seu trabalho faz-se por meio da avaliação do desempenho dos seus alunos. Se, de uma forma sistemática, os seus alunos não aprenderem, é porque não tem competência.

O processo de avaliação dos alunos é curioso. Imagine uma pessoa que conheça uma série de ferramentas, a forma como são feitas, a forma como funcionam – mas não saiba para que servem. Os saberes que se ensinam nas escolas são ferramentas. Frequentemente os alunos dominam abstractamente os saberes, sem entretanto conhecerem a sua relação com a vida.

Como aconteceu com aquela assistente de bordo a quem perguntei o nome de um rio perto de Londrina, no norte do Paraná. Ela respondeu-me: Acho que é o São Francisco. Apanhei um susto. Pensei que tinha apanhado o voo errado e que estava a chegar ao norte de Minas… Garanto que, numa prova, a rapariga responderia certo. No mapa saberia onde se encontra São Francisco. Mas não aprendera a relação entre o símbolo e a realidade.

É possível que os alunos acumulem montanhas de conhecimentos que os levarão a passar nos exames, sem saber para que servem. Como acontece com os “vasos comunicantes” que qualquer pedreiro sabe para que servem sem, entretanto, conhecerem o seu nome. O pedreiro seria reprovado na avaliação escolar, mas construiria a casa no nível certo. Mas você não é culpado. Você é contratado para ensinar a disciplina.

Cada professor ensina uma disciplina diferente: Física, Química, Matemática, Geografia, etc. Isso é parte da tendência que dominou o desenvolvimento da ciência: especialização, fragmentação. A ciência não conhece o todo, conhece as partes. Essa tendência teve consequências para a prática da medicina: o corpo como uma máquina formada por partes isoladas. Mas o corpo não é uma máquina formada por partes isoladas.

Às vezes, as escolas fazem-me lembrar o Vaticano. O Vaticano, 400 anos depois, penitenciou-se sobre Galileu e está prestes a fazer as pazes com Darwin. Os currículos, só agora, muito depois da hora, estão a começar a falar de “interdisciplinaridade”. “Interdisciplinaridade” é isto: uma maçã é, ao mesmo tempo, uma realidade matemática, física, química, biológica, alimentar, estética, cultural, mitológica, económica, geográfica, erótica…

Mas o facto é que você é o professor de uma disciplina específica. Ano após ano, hora após hora, ensina aquela disciplina. Mas, como ser de dever, tem de fazer de forma competente aquilo que lhe foi ordenado. A fim de sobreviver, faz o que deve fazer para passar na avaliação. A disciplina é o deus a quem você e os alunos se devem submeter. O pressuposto desse procedimento é que o saber é sempre uma coisa boa e que, mais cedo ou mais tarde, fará sentido.

São sobretudo os adolescentes que, movidos pela inteligência da contestação, perguntam sobre o sentido daquilo que têm de aprender. Mas frequentemente os professores não sabem dar respostas convincentes. Para quê aprender o uso dessa ferramenta complicadíssima se não sei para que serve e não vou usá-la? A única resposta é: Tens de aprender porque sai no exame – resposta que não convence por não ser inteligente mas simplesmente autoritária.

O que está pressuposto, nos nossos currículos, é que o saber é sempre bom. Isso talvez seja abstractamente verdade. Mas, nesse caso, teríamos de aprender tudo o que há para ser aprendido – o que é tarefa impossível. Quem acumula muito saber só prova um ponto: que é um idiota de memória boa. Não faz sentido aprender a arte de escalar montanhas nos desertos, nem a arte de fazer iglos nos trópicos. Abstractamente, todos os saberes podem ser úteis. Mas, na vida, a utilidade dos saberes subordina-se às exigências práticas do viver. Como diz Cecília Meireles: O mar é longo, a vida é curta.

Eu penso a educação ao contrário. Não começo com os saberes. Começo com a criança. Não julgo as crianças em função dos saberes. Julgo os saberes em função das crianças. É isso que distingue um educador. Os educadores olham primeiro para o aluno e depois para as disciplinas a serem ensinadas. Os educadores não estão ao serviço de saberes. Estão ao serviço de seres humanos – crianças, adultos, velhos. Dizia Nietzsche: Aquele que é um mestre, realmente um mestre, leva as coisas a sério – inclusive ele mesmo – somente em relação aos seus alunos. (Nietzsche, Além do bem e do mal).

Eu penso por meio de metáforas. As minhas ideias nascem da poesia. Descobri que o que penso sobre a educação está resumido num verso célebre de Fernando Pessoa: Navegar é preciso. Viver não é preciso.

Navegação é ciência, conhecimento rigoroso. Para navegar, são necessários barcos. E os barcos fazem-se com ciência, física, números, técnica. A própria navegação se faz com ciência: mapas, bússolas, coordenadas, meteorologia. Para a ciência da navegação é necessária a inteligência instrumental, que decifra o segredo dos meios. Barcos, remos, velas e bússolas são meios.

Já o viver não é coisa precisa. Nunca se sabe ao certo. A vida não se faz com ciência. Faz-se com sapiência. É possível ter a ciência da construção de barcos e, ao mesmo tempo, o terror de navegar. A ciência da navegação não nos dá o fascínio dos mares e os sonhos de portos onde chegar. Conheço um erudito que tudo sabe sobre filosofia, sem que a filosofia jamais tenha tocado a sua pele. A arte de viver não se faz com a inteligência instrumental. Ela faz-se com a inteligência amorosa.

A palavra amor tornou-se maldita entre os educadores que pensam a educação como ciência dos meios, ao lado de barcos, remos, velas e bússolas. Envergonham-se de que a educação seja coisa do amor-piegas. Mas o amor – Platão, Nietzsche e Freud sabiam-no – nada tem de piegas. O amor marca o impreciso círculo de prazer que liga o corpo aos objectos. Sem o amor tudo nos seria indiferente – inclusive a ciência.

Não teríamos sentido de direcção, não teríamos prioridades. A inteligência instrumental precisa de ser educada. Parte da educação é ensinar a pensar. Mas essa educação, sendo necessária, não é suficiente. Os meios não bastam para nos trazer prazer e alegria – que são o sentido da vida. Para isso é preciso que a sensibilidade seja educada. Fernando Pessoa fala, então, na educação da sensibilidade.

Educação da sensibilidade: Marx, nos Manuscritos de 1844, dizia que a tarefa da História, até então, tinha sido a de educar os sentidos: aprender os prazeres dos olhos, dos ouvidos, do nariz, da boca, da pele, do pensamento (Ah! O prazer da leitura!). Se fôssemos animais, isso não seria necessário. Mas somos seres da cultura: inventamos objectos de prazer que não se encontram na natureza: a música, a pintura, a culinária, a arquitectura, os perfumes, os toques.

No corpo de cada aluno encontram-se, adormecidos, os sentidos. Como na história da Bela Adormecida… É preciso despertá-los, para que a sua capacidade de sentir prazer e alegria se expanda.


in https://contadoresdestorias.wordpress.com/2012/02/19/caro-professor-rubem-alves/

Rubem Alves Gaiolas ou Asas - A arte do voo ou a busca da alegria de aprender

Porto, Edições Asa, 2004 (excertos adaptados)


domingo, 14 de abril de 2024

Mulheres, em casa, a reproduzir filhos e preconceitos

 



14 de abril de 2024 

Mulheres, em casa, a reproduzir filhos e preconceitos

Bárbara Wong

Passaram quase 30 anos. Estávamos sentadas no bar da faculdade, a um semestre de terminar o curso, cheias de dúvidas sobre o que iríamos fazer a seguir, se iríamos trabalhar, onde, a fazer o quê. Ela, com uma écharpe e umas argolas pejadas de pérolas disse, segura, com a sua voz anasalada: "Eu vou casar, bem, e ficar em casa a educar os meus filhos." Houve quem se risse, quem gozasse. Eu fiquei atónita porque percebi que aquele era mesmo o plano: casar, "bem", ficar em casa e ter filhos.

Anos depois, encontrei-a na praia, num fato de banho preto com bolas brancas, escondido por detrás de um páreo branco, não trazia pérolas nas orelhas, mas ao pescoço, e tentava controlar uma ninhada, toda vestida aos quadradinhos, eles de azul-bebé, elas de rosa clarinho e folhos. Atrapalhadíssima e nuns decibéis acima das ondas que batiam na areia, chamava, com a sua voz anasalada, petit nom atrás de petit nom, tratando-os por "você" — já se sabe, como contam Ana e Isabel Stilwell, há sempre guerras entre irmãos. Com os olhos varri a praia, à procura do pai (que não conhecia), percebi mais tarde que estava sentado debaixo do toldo da família.

Reconhecemo-nos, mas não falámos. Eu só tinha uma pergunta em mente, "sempre cumpriste o teu plano?", e achei por bem não a fazer. Sorrimos e acenámos. Mas tinha de colocar a questão a alguém. Liguei a uma amiga comum, que me respondeu que o marido da colega das pérolas era um advogado de sucesso, que eram uma família ultraconservadora (a indumentária de mãe e filhos já o tinha denunciado) e que, quando ela tinha um jantar de amigas, ele ligava e mandava mensagens a pedir-lhe para voltar para casa, que ele e os filhos estavam "cheios de saudades".

Vivemos um momento em que, aparentemente, os homens se sentem inseguros e têm medo das mulheres, têm medo da sua inteligência (elas estudam mais que eles, é certo), da sua independência e, Liliana Carona acrescenta, da sua beleza. Na sua crónica, a jornalista cita estudos norte-americanos que revelam que "os homens distanciam-se e mostram menos interesse pelas mulheres que os ultrapassavam, a nível de inteligência/capacidades". E assistimos a este movimento entre os jovens rapazes, muitos votantes na extrema-direita não democrática.

Lembrei-me da colega das pérolas quando, nesta semana, se deu a apresentação do livro Identidade e Família — é possível que ela lá estivesse —, e ouvimos tantas palavras vindas do passado, sobre famílias tradicionais e da função da mulher dona de casa. Lembrei-me dela ao ler o texto de Monica Hesse sobre mulheres que ficam em casa e o lazer feminino. A jornalista norte-americana destaca as mulheres que perceberam que a vida pode ser mais fácil se ficarem dependentes de alguém. Se casarem "bem", acreditam que não terão problemas. Há um movimento de influencers nas redes sociais que louvam os benefícios de ser dona de casa. O que Hesse não refere é que muitas destas mulheres são evangélicas ou apoiadas por movimentos evangélicos, os mesmos que apoiam Trump, os mesmos que, por cá, aparentemente estão por detrás do ADN, como escreveu Carmen Garcia há umas semanas.

Mas Hesse foca também a falta de tempo das mulheres trabalhadoras para o lazer (queixa que os homens também terão). No fundo, tudo isto é um pau de dois bicos. Por um lado, conquistámos o direito ao trabalho fora de casa; por outro, o de dentro de casa mantém-se. Por um lado, conquistámos o direito a uma carreira; por outro, somos mal remuneradas — é entre os jovens que o fosso salarial é mais grave. Por um lado, sonhamos com promoções; por outro, estamos exaustas quando chegamos a casa. Diz Monica Hesse: "As mulheres que foram educadas sobre as virtudes da independência feminina foram enganadas. Sim, podemos ter carreiras de sucesso. Mas ninguém diminuiu a quantidade de roupa suja ou de tarefas que ainda precisam de ser feitas. Ninguém acrescentou mais horas ao relógio.​"

Fomos enganadas porque ainda há homens que "ajudam" lá em casa e não percebem que têm de dividir tarefas. Monica Hesse dá exemplos de mulheres que optaram pela casa até sonharem com um trabalho. "E ela é feliz?", perguntei à minha amiga sobre a colega das pérolas. Fez-se um silêncio: "Eu acredito que o feminismo também é isto, o teres liberdade para viveres a vida que planeaste." Sem dúvida, eu concordo que tens liberdade para viveres o teu sonho, mas não tens de o impor aos outros, não tens de pôr em causa todos os direitos conquistados e quereres que todas tenhamos de ficar em casa, a reproduzir filhos e preconceitos. Além disso, não foi isso que perguntei. "Não a vejo a ter momentos de dúvida. Eles são ultraconservadores", responde a nossa amiga comum. 

Assustam-me sempre as pessoas que não têm dúvidas (ou raramente as têm), como é o caso do "cara valente" sobre o qual Ana Lázaro escreve, em mais um dos seus contos. É um homem capaz de tudo, menos de viver emoções — porque os homens não são educados para falarem sobre as suas emoções. "Faltava-lhe o atrevimento, a coragem para o amor. Porque para o amor é preciso bravura. É preciso audácia para mergulhar no desconhecido de uma escuridão profunda que se esconde para dentro de nós." Foi mais uma relação que não resultou na vida da nossa narradora.

Inês Meneses fala-nos da "prateleira da vergonha", aquela onde colocamos as relações que não foram felizes, mas como essas foram importantes para crescermos: "É preciso rir para que o amor possa ser sempre melhor e nos tornemos mais exigentes com ele. Connosco." O psicólogo Jason Wu explica como combater a vergonha pode ajudar a construir um sentido de identidade saudável. Por isso, cara colega das pérolas, se algum dia tiveres dúvidas, não tenhas vergonha e sabe que podes pedir uma indemnização pelo trabalho em casa não remunerado e recomeçar uma nova vida. 

Boa semana!

Bárbara Wong

bwong@publico.pt