sábado, 16 de abril de 2016

Como agem os 28 bancos que dominam as finanças globais

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Num livro indispensável, Franços Morin disseca as instituições “sistémicas” cujo poder é muito superior ao da maior parte dos Estados. O que é a “hidra global” e como exerce seu domínio

“Os Estados são reféns desta hidra bancária e são disciplinados por ela. A crise prova esse poder”, afirma François Morin, autor do livro A Hidra Mundial, o Oligopólio Bancário, professor emérito da Universidade de Toulouse e membro do conselho do Banco Central francês.
“Os grandes bancos detinham os produtos tóxicos responsáveis pela crise, mas, em vez de reestruturá-los, os Estados acabaram assumindo suas obrigações – e a dívida privada se transformou em dívida pública.”
Em seu livro, o pesquisador se concentra em cinco mecanismos que, segundo ele, concedem aos bancos esta hegemonia financeira, económica e política.


1. Ativos
 Getty
A queda do Lehman Brothers, em 2008, marcou o começo da crise económica mundial

Os 28 bancos detêm recursos superiores aos de dívidas públicas de 200 países do planeta. Enquanto estas entidades têm ativos (bens, dinheiro, clientes, empréstimos, entre outros) que somam US$ 50,3 trilhões (R$ 178 trilhões), a dívida pública mundial é de US$ 48,9 trilhões (R$ 173,7 trilhões).
Outra forma de dimensionar a questão: há centenas de milhares de bancos no mundo, mas estes concentram 90% dos ativos financeiros bancários. Com a hiperconcentração, a queda de um ou mais destes bancos tem um potencial devastador não apenas no setor, mas na economia global.
Essa é a base do argumento no centro do debate depois de 2008: o risco de instituições “too big to fail” (grandes demais para quebrar, em inglês).
Segundo Oscar Ugarteche, economista da Universidade Nacional Autônoma do México e autor de A Grande Mutação, que estuda o novo sistema financeiro mundial, com esse nível de concentração do poder financeiro, há “grande possibilidade” de repetição de uma crise como a de 2008.
“Estes mercados cresceram com a liberalização financeira dos últimos 30 anos”, diz o economista. “Foi com sua participação nos mercados especulativos que se chegou (à crise de) 2008.”

2. Criação de moeda

O sistema clássico de emissão monetária é formado por uma Casa da Moeda que imprime as notas necessárias a um Banco Central, que está posicionado no centro da cena financeira. Mas, hoje, 90% da moeda é criada por estes 28 bancos, e só 10% é de responsabilidade de bancos centrais.
A transição do dinheiro físico para o dinheiro creditício está mudando esta equação. “Estamos fechando o círculo. No começo, havia bancos que faziam operações de comércio exterior e interno. Era dinheiro-crédito. Mas não havia controle e centralização desta função”, diz Ugarteche.
“Isso só começa a acontecer com a criação de um Banco Central responsável pela emissão monetária. O primeiro é o da Inglaterra no século 17. Mas, com a desregulamentação bancária dos anos 1990, estamos voltando ao princípio. Os bancos emitem crédito, e não há muito controle a respeito”, afirmou.
Se antes a expansão do dinheiro era de certa forma protegida pelo nível de reserva monetária de um país, hoje em dia, este limite perdeu a relevância.
Em meio a esta total flexibilização de crédito, a consultoria McKinsey estima que a dívida total – isto é, a soma da dúvida pública, privada e individual – tenha crescido mais de US$ 57 trilhões nos últimos sete anos e, hoje, chega aos US$ 200 trilhões (R$ 710,7 trilhões), cerca de três vezes o PIB mundial.

3. Mercado cambial

A movimentação no mercado cambial é uma das maiores do mundo: US$ 6 bilhões (R$ 21,3 bilhões) diários. Cinco dos 28 bancos controlam 51% deste mercado.
“O câmbio nos Estados Unidos e no Reino Unido não depende das variáveis econômicas de um país. Basta que operadores, vinculados aos bancos, decidam que o valor de uma moeda não se sustenta para que a ataquem especulativamente”, diz Ugarteche.
“Com compras ou vendas maciças, arrastam o resto dos atores do setor financeiro, provocando uma modificação no câmbio que não tem nada a ver com a saúde econômica de um país.”


4. Taxas de juros
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 A situação mudou pouco desde 2008, dizem críticos do sistema financeiro


Com seu potencial financeiro, estas 28 entidades têm um peso fundamental sobre as taxas de juros. Dado o nível altíssimo de circulação diária de ativos financeiros e de dívida, qualquer variação da taxa de juros faz girar automaticamente quantidades enormes de dinheiro.Estados Unidos, Grã-Bretanha e Comissão Europeia deram início em 2012 a uma investigação que mostrou como este nível de concentração dos bancos leva a uma manipulação do mercado.

Segundo a investigação, 11 dos 28 bancos – Bank of America, BNP-Paribas, Barclays, Citigroup, Crédit Suisse, Deutsche Bank, Goldman Sachs, HSBC, JP Morgan Chase, Royal Bank of Scotland e UBS – se comportaram como “entidades ou grupos organizados” ao manipular as taxas de juros chamadas “Libor”.
A Libor é fechada diariamente em Londres e determina a taxa com que bancos emprestam. Tem impacto direto no mercado de derivativos e no que é pago por consumidores e produtores para quitar dívidas.
“Nada mudou. Um escândalo parecido ocorreu recentemente com Goldman Sachs, Morgan Stanley e JP Morgan no mercado de commodities”, afirma Ugarteche.

5. Derivativos
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A crise de 2008 teve consequências graves em vários países do mundo, incluindo a Grécia

A metade dos 28 bancos produzem os chamados derivativos por US$ 710 trilhões, o equivalente a dez vezes o PIB mundial. Ugarteche ilustra o funcionamento deste mercado com um ativo financeiro bem modesto: uma vaca.
O que fazer para transformar a vaca em dinheiro? Em outras épocas, ela era vendida em troca de uma quantidade de dinheiro. Mas, hoje, outra opção é possível: uma transação futura.
Por exemplo: são vendidos o lucro em potencial que será obtido com o leite da vaca ou os bezerros que ela irá parir. É possível também vender o eventual leite que estes eventuais bezerros possam produzir, caso sejam fêmeas.
“A partir de uma vaca real, é criada uma economia fictícia construída mediante o uso de operações financeiras distintas. É um mundo de probabilidades. O bezerro é um futuro possível, nada além disso, assim como outros rendimentos obtidos a partir da vaca. O que acontece se a vaca ficar doente?”, questiona Ugarteche.
Caso isso ocorra, as operações efetuadas vão para um buraco negro. E foi assim que, em 2008, desapareceram mais de US$ 200 bilhões, o que arrastou em sua queda dispositivos de segurança que supostamente garantiam todo o fluxo de valores financeiros.





 No Marcelo Justo, na BBC

sábado, 9 de abril de 2016

Offshores: não é uma questão fiscal, é uma questão de democracia




Offshores: não é uma questão fiscal, é uma questão de democracia


09/04/2016 - 00:05 PÚBLICO
Se queremos salvar a democracia no século XXI, o problema do dinheiro anónimo, escondido, fugido e protegido algures é objectivamente mais dissolvente do que os tiros de uma Kalashnikov nas ruas de Bruxelas.


Nas suas declarações sobre as revelações (mais confirmações do que revelações) dos chamados “Documentos do Panamá”, Marcelo Rebelo de Sousa foi ao âmago da questão quando disse que o problema dos offshores era um problema de democracia. E é.

Os offshores são, antes de tudo, do crime, da lavagem de dinheiro, da fuga ao fisco, uma questão que significa para as democracias a perda de um princípio básico — o de que o poder político legitimado pelo voto e pelo primado da lei se sobrepõe ao poder económico. Por isso, tratar a questão dos offshores apenas como sendo de natureza fiscal e andar às voltas por aí é já um mau ponto de partida.

A questão que muitas vezes é iludida é que não existe uma única razão económica sólida para que hajam offshores. Para que é que eles servem para a economia, para a produção, para o emprego, para a indústria, para o comércio, para o investimento limpo? Nada. Tudo aquilo para que os offshores servem é para esconder dinheiro e os seus proprietários, para esconder a origem do dinheiro, através de um conjunto de fachadas anónimas que depois vão desaguar aos grandes bancos sediados na Suíça ou em Londres.

O que os políticos europeus dizem, quando confrontados com esta realidade, ou com os escândalos periódicos, como o actual com os documentos da Mossack Fonseca, é que não podem fazer nada e que o que podem fazer fazem. Por detrás desta declaração de impotência — eu estou a falar de políticos democráticos — está o retrato da captura ocorrida nas últimas décadas, e agravada pela crise de 2008, da política em democracia pelos interesses financeiros globais, pela banca, pelos “mercados”. Sim, porque uma das faces semivisíveis dos offshores são os biliões que circulam em fundos e outros tipo de operações financeiras e bancárias, a que nós chamamos os “mercados”, o Deus ex machina que faz mover os países como marionetas.

Podem fazer alguma coisa? Podem fazer tudo. Repito: podem fazer tudo. E acrescento: mas não querem. Podem fazer tudo, mas não querem — esta é a frase que melhor resume o “problema para a democracia”. E não querem por dois motivos. Um de fraqueza política, — a maioria dos políticos europeus são gente frágil à frente de países fragilizados, uma combinação de que resulta uma imensa fraqueza para lidar com interesses poderosos, como são os que estão por detrás e pela frente dos offshores. O outro é a hegemonia nos partidos de direita, e em muitos socialistas subservientes, de uma mistura entre ideias sobre a economia, sobre o Estado, sobre as empresas, sobre a governação dos países, que corresponde ao “pensamento único” que tem presidido à política da Comissão Europeia, do Eurogrupo, aos partidos do PPE, e que tem levado a cabo a política de Schäuble e dos alemães e de alguns outros países seus aliados.

Este segunda razão é do “podem, mas acham bem”, e essa aparece como de costume nos mais rudimentares defensores dos offshores que pululam na nossa direita mais radical, nos jornais, nos blogues e nas redes sociais. Eles são reveladores, porque têm a imprudência de dizer aquilo que os de cima da cadeia alimentar pensam, mas não podem dizer. E todos ficaram imensamente incomodados com os “Documentos do Panamá”, porque é “deles” e dos seus que os “documentos” falam. E correram logo a dizer que era uma questão com Putin e não com o capitalismo. Ou seja, os offshores são mais uma perversão do comunismo e do socialismo e dos “oligarcas”, como gostam de chamar aos poderosos do “outro lado”. E então é ler como os offshores são uma resposta à tirania fiscal dos Estados “socialistas”, ou uma digna resposta da liberdade económica do dinheiro e das empresas para fluir para todo o lado sem barreiras. Sem dúvida, admitem, que há crimes e lavagem de dinheiro, mas são pechas menores dos offshores. O essencial é que eles são mais uma manifestação normal da liberdade económica e da luta contra a prepotência dos Estados e das políticas “socialistas” dos altos impostos. Isto vem de quem fez o “enorme aumento de impostos”, retirou aos contribuintes qualquer protecção face aos abusos do fisco e só é “liberal” na bandeirinha da lapela. Pobre da “mão invisível” que foi possuída pela família Adams.

Também nos offshores se verifica a escassíssima vontade dos políticos europeus, que tem à sua cabeça institucional o senhor Juncker, que tem no seu currículo ter feito enquanto primeiro--ministro do Luxemburgo todo o tipo de acordos ilegais, insisto, ilegais, à luz das regras europeias, destinadas a levar para o seu país empresas que aí encontravam um paraíso fiscal protegidas pelo segredo de Estado. Ou no caso do Reino Unido, em que dezenas de offshores estão em territórios sob soberania britânica.

O problema como sempre é o dos alvos e dos intocáveis. Ou melhor: defender por todos os meios os “intocáveis” de serem tocados e impedir que os alvos deixem de ser alvos. O objectivo da política do “ajustamento”, policiada pelas instituições europeias sem estatuto democrático como o Eurogrupo, ou pelo FMI, em consonância com os “mercados”, foi proteger o sistema bancário, os “mercados”, o dinheiro que “flui” e, sem o dizer, no mesmo pacote vão os offshores “contra os quais nada se pode fazer”. E o melhor atestado de ineficácia da múltipla legislação europeia tão gabada nas suas intenções de dar “transparência” ao sistema financeiro e combater a corrupção é o que revelam estes “Documentos do Panamá” e muitas outras estimativas sérias: o dinheiro que vai para os offshores é cada vez mais. Ponto.

A solução da questão dos offshores é simples, se tivermos vontade para a aplicar. E desconfiem de quem venha com muitas complexidades e complicações, é sempre mau sinal. Insisto, não é muito complicado: trata-se de comparar o dinheiro dos offshores com o dinheiro dos terroristas. Um rouba, em grande escala, Estados e povos, o outro mata. Um mata à fome em África, outro nas ruas de Paris ou em Nova Iorque. Um destrói economias, poupanças, classes médias criadas com muitos anos e esforços para progredir, outro escraviza povos e reduz a ruínas países já muito pobres. É uma comparação que admito ser excessiva, mas, se partirmos dela, talvez possamos compreender (ou não) por que razão aquilo que se admite em termos de recursos de investigação, penalizações duríssimas, confisco de bens do crime ou da droga, ou da corrupção ou da fuga ao fisco, e se aplica ao dinheiro do terrorismo, se pode aplicar ao dinheiro ilegal dos offshores. Ah! Já estou a ouvir em fundo: “Mas muito desse dinheiro é legal.” Ai é? Então, qual é o motivo por que em vez de estar inshore vai para os offshores?

Deixem-se por isso de falsos espantos e falsas surpresas. Tudo o que está nos “Documentos do Panamá” não é novidade para ninguém. Como não é novidade para ninguém o discurso de “não se pode fazer nada”. Mas, se queremos salvar a democracia no século XXI, o problema do dinheiro anónimo, escondido, fugido e protegido algures numa caixa de correio humilde de uma casa nas Ilhas Caimão, ou num cacifo acolchoado de um luxuoso escritório de advogados no Panamá é objectivamente mais dissolvente do que os tiros de uma Kalashnikov nas ruas de Bruxelas. Faz-nos pior, porque os tiros são-nos exteriores, são do “inimigo”, e os biliões das Ilhas Virgens são de dentro, dos “amigos”.


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* Já agora... http://www.significados.com.br/offshore/

domingo, 3 de abril de 2016

Falhámos. Vamos repensar a educação

 Tabelas incluídas por mim* 
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A educação não cria, por si, a revolução. Ainda assim, é uma ferramenta imprescindível de emancipação social.


Não estamos, contudo, igualmente emancipados e, assim, é exposta uma das grandes falhas do sistema educativo.
Tendencialmente, transformamo-nos naquilo que a sociedade, familiar e distante, espera de nós. Frequentemente, o que de nós é esperado prende-se com fatores socioeconómicos e culturais.

O que queres ser quando fores grande?”
Se entrarmos numa escola primária com esta questão, é provável que grande parte das crianças responda algo como “astronauta!”, “advogado!”, “médico!”, independentemente do meio socioeconómico e cultural em que vivem. Nelas, o sonho ainda está vivo. As crianças ainda não compreendem na íntegra o mundo em que vivem e o que efetivamente delas é esperado. Contudo, uns anos mais tarde, ao colocar a mesma questão, as respostas variam consoante o meio socioeconómico e cultural em que a sua escola – e os próprios alunos – estão inseridos.
Numa escola cujos alunos advenham, essencialmente, de famílias de classe média, com familiares licenciados, grande parte dos alunos assumirá, à partida, que há um lugar para si na universidade – apenas terá de descobrir qual o curso que melhor se adequa à sua vocação.
Porém, numa escola onde encontremos alunos de famílias mais carenciadas, a cujas famílias não foi dada a oportunidade de frequentar – ou terminar – a universidade, em bairros socialmente excluídos, as respostas serão diferentes. Grande parte destes alunos está, à partida, desacreditado. Estão, frequentemente, em escolas designadas “problemáticas”, com professores cuja boa vontade não é suficiente para os motivar, familiares que se debatem entre o desemprego, o emprego precário e as responsabilidades. A sociedade exclui, por vezes conscientemente, outras vezes inconscientemente, estes jovens – estas famílias. Há umaguetização real da pobreza em Portugal, o que assegura a sua proliferação.
Se observarmos o ranking, perceberemos que as escolas com piores médias são classificadas como nível 1 no que respeita ao contexto socioeconómico do agrupamento escolar - sendo 1 o menos favorecido e 3 o mais favorecido.
Ainda ouvimos (ou contamos) com espanto a história do jovem que venceu as adversidades e, contra todas as expectativas, entrou na faculdade. Espantamo-nos, precisamente, porque não expectamos que isto aconteça. Nós, enquanto sociedade, não esperamos que esse jovem ingresse no ensino superior; grande parte da comunidade escolar, fruto do que observa diariamente – e das próprias limitações que vão sendo impostas ao longo dos anos e frustrações que vão vivendo – não acredita que aquele jovem queira frequentar o ensino superior. Esse jovem perdeu, algures na vida, a esperança. Criou uma imagem de si que não corresponde à verdade. Acredita que a universidade não tem lugar para si, que esse sonho não lhe é permitido. Quando isto acontece, e infelizmente é a regra, a educação falha.
Não pretendo advogar a ideia de que todos os estudantes devem querer ir para a Universidade. Quer porque existem outras vias de ensino igualmente importantes, quer porque é legítimo que um jovem não queira prosseguir estudos. Gostaria, contudo, que esta vontade se prendesse com a vocação, desejo real, e não comexpectativa.
Se é verdade que não há soluções perfeitas, também é verdade que há muito que é percetível que o atual modelo pedagógico não funciona. Talvez não tenha sido motivo de alarme para os sucessivos governos, pois tem funcionado para os alunos sobre quem a expectativa é, à partida, positiva.
As escolas que ocupam os últimos lugares dos rankings são frequentemente as mesmas, mesmo que vão ocupando posições ligeiramente diferentes. A maior prova da inutilidade desta listagem é precisamente o facto de dela não advir qualquer mudança. Glorificamos os primeiros lugares, ostracizamos os últimos, e depois trabalhamos mais um ano em direção ao ranking. Mas nada muda. Se as mesmas escolas, repetidamente, obtêm os piores resultados nos exames, talvez devêssemos fazer um exame de consciência (não se preocupem, só para diagnóstico – não conta para a nota!).
Continuamente procuramos avaliar de forma standarizada o que não é uniforme. Queremos que a meta seja a mesma, mas oferecemos pontos de partida diferentes. E, pior, não nos choca quando parte dos atletas não chega ao fim da corrida. Não quero, com isto, sugerir que os programas lecionados sejam diferentes consoante as escolas onde estamos – isso serviria apenas para guetizar mais ainda a educação. Contudo, não é possível acreditar que um modelo pedagógico estanque seja capaz de servir escolas de norte a sul do país, cada qual com a sua idiossincrasia.
As escolas têm de se abrir à comunidade. Renomados psicólogos e pedagogos podem teorizar sobre a melhor forma de lecionar e motivar jovens, mas a busca pela emancipação tem de partir dos próprios e, como tal, é deles indissociável. A construção do modelo pedagógico deve ouvir os estudantes, as suas preocupações, deve querer integrar as suas famílias e compreender as suas virtudes e limitações. Ao pensar numa nova forma de educar e ensinar, temos de estar preparados para a eventualidade de grande parte dos nossos dogmas estarem errados ou serem obsoletos em determinados contextos. Se queremos que a escola deixe de ser a “obrigatoriedade que não abrirá portas na vida”, temos de criar zonas de conforto, espaços onde os jovens se possam expressar das mais variadas formas. Criar projetos que motivem, interessem e unam os jovens em torno de objetivos comuns. À medida que formos capazes de abdicar dos nossos dogmas face à educação – nomeadamente a ideia de que só é possível aprender de uma forma: sentados, de 90 em 90 minutos, ouvindo um professor - e às expectativas que depositamos sobre outros, poderemos observar o florir de uma nova perspetiva na educação. A educação transformar-se-á numa extensão do que os jovens consideram ser familiar, compreendendo e respeitando a multiculturalidade e inibindo a segregação social. Os estudantes libertar-se-ão das amarras, das imagens que foram criando de si próprios. Sentirão que a escola é deles e não apenas para eles.
Os jovens não acreditam na política, não acreditam nas oportunidades, não acreditam na educação. Os jovens não acreditam em si. Isso é o sintoma de uma sociedade profundamente desigual.
Falhámos.

Deixem-nos sonhar. Vamos repensar a educação.

in http://www.esquerda.net/opiniao/falhamos-vamos-repensar-educacao/41985
1 de Abril, 2016 - 15:04h


 * Tabelas apresentadas in http://eduprofs.blogspot.pt/2015/10/estatisticas-da-educacao-portugal-2015.html)

quinta-feira, 31 de março de 2016

A Dívida, elemento-chave da nossa submissão ao sistema económico



*Desde que as Nações são Estados e que os Estados são Repúbllicas, os mais ricos da sociedade dedicam-se a enfraquecer ao máximo esses Estados e as suas instituições, para garantir a si próprios uma situação de máxima liberdade.
  
Estes ricos são os liberais e procuram reduzir a influência dos Estados, que eles consideram demasiado poderosos e muito pouco virtuosos. A História demonstra-o: nas raras ocasiões nas quais um Estado se tornou poderoso e, portanto, independente da influência dos seus súbditos mais ricos, esses ricos começaram a recear o poder do Estado e dedicaram-se a destrui-lo. 

Para os ricos, é ainda pior quando o Estado é sustentado pelo Povo, pois nesse caso é legítimo. 

É por isso que por trás, através dos “media”, eles tentam descredibilizar o Estado e atrair contra ele as iras do Povo. Porque, para destruir o Estado, o rico tem uma estratégia eficaz: arruiná-lo! E funciona! 

Para tal, o rico possui dois meios eficazes: 

1 - Pagar o mínimo possível de impostos (isenções fiscais, sabotagem de todos os impostos sobre a riqueza que visem maior justiça fiscal, liberallização das Leis do Trabalho, optimização fiscal e exílio em paraísos fiscais, etc.) Evidentemente, isto só funciona se os mais pobres, esses, continuarem a pagar os seus impostos. 

2 - Endividar o Estado, emprestando-lhe dinheiro e obrigando-o a reembolsar esse dinheiro com altas taxas de lucro. 


Com o objectivo de impedir exageros do Estado no momento de criar o dinheiro que lhe é necessário ao apelar ao seu Banco central, a Lei Rothschild (1973) fez, pouco a pouco, passar a criação do dinheiro do Público (Banco de França), para a banca privada. Depois dessa Lei Rothschild de 1973, depois do Tratado de Maastricht (1993), e mais ainda depois do famoso artigo 123 do Tratado de Lisboa de 2005, os Estados são obrigados a pedir empréstimos aos mercados financeiros privados, com taxas de juro pesadas! Tudo isso em vez de criar dinheiro e de o obter a taxas nulas ou quase nulas do seu Banco Central. 

O Artigo 123 do Tratado de Lisboa define que todos os Estados membros da Comunidade Europeia deixarão de ter o direito de obter empréstimos junto do seu Banco Central. Ficam com a obrigação de os solicitar nos mercados financeiros, através de juros. Descendente da Lei Pompidou-Giscard de 1973 e do artigo 104 do Tratado de Maastricht, este artigo está na origem do endividamento e das quantias astronómicas assumidas pelo Estado para o reembolso de uma dívida que não deveria existir. 



O custo dos juros dessa dívida representa a maior despesa no Orçamento do Estado e eleva-se a 153 milhões por dia, ou seja mais de 106.000 € por minuto (números referentes ao Estado Francês - NT). É uma dívida “odiosa”, porque foi contraída contra os nossos interesses, sem o nosso conhecimento, mas com total conhecimento dos credores. Resultado: A França tinha, em 2004, uma dívida de mais de 2.000 bilhões (mil milhões) de euros. Mas é preciso lembrar que a França já pagou mais de 1.400 bilhões aos seus credores nos últimos 40 anos. Apenas em juros, acrescentemos. 

Os seus credores são 65% estrangeiros e na sua maioria bancos privados e grandes clientes dos mercados financeiros! Com efeito, a França gasta todo o seu dinheiro (e o seu tempo) a reembolsar os juros da dívida, sem amortizar o reembolso da própria dívida… Uma dívida que não é moral, nem norma!

Há mais de 40 anos que as despesas públicas estão estáveis. O que acrescenta a dívida, são os juros da dívida. E, desde há 40 anos, os diversos eleitos (de extrema esquerda à extrema direita), mantêm este estado de coisas sem se questionarem. É anormal. Esta dívida é ilegítima, pois foi inteiramente criada pelos mercados, para os mercados. Com o incompreensível aval dos eleitos. 

Portanto, nós não somos responsáveis por esta dívida. Não vivemos acima das nossas possibilidades. Evidentemente que pedindo dinheiro aos bancos (que criam dinheiro do nada antes de nos pedir que o reembolsemos com dinheiro verdadeiro), cidadãos comuns contribuíram para este sistema podre. Mas quem pediu este sistema? Quem enriqueceu graças a ele? E quem foi que, depois, empobreceu por causa dele? Não é o comportamento das pessoas que devemos condenar, mas sim estes indivíduos que modificaram as estruturas da nossa economia de forma a que elas lhes aproveitam a eles e não à maioria da população... É também por isso que é incompreensível e inadmissível que o dinheiro do Estado - o nosso dinheiro - continue a reembolsar bancos quando eles fazem tudo o que lhes apetece com o que criaram a partir do nada para especular sobre tudo e mais alguma coisa. 

Mas a dívida é um poder formidável. Mete medo às pessoas que já não refletem nas causas mas apenas nas consequências. Ela impede de pensar racionalmente. Quando é comentada com um discurso moralista do género “Não podemos deixar de pagar, quando se tem uma dívida, paga-se, é ser civilizado” parece incontestável. E no entanto, como já vimos, a dívida é tudo menos moral, tudo menos normal! Tomemos consciência destas coisas. Batamo-nos contra os bancos e contra estes políticos que lhes dão plenos poderes. Não podemos atribuir estas crises a outros povos e identidades, escolhendo o recuo para o nacionalismo, que não resolve nada. Vamos informar-nos. Vamos analisar. Vamos explicar. Vamos lutar.





*Texto traduzido do blogue francês L’Indigné du Canapé

terça-feira, 29 de março de 2016

Precariedade atinge mais de 50 mil professores

A precariedade afeta um número cada vez maior de professores. Foto de Paulete Matos.


De acordo com um levantamento feito pela Fenprof, um em cada quatro professores trabalha em situação precária, havendo ainda casos de docentes do ensino superior que auferem ordenados de 500 euros.

Segundo aquela estrutura sindical, no passado ano letivo, existiam 7.281 professores a dar aulas nos institutos politécnicos e 11.735 nas universidades.
dirigente da Fenprof, Tiago Dias disse que “a taxa de precariedade é de 30 por cento nas universidades e nos politécnicos é de mais de 50 por cento” tendo acrescentado que “ existem, respetivamente, cerca de 3.250 e 3.640 docentes precários".
Existem muitos docentes que estão a auferir qualquer coisa como 500 euros por mês.
"Há professores a quem estão a fazer contratos de três ou quatro meses e depois são renovados", denunciou Tiago Dias, avançando ainda que “existem muitos docentes que estão a "auferir qualquer coisa como 500 euros por mês".
No ensino superior privado, o cenário traçado pelo dirigente sindical é ainda mais grave: "É muito pior. Não há regras. 66% dos professores estão a recibos verdes".
Para o secretário-geral da Fenprof, Mário Nogueira, a precariedade é "um problema dos professores, mas é também um problema social e das escolas, que afeta a organização das escolas mas também a qualidade do ensino".
Recurso aos tribunais
Entretanto, a Fenprof anunciou que admite “ recorrer” aos tribunais contra um processo de contratação de professores aberto pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) por considerar que este é “ ilegal” na medida em que prevê a contratação a “ falsos recibos verdes”.
Mário Nogueira afirmou que “o contrato anual poderá prolongar-se por três anos” e destina-se fundamentalmente a docentes das áreas de Inglês, Matemática e Português.
Recorde-se que no início deste ano, o IEFP lançou um concurso com 868 vagas para contratar professores por um ano.
“O regime de contratação será, em todos os casos, a prestação de serviços (recibos verdes) e a remuneração é de 14,40 euros à hora” o que para aquele dirigente “é inferior ao valor que é pago aos professores contratados pelo Ministério da Educação (ME)”.
A Fenfrof refere ainda que “ além de serem contratados a recibos verdes com ordenados mais baixos do valor pago pelo ME, há ainda horários de trabalho que podem atingir as 30 horas semanais o que se situa muito acima das 22 horas estabelecidas para o exercício da docência nas escolas públicas”.

“ Estamos a aguardar uma resposta do IEFP e admitimos pôr em causa este concuro e acionar os mecanismos legais para travar este concurso”, afirmou Mário Nogueira que criticou ainda o facto de ser o próprio Estado a “fazer aquilo que não permite que os outros façam”.


in http://www.esquerda.net/artigo/precariedade-atinge-mais-de-50-mil-professores/41987 28 de Março, 2016 - 23:06h

A vingança das classes baixas e a ascensão do fascismo americano


Cartaz de Donald Trump iluminado num quintal dos subúrbios de West Des Moines, Iowa. Foto Tony Webster/Flickr

Se Clinton vencer as eleições, Trump poderá desaparecer, mas os sentimentos fascistas espalhar-se-ão. Outro Trump, talvez ainda mais vil, será vomitado das entranhas do sistema político decadente. 

Artigo de Chris Hedges. 27 de Março, 2016 - 17:02h.


Elites educadas em universidades, e ao serviço das grandes empresas e das corporações, levaram a cabo um selvagem ataque neoliberal contra as classes pobres. Estão agora a pagar por esse assalto. A sua duplicidade – corporizada em políticos como Bill e Hillary Clinton e Barack Obama – estendeu-se por várias décadas. Estas elites, muitas delas oriundas de escolas da Ivy League, da Costa Leste, falavam a linguagem dos valores – civismo, inclusão, condenação do racismo e da intolerância, preocupação com a classe média – enquanto, ao mesmo tempo, em nome dos seus amos, espetavam uma faca nas classes mais desfavorecidas. O jogo acabou.


Há milhões de norte-americanos, especialmente brancos das classes baixas, legitimamente enfurecidos com o que lhes fizeram, e às suas famílias, e às suas comunidades. Ergueram-se agora para rejeitar as políticas neo-liberais e a correcção política que lhes foi imposta por estas elites educadas nas universidades e oriundas de ambos os partidos políticos: os brancos das classes baixas abraçam o fascismo americano. E querem um certo tipo de liberdade – a liberdade para odiarem.
Estes Americanos querem ter a liberdade para usar palavras como “preto”, “porco judeu”, “chinoca”, “árabe sujo”, “maricas”. Querem liberdade para idealizar a violência e a cultura das armas. Querem liberdade para ter inimigos, para atacar fisicamente os muçulmanos, os trabalhadores ilegais, os afro-americanos, os homossexuais, e todos aqueles e aquelas que se atrevam a criticar o criptofascismo. Querem liberdade para comemorar movimentos históricos e figuras que as elites educadas nas universidades condenam, incluindo o Ku Klux Klan e os Estados Confederados. Querem liberdade para ridicularizar e rejeitar os intelectuais, as ideias, a ciência e a cultura. Querem liberdade para silenciar todos aqueles que lhes têm vindo a dizer como se devem eles comportar. E querem liberdade para dar largas à hipermasculinidade, ao racismo, ao sexismo, ao patriarcado branco. Estes são os mais fundos sentimentos que subjazem ao fascismo. E estes sentimentos são gerados pelo colapso do estado liberal.
Os democratas estão a jogar um jogo altamente perigoso ao ungirem Hillary Clinton como a sua candidata presidencial. Hillary Clinton representa a duplicidade das elites educadas nas universidades, aquelas que falam do sofrimento dos homens e das mulheres comuns, como se sentissem esse sofrimento, que elevam bem alto a bíblia da correcção política, enquanto, ao mesmo tempo, vendem os pobres e as classes trabalhadoras ao poder das grandes corporações.
Os Republicanos, dinamizados por Donald Trump, a versão cinemática e de reality-show do Duce, têm congregado eleitores, principalmente novos eleitores, ao passo que os Democratas estão muito abaixo dos valores eleitorais de 2008. (...)
No seu último livro, Achieving our Country, de 2008, Richard Rorty previu o rumo para o qual se dirigia a nossa nação pós-industrial.
Muitos daqueles que escreveram sobre as políticas socioeconómicas têm vindo a alertar para o facto de as velhas democracias industrializadas se estarem a dirigir para um período semelhante ao de Weimar, um período em que é possível que os movimentos populistas derrotem os governos constitucionais. Edward Luttwak, por exemplo, sugeriu que o fascismo poderá ser o futuro americano. O argumento principal do seu livro The Endangered American Dream é que os membros dos sindicatos e os trabalhadores não qualificados e sem qualquer tipo de estrutura organizativa perceberão, mais cedo ou mais tarde, que o seu governo não está a fazer qualquer esforço para evitar que os salários se afundem ou que os postos de trabalho se deslocalizem. Por essa altura, estes trabalhadores compreenderão que os trabalhadores mais qualificados, os que habitam as zonas mais favorecidas – eles próprios presos ao pânico de verem reduzido o seu nível de vida – não irão permitir que lhes sejam aplicados impostos destinados a criar benefícios sociais para outros que não eles.
Será então que algo se quebrará. O eleitorado menos favorecido decidirá que o sistema falhou e começará a procurar uma figura forte na qual votar – alguém capaz de lhes assegurar que, uma vez eleito, as cartas deixarão de ser dadas pelos burocratas presunçosos, pelos advogados astutos e traiçoeiros, pelos que ganham fortunas na bolsa e pelos professores pós-modernos. Será então que iremos assistir a um cenário semelhante ao do romance It Can’t Happen Here, de Sinclair Lewis. Pois, uma vez que se instale no poder uma dessas figuras fortes, ninguém pode adivinhar o futuro. Em 1932, a maior parte das previsões sobre o que poderia acontecer se Hindenburg nomeasse Hitler como Chanceler eram excessiva e descontroladamente optimistas.
O que muito provavelmente acontecerá será assistirmos ao extermínio de tudo o que foi conquistado nos últimos quarenta anos pelos americanos brancos e negros e pelos homossexuais. Tornará a estar na moda o desprezo e a troça pelas mulheres. As palavras ‘preto’, ‘escarumba’, ‘sacana de judeu’ tornarão a ser ouvidas no mercado de trabalho. Retornará todo o sadismo que a esquerda académica tentou mostrar aos estudantes como sendo inaceitável. E todo o ressentimento que os americanos incultos ou não instruídos sentem relativamente a verem os seus comportamentos ditados pelos universitários encontrará um escape.
Os movimentos fascistas constroem a sua base não a partir dos politicamente activos, mas a partir dos politicamente inactivos, os “perdedores”, os que sentem, muitas vezes de forma correcta, que não têm voz nem papel algum a desempenhar na cena política. O sociólogo Émile Durkheim alertou para o seguinte: excluir, privar, uma classe das estruturas da sociedade produz um certo tipo de “anomia” – uma condição segundo a qual a sociedade fornece escassíssimos esteios morais aos indivíduos. Os que se sentem encurralados nessa ‘anomia’, escreveu Durkheim, são presa fácil para a propaganda e propensos a serem emocionalmente conduzidos pelos movimentos de massas. Na sequência de Durkheim, Hannah Arendt observaria que “a principal característica do ‘homem de massa’ não é a brutalidade ou o retrocesso, mas o seu isolamento e a sua ausência de relações sociais normais”.
No fascismo, os destituídos e os não comprometidos, os ignorados e constantemente corrigidos pelas instituições descobrem uma voz e um sentido de empoderamento e de autoridade.
O fascismo tem por base a apatia dos que estão cansados de serem enganados e ludibriados por um sistema liberal falido, cuja única razão de votar num determinado político ou de apoiar um partido político é eleger o menos mau. Isto, para muitos eleitores, é o melhor que Hillary Clinton consegue oferecer.
Como Arendt sublinhou, os movimentos fascistas e comunistas da Europa dos anos 30, “... recrutaram os seus membros de entre esta massa de indivíduos aparentemente indiferentes, de quem todos os outros partidos haviam desistido, por os considerarem demasiado apáticos ou demasiado estúpidos para merecerem atenção. O resultado foi que a maioria dos seus membros era formada por pessoas que nunca haviam aparecido até então na cena política. Isto permitiu a introdução de métodos totalmente novos na propaganda política, bem como a indiferença perante os argumentos dos adversários políticos; estes movimentos não só se colocaram fora e contra o sistema partidário como um todo, mas ainda formaram uma filiação nunca antes alcançada, e “intocada” pelo sistema partidário. Não precisavam, pois, de refutar argumentações contrárias, antes optando por métodos que desaguavam não na persuasão, mas no assassínio, que espalhavam não a convicção, mas o terror. Encaravam o dissenso como algo que tinha, invariavelmente, origem em raízes naturais, sociais ou psicológicas, para lá do controle do indivíduo e, portanto, para lá do controle da razão. Isto teria sido uma lacuna se eles se tivessem limitado a opor-se, em livre competição, com diferentes partidos; não o era, porque eles estavam seguros de lidar com pessoas que tinham razão para serem igualmente hostis a todos os partidos.
O fascismo tem por base a apatia dos que estão cansados de serem enganados e ludibriados por um sistema liberal falido, cuja única razão de votar num determinado político ou de apoiar um partido político é eleger o menos mau. Isto, para muitos eleitores, é o melhor que Hillary Clinton consegue oferecer.
O fascismo exprime-se através de símbolos familiares, nacionais e religiosos reconfortantes, por isso surge ele em variadas formas e diversas nuances. O fascismo italiano, que se revia na glória do Império Romano, por exemplo, nunca partilhou do amor nazi pelos mitos teutónicos e nórdicos. Similarmente, o fascismo americano tentará encontrar no seu passado símbolos patrióticos tradicionais, narrativas, crenças.
Robert Paxton escreveu, em The Anatomy of Fascism:
A linguagem e os símbolos de um verdadeiro fascista americano teriam, obviamente, muito pouco a ver com os modelos europeus originais. Teriam de ser tão familiares e tranquilizadores para os americanos leais como a linguagem e os símbolos dos fascismos originais eram familiares e tranquilizadores para muitos italianos e alemães, tal como  [George] Orwell sugeriu. Afinal de contas, nem Hitler nem Mussolini tentaram parecer exóticos perante os seus concidadãos. Não haveria suásticas no fascismo americano, só estrelas e riscas, ou listras (evocando a bandeira americana actual, ou a bandeira sulista, da Confederação). E cruzes cristãs. Não haveria saudação fascista, mas recitações de massa do juramento de fidelidade. Por si só, estes símbolos não parecem sugerir a mais ínfima sugestão de fascismo, mas um fascismo americano transformá-los-ia em provas de fogo obrigatórias para detectar o inimigo interno.
O fascismo baseia-se num líder aparentemente forte e inspirado que promete renovação moral, uma nova glória e vingança. Baseia-se na substituição do debate racional pela experiência sensual e sensorial. É por isso que as mentiras, as meias-verdades, as invenções de Trump não têm qualquer impacto nos seus seguidores. Tal como o filósofo Walter Benjamin fez notar, os fascistas transformam a política em estética. E, para o fascista, disse Benjamin, a estética final e definitiva é a guerra.
Paxton resume assim a ideologia amorfa que caracteriza todos os movimentos fascistas.
O fascismo apoia-se não na verdade da sua doutrina, mas na união mística do seu líder com o destino histórico do seu povo, uma noção ligada a ideias românticas de florescimento histórico nacional e de artista individual e génio espiritual, muito embora o fascismo pareça negar a exaltação romântica da livre criatividade individual. O líder fascista almejava conduzir o seu povo a um reino mais elevado da política que ele pudesse experienciar sensualmente: o fervor de pertencer a uma raça agora plenamente consciente da sua identidade, do seu destino histórico, e do seu poder; a excitação de participar numa onda de sentimentos partilhados e de sacrificar as mesquinhas preocupações pessoais em nome do bem do grupo; e a emoção da dominação.
Só há uma forma de erradicar o anseio pelo fascismo que gira em torno da figura de Trump. Essa forma é criar, o mais depressa possível, movimentos ou partidos que declarem guerra ao poder das corporações, que se empenhem em actos continuados de desobediência civil, que tentem reintegrar os destituídos – os “perdedores” –, reintegrando-os na economia e na vida política do país. Este movimento nunca poderá emergir do Partido Democrata. Se Clinton vencer as eleições, Trump poderá desaparecer, mas os sentimentos fascistas continuarão a expandir-se.
Outro Trump, talvez ainda mais vil, será vomitado das entranhas do sistema político decadente. Lutamos pela nossa vida política. O poder das corporações e as elites educadas nas universidades causaram tremendos danos à nossa democracia. Estas elites têm estado no poder: supervisionaram o estripamento do país a bem das corporações, e acreditam, como Leslie Moonves, o presidente do conselho de administração da CBS, que, por muito mau que Trump seja para a América, ele será pelo menos bom para o lucro das corporações. Quanto mais tempo estas elites estiverem no poder, pior as coisas serão no futuro. 


Chris Hedges é jornalista, foi correspondente internacional do New York Times durante 15 anos e hoje é colunista do Thruth Dig. Artigo publicado no portal Information Clearing House. Traduzido por Ana Luisa Amaral para o esquerda.net

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