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domingo, 24 de junho de 2012

Como o Estado gasta o nosso dinheiro

Todos os dias entregamos ao Estado uma parte substancial dos nossos rendimentos sob a forma de impostos. E acreditamos que o Estado vai gerir esse dinheiro de forma conscienciosa, em obediência aos critérios da boa gestão financeira. Não é, porém, o que acontece. Mais vezes do que seria aceitável, o capital que tanto nos custou amealhar é usado em negócios ruinosos com o setor privado; ou desbaratado em obras públicas que economicamente não fazem qualquer sentido. Não só pagamos os impostos, como a fatura da sua má gestão.
Ao gastar alegremente mais do que tem, o Estado acumula uma dívida. E quem tem de a assumir somos nós, os contribuintes, que pagamos o descontrolo das finanças estatais com novos impostos, e ainda mais sacrifícios.
É um ciclo vicioso chocante, consequência de um festim de maus gastos públicos sem fim à vista. E uma realidade que Carlos Moreno acompanhou de perto enquanto Juiz Conselheiro do Tribunal de Contas.
Ao longo de 15 anos assinou mais de 100 relatórios de auditoria, passou a pente fino os gastos com a Expo 98, com as famigeradas SCUT, os Estádios do Euro 2004, a Casa da Música, o Túnel do Rossio, o terminal de contentores de Alcântara.




Portugal é o país europeu com o maior número de PPP (Parcerias Público-Privadas), quer em relação ao PIB quer em relação ao Orçamento de Estado. Em 2009, o nosso país, cuja população é semelhante à da grande Paris, contratou três vezes mais PPP do que a França e mais ainda do que qualquer outro país da Europa.

Portugal é o campeão europeu das PPP - mas das PPP que afogam os contribuintes em dívidas, em especial os das gerações futuras, como revela a análise caso a caso a que a seguir procedo. Segundo a "League Tables Project Finance International", Portugal aparece distanciado, no topo da lista, com 1.559 mil milhões de euros de empréstimos, seguido de França com 467, da Polónia com 418, da Espanha com 289, da Irlanda com 141 e da Itália com 66 mil milhões. (...)

A partir dos anos 1990, as PPP tornaram-se a regra em Portugal, ao arrepio do que sucedia na generalidade dos países europeus. Tudo o que os governos retiram a partir de então do Orçamento do Estado como investimento público, por força das restrições orçamentais impostas por Bruxelas, passa sistematicamente para investimento privado em regime de PPP.

A habilidade é notória: os responsáveis continuam a mostrar obra, mas não a pagam agora. Agora quem a paga são os privados. A fatura para os contribuintes virá depois. No imediato, todos ficam satisfeitos. A União Europeia deixa de se preocupar com o défice e a dívida. Os governantes e os governados aumentam as respetivas expectativas de mais votos e melhor nível de vida. Os parceiros privados fazem excelentes negócios.

O negativo da fotografia não se vê: está reservado para as gerações futuras.
Muito de tal investimento privado passa a ser, não só remunerado pelas receitas geradas pelo próprio projeto, ao longo dos 30 ou 35 anos das concessões, como beneficia igualmente de compensações várias que o concedente público caso a caso negoceia (ou renegoceia) pagar ao concessionário, ao longo da vida do contrato.


E assim sendo, há uma fatura que sobra para os contribuintes das gerações vindouras, durante longos anos...


Texto retirado de Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro, Edição Leya, 2010, de autoria de Carlos Moreno, Juiz Jubilado do Tribunal de Contas.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Reflexão sobre o erro

Toda a minha obra pode ser entendida como uma reflexão sobre o erro. Sim, sobre o erro como verdade instalada e por isso suspeitosa, sobre o erro como deturpação intencional de factos, sobre o erro como ilusão dos sentidos e da mente, mas também sobre o erro como ponto necessário para chegar ao conhecimento.

«Nesta compilação (...) oferece-se um amplo repertório de palavras suas [de José Saramago] extraídas exclusivamente de jornais, revistas e livros de entrevistas (...) num leque cronológico que abrange a segunda metade dos anos setenta e vai até Março de 2009. Os extractos seleccionados foram obtidos a partir de um vasto corpus de declarações publicadas em países muito diversos: Portugal, Espanha, Brasil, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Argentina, Cuba, Colômbia, Peru... (...). Este é, enfim, um livro dos muitos possíveis que se poderiam apresentar sob a orientação que o anima e é, ainda assim, uma obra aberta, que não se esgota na literalidade que aqui é adoptada, com a vontade, não obstante, de esboçar uma arquitectura ideológico-social saramaguiana idónea, de dar consistência a uma identidade precisa.»


Soy un grito de dolor e indignación”, ABC (Suplemento El Semanal), Madrid, 7-13 de Janeiro de 2001. In José Saramago nas Suas Palavras, Fundação José Saramago.

domingo, 11 de setembro de 2011

Pobres, Políticos, Seriedade

Mendigos à beira-mar, de P. PICASSO
O livro de Paul Collier - Os Milhões da Pobreza: Por Que Motivo os Países mais Carenciados do Mundo Estão a Ficar cada vez mais Pobres? – é interessantíssimo, com uma abordagem muito clara de um problema complexo e doloroso que persiste, que nos envergonha, precisamente porque ainda não houve da parte de quem verdadeiramente pode (e deve) aquela vontade enorme de acabar com este flagelo e este horror.
A sua leitura, como tantas outras leituras e pensamentos, levou-ma a escrever estas linhas pensando justamente que a pobreza não é inevitável e a ajuda e formas para a combater existem, do mesmo modo que o esbanjamento de uns é e será sempre desgraça de outros.

A indiferença dos grandes centros de decisão política e económica mundial perante as desigualdades cada vez mais contrastantes do mundo actual, o individualismo e arrogância dos países mais ricos, a sedução por carreiras na política e na banca rápidas, com ganhos escandalosamente fáceis, o fascínio pela mediatização meteórica de quem sempre à sombra esteve, a falta de formação política e cultural, a falta de seriedade, de humanidade, a indiferença dos governantes perante a adversidade do seu povo, o autoritarismo da sua acção e a forma como se continuam a apropriar do Poder, continuarão a demolir a democracia, alheios que estão ao clamor do povo a que pertencem, até ao dia em que esse mesmo povo os confronte, olhos nos olhos, com a real dimensão da sua perversidade e mesquinhez.

Este livro de Paul Collier levou-me, mais uma vez, a esta constatação e a esta angústia. Faz uma abordagem extraordinariamente inteligente e muito acessível da pobreza, um dos factores que mais conflitualidade gera no mundo actual e que mais se tem imposto para esta terrível diferenciação entre ricos e pobres (países e pessoas), trazendo para a reflexão a corrupção e aquela gente que continua a fazer da mesma o seu modus vivendi e modus operandi graças, claro, ao avolumar da miséria humana que vai provocando, à diferenciação social consequente e à conflitualidade interna e externa que naturalmente ocasionará, tornando cada vez mais instável as relações de vizinhança entre países e a concretização dos tratados de paz e de ajuda alimentar, entre outros, que garantam estabilidade e justiça para todos.

Mas muitos governantes continuam a servir-se das Política, melhor dizendo, acham-se políticos mas não são governantes e, nesse sentido, afastam-se premeditadamente e de forma vil de tomadas de posição que verdadeiramente visem o bem comum, o bem-estar do seu povo. E até falseiam, na prática, os acordos bilaterais efectuados, ferindo de morte e de cinismo a harmonia tão desejada, incentivando, com uma parcialidade política repugnante, as decisões acordadas quer se trate de situações de cessar-fogo, de acudir humanitariamente às populações, de as proteger e defender.

As relações internacionais não se compadecem da falta de integridade moral dos seus elementos, caso contrário, nada passará, como tem passado, de meros encontros ocasionais e promocionais.

Também considero que dentro das nações, sobretudo as que vivem mais profundamente esta tragédia e este drama da pobreza, o confronto entre reformadores e líderes corruptos está a ser ganho por estes últimos. E não estou a pensar só na África Subsaariana!

Embora compreenda que os conflitos armados actuais têm na sua base, quase todos, o problema da dependência do petróleo e a exploração de outros recursos naturais, continuo a considerar fulcral a má governação que deriva, naturalmente, da inexistência de bons políticos, leia-se, políticos sérios, seriamente envolvidos com o seu povo e não com a sua carreira e projecção política.

Políticos sérios que levem a sério ACÇÕES SÉRIAS, planeadas quer economicamente quer comercialmente e militarmente, no sentido de ajudarem, realmente, a combater os verdadeiros factores que tanta dor têm trazido a tanta gente por esse mundo fora, aos mais pobres, aos desfavorecidos de sempre da sorte e da vida.

De nada valerão os tratados de paz, ajudas humanitárias, sorrisos diplomáticos e fotos de conjunto se não houver seriedade na Política.

Jamais se resolverá a pobreza no Mundo e a injustiça no Mundo enquanto se continuar a fazer de conta que se faz aquilo que de facto, pouco ou nada se faz:

olhar para o outro e ajudá-lo, porque devo e posso, e não por mera atitude de caridadezinha política, como quem uma esmola dá porque da bajulação necessita e dela espera tirar proveito.

Nazaré Oliveira



Mais leituras:
http://www.whiteband.org/
http://www.worldmapper.org/textindex/text_poverty.html
http://www.madrimasd.org/blogs/universo/2008/10/16/103747
http://www.schwartzman.org.br/simon/causasp.html
http://www.monografias.com/trabajos12/podes/podes.shtml
http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1309943272N1oFR1kd5Wr48SW2.pdf
http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/edicion_impresa/economia/pt/desarrollo/1046490.html

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Biblioteca - lugar mágico



A Biblioteca foi sempre, para mim, um lugar mágico! Um mundo sempre à minha espera, colorido, tranquilo, enigmático, surpreendente, que exploro com a alegria e a vontade de saber como se fosse a primeira vez!
Sempre uma descoberta! E o prazer de a fazer!


Procuro livros, autores, temas, gravuras, mapas, ideias, críticas, gentes, lugares, histórias, vidas, o sonho, o ontem, o hoje, procuro o ser e o sentir, procuro o olhar, toco, sou tocada, sorrio, aprendo.

Parto para um encontro que em encontros se revela e perco-me nas estantes sustidas pelo tempo.

Pelo tempo da História e pela História dos Tempos.

Um livro, dois livros, este e aquele pormenor, uma opinião, uma crítica histórica ou literária, uma crónica do século XV, um testemunho da Segunda Guerra Mundial, um quadro de Kandinsky ou de Monet ou uma catedral gótica ou uma iluminura medieval, um artigo de imprensa, um soneto de Camões, versos de Guerra Junqueiro, fotografias da África colonial… Cartografia…Biologia…Literatura inglesa, francesa… A sedução da procura de conhecimento animada pelo gosto em saber!

Tanta coisa! Tão fácil! Tão perto de mim!

Por exemplo: numa antiga revista portuguesa – Revista dos Lyceus - , 2º ano, 1892/93, encontrei um curiosíssimo apontamento sobre “a importância do estudo de litteratura”, página 342, no qual se cita Cícero, Lefranc, entre outros.

O primeiro diz que “ as Boas lettras dão-nos alento na adolescência, suavisam a vida na velhice, e adornam a existência nas prosperidades; são-nos allivio e consolação nas adversidades; recreiam-nos em casa; pernoitam comnosco; acompanham-nos em viagem, e assistem-nos em o campo (…)”; o segundo, Lefranc, refere que “a Litteratura ennobrece e pule o espírito, orna a memoria e aperfeiçoa o gosto; forma o coração; desenvolve as faculdades intellectuaes, e se torna para o homem fonte dos mais doces prazeres. Presta auxílio ás sciencias abstratas e philosophicas, e ás verdades mais sensíveis; e o philosopho e o sábio, se quizerem ser bem sucedidos, devem ser ao mesmo tempo homens de Lettras (…)”.

Faz-nos bem, digo eu!


Nazaré Oliveira

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

De Amor e de Sombra


Que livro fantástico! Que história tão bela, esta, do amor entre dois jovens, Francisco e Irene, apesar de ameaçada pela sombra da ditadura de Augusto Pinochet.

Irene, jovem jornalista aristocrata, que vive à margem da política, completamente alheia às atrocidades cometidas pela ditadura militar; Francisco, fotojornalista oriundo de uma família da baixa burguesia, de esquerda, que sobrevive com dificuldades.

Uma história de amor intemporal. Uma sensibilidade incrível que Isabel Allende mostra mais uma vez e, como sempre, a sua posição contra a ditadura, contra os regimes ditatoriais, sanguinários, neste caso, o de Pinochet, com dezassete anos de brutalidade e crueldade sobre o povo chileno - os pobres, os perseguidos por razões políticas, os torturados, os exilados, os que lutam pela liberdade e justiça social.

É simplesmente magistral a forma como Isabel Allende enlaça a História nos seus romances e nos reaviva a memória colectiva e a consciência histórica.

"De amor e de Sombra" é, também, a luta dos que acreditam que outra sociedade é possível, onde a ética política e os direitos humanos sejam a realidade há tanto desejada e justamente reivindicada.

A propósito deste seu livro, diz Isabel Allende:

Esta é a história de uma mulher e de um homem que se amaram plenamente, salvando-se assim de uma existência vulgar. Trouxe-a na memória conservando-a para que o tempo não a desgastasse e é só agora, nas noites silenciosas deste lugar, que finalmente posso contá-la. Fá-lo-ei por eles e por outros que me confiaram as suas vidas, dizendo: toma, escreve, para que o tempo não o apague.

Nazaré Oliveira

Isabel Allende. De amor e de Sombra. Difel, Difusão Editorial, S.A., 11ª edição, 1997.


Para saber mais:

domingo, 7 de agosto de 2011

Cântico Final - Aparição

 

Dois dos primeiros livros que li, de Virgílio Ferreira, e que marcaram para sempre o meu gosto por este autor. E já lá vão muitos anos!

Os horizontes da interrogação existencial que toda a obra de Vergílio Ferreira visa, anunciam-se já em Cântico Final (1960), uma obra intimista que retrata um personagem cujos contornos se definem à medida que o vaivém da sua memória se envolve em torno de indivíduos e acções dominantes. Foi de tal modo apaixonante que parti de imediato para a leitura do Aparição, que adorei.

João Palma Ferreira, a propósito de Virgílio Ferreira, escreveu: “toca os extremos da riqueza lírica e intimista e os da realidade concreta, não para os tentar fundir num conjunto harmonioso mas para os fazer contrastar”.

O tema essencial de toda a sua obra foi certamente o da procura do sentido da existência num universo sem sentido, fazendo-o navegar no que Eduardo Lourenço chamou um "niilismo criador" e um "humanismo trágico", explorando até à exaustão o tema do "eu", ao mesmo tempo eterno e inscrito na finitude, a mesma finitude que o embrenha na temática da morte, num homem que heroicamente, e também angustiadamente, suporta o desafio da finitude.

"Tenho a corrupção lenta do tempo, tenho a eternidade a executar". Eis, numa breve expressão de Rápida a Sombra, a dimensão trágica do seu pensar, onde se desenrola uma intensa reflexão sobre o corpo e a morte. Há em todo o homem são um impulso para um mais daquilo que se é no presente, e que jamais se alcança, ou que se sabe jamais poder alcançar-se ("um apelo ao máximo" que vem do máximo que o homem é), num processo infindo a que só o absurdo da morte põe termo: "Na profundidade de nós, o nosso eu é eterno, e todavia é justamente o corpo que nos contesta a eternidade".

No entanto, novo conflito deflagra entre essa exaltação divinatória, e a consciência trágica da sua corruptibilidade e da sua objectiva degradação, lançando o homem na angustiante consciência da sua "infinitude limitada", e ao mesmo tempo no plano heróico de saber que a morte o espera, devendo viver "como se ela não contasse", ou, como escreveu em Nítido Nulo: "viver a eternidade e, num momento de distracção, cortarem-lha rente".

Atravessa a sua obra o discurso da solidão, como um dos aspectos mais profundos da condição humana, sempre acompanhado pelo silêncio que advém do abandono da entidade divina. As personagens de Vergílio Ferreira assumem um papel questionador, procurando sentido, uma vez que o mundo aparecia sob a forma de uma absurda estupidez.

Cons.:

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Cântico negro

José Régio, um dos meus poetas preferidos, nascido em Vila do Conde, terra que adoro e da qual tenho saudades.
O seu livro "Poemas de Deus e do Diabo" foi dos primeiros que li na minha adolescência.
Aqui, um dos seus extraordinários trabalhos: Cântico Negro.


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou.
Sei que não vou por aí!





Pequena biografia:

José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras, em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença" e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Por quem os sinos dobram

Obra-prima!
Em 1937, Ernest Hemingway decidiu ir para Madrid, a fim de aí realizar algumas reportagens sobre a resistência do governo legítimo de Espanha ao avanço dos revoltosos fascistas. Três anos mais tarde, concluiria a elaboração do mais famoso romance sobre a guerra civil de Espanha, Por Quem os Sinos Dobram. A história de Robert Jordan, um jovem americano das Brigadas Internacionais, membro de uma unidade guerrilheira que combate algures numa zona montanhosa, é uma história de coragem e lealdade, de amor e derrota, que acabou por constituir um dos mais belos romances de guerra do século XX.
«Se a função de um escritor é revelar a realidade», escreveria o editor Maxwell Perkins em carta dirigida a Hemingway após ter concluído a leitura do seu manuscrito, «nunca ninguém o fez melhor do que você.»

domingo, 15 de maio de 2011

Para uma neutralidade crítica



A propósito do post A pedagogização do sexo, um leitor disse o seguinte: "A ideia de neutralidade não é absurda. Acredito que, dentro do possível, não devo levar para a sala de aula as minhas posições políticas, religiosas, etc."
Em certa medida, o leitor tem razão pelo facto de não ter explicado em que sentido estava a usar a expressão neutralidade e, de modo mais concreto, neutralidade axiológica.

Deixarei neste blogue um conjunto de textos que discutem o sentido dessa expressão e que, no meu entender, a clarificam suficientemente.

Começo por um do filósofo Fernando Savater, retirado do seu livro O valor de educar. (Edições Presença ou Dom Quixote).

"É compreensível o temor face a um ensino sobrecarregado de conteúdos ideológicos, face a uma escola mais preocupada em suscitar fervores e adesões inquebrantáveis do que em favorecer o pensamento crítico autónomo. A formação em valores cívicos pode converter-se, muito facilmente, em doutrinamento para uma docilidade bem pensante, que levaria ao marasmo se chegasse a triunfar; a explicação necessária dos nossos principais valores políticos pode, também facilmente, resvalar para a propaganda, reforçada pelas manias castradoras do «politicamente correcto» (…).

Daqui que alguma «neutralidade» escolar seja justificadamente desejável, face às opções eleitorais concretas, oferecidas pelos partidos políticos, face às diversas confissões religiosas, face a propostas estéticas ou existenciais que surjam na sociedade. Terá de ser uma neutralidade relativa, sem dúvida, porque não pode recusar a consideração crítica dos temas do momento (que os próprios alunos, frequentemente, irão solicitar e que o mestre competente terá de fazer, sem pretender situar-se fora, mas declarando a sua tomada de posição, enquanto fomenta a exposição razoável das outras) ainda que deva evitar converter a sala de aulas numa fastidiosa e logomaquia sucursal do Parlamento. É importante que na escola se ensine a discutir mas é imprescindível deixar bem claro que a escola não é um foro de debates nem um púlpito.

Não obstante, essa mesma neutralidade crítica corresponde, por sua vez, a uma determinada forma política, perante a qual não é possível ser neutral no ensino democrático: refiro-me à própria democracia. Seria suicida que a escola renunciasse a formar cidadãos democratas, inconformistas mas em conformidade com o que o modelo democrático estabelece, inquietos pelo seu destino pessoal mas não desconhecendo as exigências harmonizadoras do público. Na desejável complexidade ideológica e étnica da sociedade moderna (…) fica a escola como o único âmbito geral que pode fomentar o apreço racional por aqueles valores que permitem a convivência conjunta aos que são satisfatoriamente diversos. E essa oportunidade de inculcar o respeito pelo nosso mínimo denominador comum não deve, de modo algum, ser desperdiçada.

Não pode nem deve haver neutralidade, por exemplo, no que corresponde à recusa da tortura, do racismo, do terrorismo, da pena de morte, da prevaricação dos juízes ou da impunidade da corrupção em cargos públicos, nem tão-pouco na defesa das protecções sociais da saúde ou da educação, da velhice ou da infância, nem no ideal de uma sociedade que corrija o mais possível o abismo entre opulência e miséria. Por quê? Porque não se trata de simples opções partidárias mas sim de benefícios da civilização humanizadora que já não é possível renunciar sem se incorrer em concessão à barbárie.

O próprio sistema democrático não é algo natural e espontâneo nos seres humanos, mas sim algo conquistado, através de muitos esforços revolucionários no campo intelectual e político: portanto, não pode ser dado como certo, mas deve ser ensinado com a maior persuasão didáctica compatível com o espírito de autonomia crítica. A socialização política democrática é um esforço complicado e resvaladiço, mas irrenunciável (…).

A recomendação racional de tais valores não deve ser uma mera litania edificante que, no melhor dos casos, acabará por aborrecê-los. Será preferível mostrar como conseguiram ser historicamente imprescindíveis, e o que ocorre onde, por exemplo, não há eleições livres, tolerância religiosa ou os juízes são venais. Seria absurdo mostrar às crianças as falhas do mundo em que vivemos (…) [sem lhes inspirar] uma prudente confiança nos mecanismos previstos para emendá-las."

Posted by Helena Damião at 00:35 - DE RERUM NATURA Labels: educação escolar, valores 9.5.11