Offshores: não é uma questão fiscal, é uma questão de democracia
09/04/2016 - 00:05 PÚBLICO
Se queremos salvar a democracia no
século XXI, o problema do dinheiro anónimo, escondido, fugido e protegido
algures é objectivamente mais dissolvente do que os tiros de uma Kalashnikov
nas ruas de Bruxelas.
Nas suas declarações sobre as
revelações (mais confirmações do que revelações) dos chamados “Documentos do Panamá”,
Marcelo Rebelo de Sousa foi ao âmago da questão quando disse que o problema dos
offshores era um problema de democracia. E é.
Os offshores são, antes de tudo, do
crime, da lavagem de dinheiro, da fuga ao fisco, uma questão que significa para
as democracias a perda de um princípio básico — o de que o poder político
legitimado pelo voto e pelo primado da lei se sobrepõe ao poder económico. Por
isso, tratar a questão dos offshores apenas como sendo de natureza fiscal e
andar às voltas por aí é já um mau ponto de partida.
A questão que muitas vezes é iludida
é que não existe uma única razão económica sólida para que hajam offshores.
Para que é que eles servem para a economia, para a produção, para o emprego,
para a indústria, para o comércio, para o investimento limpo? Nada. Tudo aquilo
para que os offshores servem é para esconder dinheiro e os seus proprietários,
para esconder a origem do dinheiro, através de um conjunto de fachadas anónimas
que depois vão desaguar aos grandes bancos sediados na Suíça ou em Londres.
O que os políticos europeus dizem,
quando confrontados com esta realidade, ou com os escândalos periódicos, como o
actual com os documentos da Mossack Fonseca, é que não podem fazer nada e que o
que podem fazer fazem. Por detrás desta declaração de impotência — eu estou a
falar de políticos democráticos — está o retrato da captura ocorrida nas
últimas décadas, e agravada pela crise de 2008, da política em democracia pelos
interesses financeiros globais, pela banca, pelos “mercados”. Sim, porque uma
das faces semivisíveis dos offshores são os biliões que circulam em fundos e
outros tipo de operações financeiras e bancárias, a que nós chamamos os
“mercados”, o Deus ex machina que faz mover os países como marionetas.
Podem fazer alguma coisa? Podem fazer
tudo. Repito: podem fazer tudo. E acrescento: mas não querem. Podem fazer tudo,
mas não querem — esta é a frase que melhor resume o “problema para a
democracia”. E não querem por dois motivos. Um de fraqueza política, — a
maioria dos políticos europeus são gente frágil à frente de países
fragilizados, uma combinação de que resulta uma imensa fraqueza para lidar com
interesses poderosos, como são os que estão por detrás e pela frente dos
offshores. O outro é a hegemonia nos partidos de direita, e em muitos
socialistas subservientes, de uma mistura entre ideias sobre a economia, sobre
o Estado, sobre as empresas, sobre a governação dos países, que corresponde ao
“pensamento único” que tem presidido à política da Comissão Europeia, do
Eurogrupo, aos partidos do PPE, e que tem levado a cabo a política de Schäuble
e dos alemães e de alguns outros países seus aliados.
Este segunda razão é do “podem, mas
acham bem”, e essa aparece como de costume nos mais rudimentares defensores dos
offshores que pululam na nossa direita mais radical, nos jornais, nos blogues e
nas redes sociais. Eles são reveladores, porque têm a imprudência de dizer
aquilo que os de cima da cadeia alimentar pensam, mas não podem dizer. E todos
ficaram imensamente incomodados com os “Documentos do Panamá”, porque é “deles”
e dos seus que os “documentos” falam. E correram logo a dizer que era uma
questão com Putin e não com o capitalismo. Ou seja, os offshores são mais uma
perversão do comunismo e do socialismo e dos “oligarcas”, como gostam de chamar
aos poderosos do “outro lado”. E então é ler como os offshores são uma resposta
à tirania fiscal dos Estados “socialistas”, ou uma digna resposta da liberdade
económica do dinheiro e das empresas para fluir para todo o lado sem barreiras.
Sem dúvida, admitem, que há crimes e lavagem de dinheiro, mas são pechas
menores dos offshores. O essencial é que eles são mais uma manifestação normal
da liberdade económica e da luta contra a prepotência dos Estados e das
políticas “socialistas” dos altos impostos. Isto vem de quem fez o “enorme
aumento de impostos”, retirou aos contribuintes qualquer protecção face aos
abusos do fisco e só é “liberal” na bandeirinha da lapela. Pobre da “mão
invisível” que foi possuída pela família Adams.
Também nos offshores se verifica a
escassíssima vontade dos políticos europeus, que tem à sua cabeça institucional
o senhor Juncker, que tem no seu currículo ter feito enquanto
primeiro--ministro do Luxemburgo todo o tipo de acordos ilegais, insisto,
ilegais, à luz das regras europeias, destinadas a levar para o seu país
empresas que aí encontravam um paraíso fiscal protegidas pelo segredo de
Estado. Ou no caso do Reino Unido, em que dezenas de offshores estão em
territórios sob soberania britânica.
O problema como sempre é o dos alvos
e dos intocáveis. Ou melhor: defender por todos os meios os “intocáveis” de
serem tocados e impedir que os alvos deixem de ser alvos. O objectivo da
política do “ajustamento”, policiada pelas instituições europeias sem estatuto
democrático como o Eurogrupo, ou pelo FMI, em consonância com os “mercados”,
foi proteger o sistema bancário, os “mercados”, o dinheiro que “flui” e, sem o
dizer, no mesmo pacote vão os offshores “contra os quais nada se pode fazer”. E
o melhor atestado de ineficácia da múltipla legislação europeia tão gabada nas
suas intenções de dar “transparência” ao sistema financeiro e combater a
corrupção é o que revelam estes “Documentos do Panamá” e muitas outras
estimativas sérias: o dinheiro que vai para os offshores é cada vez mais.
Ponto.
A solução da questão dos offshores é
simples, se tivermos vontade para a aplicar. E desconfiem de quem venha com
muitas complexidades e complicações, é sempre mau sinal. Insisto, não é muito
complicado: trata-se de comparar o dinheiro dos offshores com o dinheiro dos
terroristas. Um rouba, em grande escala, Estados e povos, o outro mata. Um mata
à fome em África, outro nas ruas de Paris ou em Nova Iorque. Um destrói
economias, poupanças, classes médias criadas com muitos anos e esforços para progredir,
outro escraviza povos e reduz a ruínas países já muito pobres. É uma comparação
que admito ser excessiva, mas, se partirmos dela, talvez possamos compreender
(ou não) por que razão aquilo que se admite em termos de recursos de
investigação, penalizações duríssimas, confisco de bens do crime ou da droga,
ou da corrupção ou da fuga ao fisco, e se aplica ao dinheiro do terrorismo, se
pode aplicar ao dinheiro ilegal dos offshores. Ah! Já estou a ouvir em fundo:
“Mas muito desse dinheiro é legal.” Ai é? Então, qual é o motivo por que em vez
de estar inshore vai para os offshores?
Deixem-se por isso de falsos espantos
e falsas surpresas. Tudo o que está nos “Documentos do Panamá” não é novidade
para ninguém. Como não é novidade para ninguém o discurso de “não se pode fazer
nada”. Mas, se queremos salvar a democracia no século XXI, o problema do
dinheiro anónimo, escondido, fugido e protegido algures numa caixa de correio
humilde de uma casa nas Ilhas Caimão, ou num cacifo acolchoado de um luxuoso
escritório de advogados no Panamá é objectivamente mais dissolvente do que os
tiros de uma Kalashnikov nas ruas de Bruxelas. Faz-nos pior, porque os tiros
são-nos exteriores, são do “inimigo”, e os biliões das Ilhas Virgens são de
dentro, dos “amigos”.
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* Já agora... http://www.significados.com.br/offshore/