Cartaz de Donald Trump iluminado num quintal dos subúrbios de West Des Moines, Iowa. Foto Tony Webster/Flickr |
Artigo de Chris Hedges. 27 de Março, 2016 - 17:02h.
Elites educadas em
universidades, e ao serviço das grandes empresas e das corporações, levaram a
cabo um selvagem ataque neoliberal contra as classes pobres. Estão agora a
pagar por esse assalto. A sua duplicidade – corporizada em políticos como Bill
e Hillary Clinton e Barack Obama – estendeu-se por várias décadas. Estas
elites, muitas delas oriundas de escolas da Ivy League, da
Costa Leste, falavam a linguagem dos valores – civismo, inclusão, condenação do
racismo e da intolerância, preocupação com a classe média – enquanto, ao mesmo
tempo, em nome dos seus amos, espetavam uma faca nas classes mais
desfavorecidas. O jogo acabou.
Há milhões de
norte-americanos, especialmente brancos das classes baixas, legitimamente
enfurecidos com o que lhes fizeram, e às suas famílias, e às suas comunidades.
Ergueram-se agora para rejeitar as políticas neo-liberais e a correcção
política que lhes foi imposta por estas elites educadas nas universidades e
oriundas de ambos os partidos políticos: os brancos das classes baixas abraçam
o fascismo americano. E querem um certo tipo de liberdade – a liberdade para
odiarem.
Estes Americanos querem
ter a liberdade para usar palavras como “preto”, “porco judeu”, “chinoca”,
“árabe sujo”, “maricas”. Querem liberdade para idealizar a violência e a
cultura das armas. Querem liberdade para ter inimigos, para atacar fisicamente
os muçulmanos, os trabalhadores ilegais, os afro-americanos, os homossexuais, e
todos aqueles e aquelas que se atrevam a criticar o criptofascismo. Querem
liberdade para comemorar movimentos históricos e figuras que as elites educadas
nas universidades condenam, incluindo o Ku Klux Klan e os Estados Confederados.
Querem liberdade para ridicularizar e rejeitar os intelectuais, as ideias, a
ciência e a cultura. Querem liberdade para silenciar todos aqueles que lhes têm
vindo a dizer como se devem eles comportar. E querem liberdade para dar largas
à hipermasculinidade, ao racismo, ao sexismo, ao patriarcado branco. Estes são
os mais fundos sentimentos que subjazem ao fascismo. E estes sentimentos são
gerados pelo colapso do estado liberal.
Os democratas estão a
jogar um jogo altamente perigoso ao ungirem Hillary Clinton como a sua
candidata presidencial. Hillary Clinton representa a duplicidade das elites
educadas nas universidades, aquelas que falam do sofrimento dos homens e das
mulheres comuns, como se sentissem esse sofrimento, que elevam bem alto a
bíblia da correcção política, enquanto, ao mesmo tempo, vendem os pobres e as
classes trabalhadoras ao poder das grandes corporações.
Os Republicanos,
dinamizados por Donald Trump, a versão cinemática e de reality-show do Duce,
têm congregado eleitores, principalmente novos eleitores, ao passo que os
Democratas estão muito abaixo dos valores eleitorais de 2008. (...)
No seu último livro, Achieving
our Country, de 2008, Richard Rorty previu o rumo para o qual se dirigia a
nossa nação pós-industrial.
Muitos daqueles que
escreveram sobre as políticas socioeconómicas têm vindo a alertar para o facto
de as velhas democracias industrializadas se estarem a dirigir para um período
semelhante ao de Weimar, um período em que é possível que os movimentos
populistas derrotem os governos constitucionais. Edward Luttwak, por exemplo,
sugeriu que o fascismo poderá ser o futuro americano. O argumento principal do
seu livro The Endangered American Dream é que os membros dos
sindicatos e os trabalhadores não qualificados e sem qualquer tipo de estrutura
organizativa perceberão, mais cedo ou mais tarde, que o seu governo não está a
fazer qualquer esforço para evitar que os salários se afundem ou que os postos
de trabalho se deslocalizem. Por essa altura, estes trabalhadores compreenderão
que os trabalhadores mais qualificados, os que habitam as zonas mais
favorecidas – eles próprios presos ao pânico de verem reduzido o seu nível de
vida – não irão permitir que lhes sejam aplicados impostos destinados a criar
benefícios sociais para outros que não eles.
Será então que algo se
quebrará. O eleitorado menos favorecido decidirá que o sistema falhou e começará
a procurar uma figura forte na qual votar – alguém capaz de lhes assegurar que,
uma vez eleito, as cartas deixarão de ser dadas pelos burocratas presunçosos,
pelos advogados astutos e traiçoeiros, pelos que ganham fortunas na bolsa e
pelos professores pós-modernos. Será então que iremos assistir a um cenário
semelhante ao do romance It Can’t Happen Here, de Sinclair Lewis.
Pois, uma vez que se instale no poder uma dessas figuras fortes, ninguém pode
adivinhar o futuro. Em 1932, a maior parte das previsões sobre o que poderia
acontecer se Hindenburg nomeasse Hitler como Chanceler eram excessiva e
descontroladamente optimistas.
O que muito
provavelmente acontecerá será assistirmos ao extermínio de tudo o que foi
conquistado nos últimos quarenta anos pelos americanos brancos e negros e pelos
homossexuais. Tornará a estar na moda o desprezo e a troça pelas mulheres. As
palavras ‘preto’, ‘escarumba’, ‘sacana de judeu’ tornarão a ser ouvidas no
mercado de trabalho. Retornará todo o sadismo que a esquerda académica tentou
mostrar aos estudantes como sendo inaceitável. E todo o ressentimento que os
americanos incultos ou não instruídos sentem relativamente a verem os seus
comportamentos ditados pelos universitários encontrará um escape.
Os movimentos fascistas
constroem a sua base não a partir dos politicamente activos, mas a partir dos
politicamente inactivos, os “perdedores”, os que sentem, muitas vezes de forma
correcta, que não têm voz nem papel algum a desempenhar na cena política. O
sociólogo Émile Durkheim alertou para o seguinte: excluir, privar, uma classe
das estruturas da sociedade produz um certo tipo de “anomia” – uma condição
segundo a qual a sociedade fornece escassíssimos esteios morais aos indivíduos.
Os que se sentem encurralados nessa ‘anomia’, escreveu Durkheim, são presa
fácil para a propaganda e propensos a serem emocionalmente conduzidos pelos
movimentos de massas. Na sequência de Durkheim, Hannah Arendt observaria que “a
principal característica do ‘homem de massa’ não é a brutalidade ou o retrocesso,
mas o seu isolamento e a sua ausência de relações sociais normais”.
No fascismo, os
destituídos e os não comprometidos, os ignorados e constantemente corrigidos
pelas instituições descobrem uma voz e um sentido de empoderamento e de
autoridade.
O fascismo tem por base a apatia dos que estão
cansados de serem enganados e ludibriados por um sistema liberal falido, cuja
única razão de votar num determinado político ou de apoiar um partido político
é eleger o menos mau. Isto, para muitos eleitores, é o melhor que Hillary
Clinton consegue oferecer.
Como Arendt sublinhou,
os movimentos fascistas e comunistas da Europa dos anos 30, “... recrutaram os
seus membros de entre esta massa de indivíduos aparentemente indiferentes, de
quem todos os outros partidos haviam desistido, por os considerarem demasiado
apáticos ou demasiado estúpidos para merecerem atenção. O resultado foi que a
maioria dos seus membros era formada por pessoas que nunca haviam aparecido até
então na cena política. Isto permitiu a introdução de métodos totalmente novos
na propaganda política, bem como a indiferença perante os argumentos dos
adversários políticos; estes movimentos não só se colocaram fora e contra o
sistema partidário como um todo, mas ainda formaram uma filiação nunca antes
alcançada, e “intocada” pelo sistema partidário. Não precisavam, pois, de
refutar argumentações contrárias, antes optando por métodos que desaguavam não
na persuasão, mas no assassínio, que espalhavam não a convicção, mas o terror.
Encaravam o dissenso como algo que tinha, invariavelmente, origem em raízes
naturais, sociais ou psicológicas, para lá do controle do indivíduo e,
portanto, para lá do controle da razão. Isto teria sido uma lacuna se eles se
tivessem limitado a opor-se, em livre competição, com diferentes partidos; não
o era, porque eles estavam seguros de lidar com pessoas que tinham razão para
serem igualmente hostis a todos os partidos.
O fascismo tem por base
a apatia dos que estão cansados de serem enganados e ludibriados por um sistema
liberal falido, cuja única razão de votar num determinado político ou de apoiar
um partido político é eleger o menos mau. Isto, para muitos eleitores, é o
melhor que Hillary Clinton consegue oferecer.
O fascismo exprime-se
através de símbolos familiares, nacionais e religiosos reconfortantes, por isso
surge ele em variadas formas e diversas nuances. O fascismo italiano, que se
revia na glória do Império Romano, por exemplo, nunca partilhou do amor nazi
pelos mitos teutónicos e nórdicos. Similarmente, o fascismo americano tentará
encontrar no seu passado símbolos patrióticos tradicionais, narrativas,
crenças.
Robert Paxton escreveu, em The Anatomy of Fascism:
A linguagem e os
símbolos de um verdadeiro fascista americano teriam, obviamente, muito pouco a
ver com os modelos europeus originais. Teriam de ser tão familiares e
tranquilizadores para os americanos leais como a linguagem e os símbolos dos
fascismos originais eram familiares e tranquilizadores para muitos italianos e
alemães, tal como [George] Orwell sugeriu. Afinal de contas, nem
Hitler nem Mussolini tentaram parecer exóticos perante os seus concidadãos. Não
haveria suásticas no fascismo americano, só estrelas e riscas, ou listras
(evocando a bandeira americana actual, ou a bandeira sulista, da Confederação).
E cruzes cristãs. Não haveria saudação fascista, mas recitações de massa do
juramento de fidelidade. Por si só, estes símbolos não parecem sugerir a mais
ínfima sugestão de fascismo, mas um fascismo americano transformá-los-ia em
provas de fogo obrigatórias para detectar o inimigo interno.
O fascismo baseia-se
num líder aparentemente forte e inspirado que promete renovação moral, uma nova
glória e vingança. Baseia-se na substituição do debate racional pela
experiência sensual e sensorial. É por isso que as mentiras, as meias-verdades,
as invenções de Trump não têm qualquer impacto nos seus seguidores. Tal como o
filósofo Walter Benjamin fez notar, os fascistas transformam a política em
estética. E, para o fascista, disse Benjamin, a estética final e definitiva é a
guerra.
Paxton resume assim a
ideologia amorfa que caracteriza todos os movimentos fascistas.
O fascismo apoia-se não
na verdade da sua doutrina, mas na união mística do seu líder com o destino
histórico do seu povo, uma noção ligada a ideias românticas de florescimento
histórico nacional e de artista individual e génio espiritual, muito embora o
fascismo pareça negar a exaltação romântica da livre criatividade individual. O
líder fascista almejava conduzir o seu povo a um reino mais elevado da política
que ele pudesse experienciar sensualmente: o fervor de pertencer a uma raça
agora plenamente consciente da sua identidade, do seu destino histórico, e do
seu poder; a excitação de participar numa onda de sentimentos partilhados e de
sacrificar as mesquinhas preocupações pessoais em nome do bem do grupo; e a
emoção da dominação.
Só há uma forma de
erradicar o anseio pelo fascismo que gira em torno da figura de Trump. Essa
forma é criar, o mais depressa possível, movimentos ou partidos que declarem
guerra ao poder das corporações, que se empenhem em actos continuados de
desobediência civil, que tentem reintegrar os destituídos – os “perdedores” –,
reintegrando-os na economia e na vida política do país. Este movimento nunca
poderá emergir do Partido Democrata. Se Clinton vencer as eleições, Trump poderá
desaparecer, mas os sentimentos fascistas continuarão a expandir-se.
Outro Trump, talvez
ainda mais vil, será vomitado das entranhas do sistema político decadente.
Lutamos pela nossa vida política. O poder das corporações e as elites educadas
nas universidades causaram tremendos danos à nossa democracia. Estas elites têm
estado no poder: supervisionaram o estripamento do país a bem das corporações,
e acreditam, como Leslie Moonves, o presidente do conselho de administração da
CBS, que, por muito mau que Trump seja para a América, ele será pelo menos bom
para o lucro das corporações. Quanto mais tempo estas elites estiverem no
poder, pior as coisas serão no futuro.
Chris Hedges é
jornalista, foi correspondente internacional do New York Times durante 15 anos
e hoje é colunista do Thruth Dig. Artigo publicado no portal Information
Clearing House. Traduzido por Ana Luisa Amaral para o
esquerda.net
in http://www.esquerda.net//artigo/vinganca-das-classes-baixas-e-ascensao-do-fascismo-americano/41959?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook