domingo, 10 de janeiro de 2016

Sobre o debate entre Sampaio da Nóvoa e Marcelo Rebelo de Sousa




Só ontem vi o debate na SIC (gravação) entre Sampaio da Nóvoa e Marcelo Rebelo de Sousa.
Incrível, a arrogância de Marcelo autoproclamando-se como o melhor político, o melhor candidato, o que tem mais experiência política!

Que é isto, meus senhores? Um indivíduo que passou a vida a pavonear-se nas TVs, no Conselho de Estado, nos jornais, um indivíduo claramente parcial no tocante à sua família partidária, vem agora querer humilhar S da Nóvoa porque, segundo aquele, este não tem a sua experiência política?

Felizmente que S da Nóvoa não tem a experiência política de MR de Sousa, um homem de direita e da direita perigosamente consensual e interclassista!

S da Nóvoa tem aquilo que muitos nunca terão, a começar por MRS: a experiência cidadã genuína que faz parte da sua própria natureza humanista, de um humanismo que à esquerda democrática enobrece, engrandece e ao país também. 

Sampaio da Nóvoa não precisou de construir o seu currículo nos media nem de propagandear o que tinha e não tinha, o que sabia ou não sabia: conquistou quem não o conhecia pela sua posição serena, pela sua educação, pelos valores que transparece e pela convicção com que os tem sempre firmado e afirmado, discretamente, seguramente, a começar pelos seus alunos, os primeiros arautos da sua mensagem e da veracidade da mesma.

S da Nóvoa é o homem da mudança esperada e no momento certo, tal como o fora Eanes, para cuja candidatura orgulhosamente também trabalhei.

Nenhum político será um bom político ou um bom candidato a um cargo político se se ancorar continuamente, simplesmente, no cargo ou títulos que tem, nos convites que lhe fazem, nos eventos onde aparece, nas pessoas com as quais se deixa fotografar, no populismo balofo e de mau gosto, nos velhos pergaminhos, na vaidade estupidamente arrogante e brejeira, na humilhação dos outros, nos golpes baixos ou na baixeza das palavras que cinicamente lhes dirige, como fez M R de Sousa a S da Nóvoa no debate de 5ª feira, na SIC.

Jamais a verborreia trará sustentação ao discurso, sobretudo ao discurso político, particularmente ao discurso de alguém que se candidata ao cargo de Presidente da República Portuguesa.

Eu quero um PR culto e dialogante, serenamente atento mas ativamente crítico.

Estou farta da mudança na continuidade.
Está na hora, pessoal! Sampaio da Nóvoa a Presidente da República!



Nazaré Oliveira

domingo, 3 de janeiro de 2016

Instabilidade política



"(...) A instabilidade está inscrita em todos os sistemas políticos e eleitorais dos países que passaram por processos de "ajustamento". Não é conjuntural, é estrutural. Significa que os estragos do "ajustamento" não se verificaram apenas na economia e na sociedade, mas também na representação política. Fragilizaram os partidos do chamado "arco da governação", secaram a alternância dos partidos socialistas face aos conservadores e a direita, moldaram -nos à mesma política "sem alternativa", reforçaram os extremos, à direita e à esquerda, e varreram o centro político do mapa. Isto acontece com diferentes graus e diferentes velocidades, um pouco por todo o lado na Europa. Virou os trabalhistas ingleses para a esquerda, reforçou e depois matou o Syriza, reforçou a Aurora Dourada e a Frente Nacional, criou o Podemos, mas, acima de tudo, aumentou a abstenção (a grande mentira da noite eleitoral foi a "descida" da abstenção) e, ao subordinar a vontade do eleitorado a um poder transnacional que não é controlado democraticamente, a "Europa", tornou o votar um acto que não é inteiramente livre. O facto de estes movimentos e processos ainda não terem tido, com excepção na Grécia, uma significativa expressão eleitoral que lhes permita "ganhar" eleições, não impede que as perturbações no sistema político não estejam já adquiridas e que não haja uma crise de representação profunda na Europa. (...)"

J Pacheco Pereira in http://www.sabado.pt/opiniao/detalhe/semper_fi.html

Sobre autonomia das escolas públicas



SOBRE AUTONOMIA DAS ESCOLAS PÚBLICAS

Margarida Olazabal Cabral[1] | Ana Rita Bessa[2] | Número 2 | Junho 2014

Sumário: 1. Introdução. 2. Uma história de centralismo. 3. Um conceito de autonomia. 3.1. Distinções e uma definição. 3.2. A contratualização como instrumento de execução. 4. Algumas limitações e possíveis soluções para uma autonomia efetiva. 5. Conclusões

 RESUMO: A autonomia das escolas públicas tem sido amplamente discutida, nas mais diversas perspetivas, e parece ser uma ideia consensual. No entanto, se analisarmos a realidade somos levados a concluir que as nossas escolas não são verdadeiramente autónomas. Neste trabalho procuram-se perceber as razões que levam a que assim seja, e defende-se um conceito de autonomia baseado na ideia de atribuição, através de contrato, de efetivos poderes às escolas que lhes permitam prosseguir um projeto próprio que as diferencie umas das outras. Esta visão determina que as funções do Estado, em especial do Ministério da Educação e Ciência (e a sua própria orgânica), devam ser repensadas. Apontam-se algumas das dificuldades que se colocam a uma efetiva autonomia, e sugerem-se caminhos possíveis para as superar.

PALAVRAS-CHAVE: serviço público de educação; escolas; autonomia; descentralização; desconcentração


1. INTRODUÇÃO

O tema da autonomia das escolas do ensino não superior tem sido sobejamente tratado desde há vários anos, através de diversas lentes de análise, sejam políticas, jurídicas, académicas, sociológicas, e sob diversos formatos, normativos legais, projetos-piloto, efetivos contratos, inúmeros fóruns de debate e um sem-fim de teses de mestrado e doutoramento.

Paradoxalmente, onde menos parece ter sido tratado – ou pelo menos, bem tratado – é exatamente no terreno, nas escolas, onde deveria ter expressão e concretização, sob pena de se tornar num conceito vazio, desgastado e sem propósito.

Neste trabalho, não nos arrogamos a pretensão de trazer uma visão particularmente inovadora, nem tão-pouco uma solução simplista para um tópico há tanto tempo em debate. Procurámos, sim, levantar as questões que nos parecem centrais para a clarificação do conceito. Tentámos perceber o que inibe a realização efetiva da autonomia, designadamente através da análise dos instrumentos legais, iniciativas discursivas ou impreparações de facto, que justificam poder-se dizer com propriedade que não existe, na generalidade dos casos, uma verdadeira escola pública com autonomia.

No presente trabalho, começamos por olhar para a história da escola pública, para percebermos que ela tem sido, como em tantos outros campos da nossa Administração Pública, uma história de centralismo. Um centralismo que, no caso das escolas, não terminou, mesmo quando se tornou consensual no discurso a defesa da sua autonomia. Em seguida, procuramos delimitar o conceito de autonomia, designadamente face aos de descentralização e de desconcentração, e avançamos com a noção de autonomia que entendemos ser de defender para as nossas escolas, bem como o modo de a implementar. Em seguida, arriscamos apontar razões reais de fracasso da autonomia, e os efetivos limites da mesma, para, finalmente, procurarmos apontar caminhos de futuro para uma verdadeira autonomia das escolas.

 2. UMA HISTÓRIA DE CENTRALISMO

Por razões históricas, o sistema de escolas públicas em Portugal nasceu e cresceu de forma centralizada, a partir de um Ministério, muito de acordo com o modelo francófono.

A nossa política de educação tem uma tradição muitíssimo centralizadora, que se acentua na segunda metade do século XX e que não recua verdadeiramente depois disso, apesar do regime democrático parecer reclamar o contrário. Não existe, como no caso dos países anglo-saxónicos, a tradição de uma escola que é dominada por uma comunidade local e que, por essa razão, tem uma dose de autonomia inata no seu DNA. Pelo contrário, as nossas escolas não têm prática de serem autónomas, estando mais habituadas a ter de cumprir aquilo que lhes é ditado pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC).

Durante o regime liberal oitocentista, aquilo que caracteriza o sistema de ensino português é uma enorme tensão entre a tradição centralizadora e algumas experiências de descentralização. Em abril de 1890 é criado o Ministério da Instrução Pública e Belas-Artes, antecessor do atual MEC, marcando a opção centralizadora. A razão invocada era o insucesso da descentralização da política de educação.

Na I República, começa-se por se hesitar ainda em defender a descentralização, mas a experiência dura pouco (Sidónio Pais, em 1918, põe-lhe termo). “O centralismo na administração do sistema educativo consolidar-se-á no Estado Novo, aproximando-se do modelo extremado de uma regulação coerciva, autoritária e de pendor fortemente nacionalista e endoutrinadora. Com esse modelo, o conceito de Estado Educador ganha a sua máxima expressão, em que o papel das escolas, das comunidades e das autarquias se remete à estrita concretização das orientações superiores. A imagem da descentralização ficaria, entretanto, associada às efémeras experiências dos regimes liberal e republicano e ao seu insucesso real ou, pelo menos, à não consensualização de um modelo cujos resultados são, no mínimo duvidosos.”[3]

David Justino afirma, em seguida, que “uma das questões mais enigmáticas relativas à evolução do sistema de ensino em Portugal prende-se com a transição do modelo de organização do ensino herdado do Estado Novo para o modelo do regime democrático. As transformações ocorridas logo após a revolução, sendo profundas no que diz respeito ao currículo, à administração das escolas e ao controlo macro das novas instituições democráticas, revelaram-se superficiais no que respeita a qualquer reconfiguração descentralizadora. Aparentemente os mecanismos de regulação coerciva, de caráter burocrático e administrativo, mantiveram-se praticamente intactos, o mesmo é dizer, fortemente centralizados. Ousaríamos dizer que o conceito de Estado Educador se poderia aplicar a preceito a dois regimes políticos de tão contrária natureza”. [4]

Os vários estudos confirmam que a “organização centralizadora e burocrática (...) continua a dominar a administração da educação em Portugal”[5]. Nas palavras de Gomes Canotilho, terá prevalecido uma “alegada conceção jacobina de ensino, traduzida na unicidade e uniformidade da oferta escolar[6].

Na verdade, a democracia traz um discurso a favor da descentralização e da autonomia das escolas, mas a prática (muitas vezes, suportada por normas jurídicas) foi a de continuar a desconfiar da capacidade das escolas se autodeterminarem, não abdicando o Estado de tudo regular e determinar. A par do aumento da escolaridade obrigatória, esta prática levou à criação de sistema administrativo central, com grande dimensão e peso.

É verdade que nos últimos anos se acentuou a afirmação de uma política pública de concessão de autonomia às escolas. Na atual legislatura, o Governo fez mesmo da concessão de autonomia às escolas uma “bandeira” da sua política educativa.

É também certo que a legislação reflete esse discurso, pelo menos – embora não só – na terminologia utilizada. Desde 1989 (com o Decreto-Lei n.º 43/89, de 3 de fevereiro)[7] que o Estado português legisla no sentido de conferir autonomia às escolas. Em 1998, prevê-se pela primeira vez o “contrato de autonomia”. No entanto, paralelamente a essa autonomia consagrada, o legislador continuou a regular, de modo uniforme, e não permitindo opções da própria escola, uma série de matérias que se diria deverem ser atribuídas às escolas com autonomia.

Essa “ambivalência” do Estado legislador e do Estado Administração – que quer dar poder de autodeterminação mas simultaneamente desconfia da capacidade de escolas autónomas prestarem um bom serviço público de educação – mantém-se até hoje.

O legislador tem reforçado o enquadramento legal da autonomia, estendendo-o recentemente a uma maior liberdade de configuração do currículo. Os 22 contratos de autonomia existentes em 2007 deram lugar a mais de 300 contratos de autonomia em 2014.

Paralelamente, e paradoxalmente, continua-se a não se resistir à tentação centralizadora de tudo regular e continuamos a ter portarias, decretos-regulamentares, despachos normativos e todas as formas de regulamentos administrativos (e mesmo de atos administrativos) emanados do MEC que não permitem o exercício de uma verdadeira autonomia.

Pode dizer-se, por um lado, que a realidade declarada pelo legislador é contrariada pela prática administrativa, em especial do próprio Ministério. Mas, por outro lado, podemos mesmo ir mais longe e duvidar de que aquilo que se proclama – e que as diversas leis regulam – seja verdadeiramente a atribuição dos poderes às escolas que lhes permitam auferir de uma verdadeira autonomia.

Importa então perceber de que tratamos quando falamos de autonomia.

 3. UM CONCEITO DE AUTONOMIA

3.1. DISTINÇÕES E UMA DEFINIÇÃO

Pese embora tratar-se de um termo aparentemente banal no contexto da política de Educação, a verdade é que não existe uma visão clara, ou consensual, sobre o conceito de autonomia das escolas, o que este inclui e em que deve ser limitado, qual o seu objetivo último, como se realiza e efetiva e em benefício de quem.

Aliás, e ao longo do tempo, a sua definição tem sido revista pelo legislador por diversas vezes. Por exemplo, nos termos do Decreto-Lei n.º 43/89, a autonomia da escola foi definida como “(…) a capacidade de elaboração e realização de um projeto educativo em benefício dos alunos e com a participação de todos os intervenientes no processo educativo (…)” (n.º 1 do artigo 2.º).

Em 1998, o mesmo conceito passou a ser entendido como “(…) o poder reconhecido à escola pela administração educativa de tomar decisões nos domínios estratégico, pedagógico, administrativo, financeiro e organizacional, no quadro do seu projeto educativo e em função das competências e dos meios que lhe estão consignados. (…)” (n.º 1 do artigo 3.º do Decreto‐Lei n.º 115‐A/98, de 4 de maio)[8].

Já em 2008, no Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril (n.º 1 do artigo 8.º)[9], a abrangência passou a ser maior e a autonomia a ser entendida como “a faculdade reconhecida ao agrupamento de escolas ou à escola não agrupada pela lei e pela administração educativa de tomar decisões nos domínios da organização pedagógica, da organização curricular, da gestão dos recursos humanos, da ação social escolar e da gestão estratégica, patrimonial, administrativa e financeira, no quadro das funções competências e recursos que lhe estão atribuídos”.

Parece-nos importante começar por clarificar três ideias que, no debate público, tendem a confundir-se, a saber: descentralização, desconcentração e autonomia propriamente dita.

 A. DESCENTRALIZAÇÃO:

A descentralização, do ponto de vista jurídico, é um processo de atribuição de competências a pessoas coletivas territoriais para além do Estado, maxime as autarquias locais, as quais prosseguem fins próprios.

Para os melhores amigos



Miguel Esteves Cardoso defendeu, em “As Minhas Aventuras na República Portuguesa”, que o que distingue os seres humanos é “o esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas”, sejam elas amores, passatempos, ou o melhor do mundo, as amizades.

Não há, para mim, sentimento mais nobre, mais puro e altruísta do que a amizade. Não somos amigos por ser, não coleccionamos amigos, muito menos nos obrigamos a manter amizades que não queremos. Se o fazemos, estamos a errar. A amizade, de tão nobre que é, permite-nos exactamente isso: ser autónomos e, mais que isso, verdadeiros. Sem tabus, sem politiquices, sem esquisitices. Somos amigos porque queremos aquela pessoa na nossa vida, porque queremos partilhar a nossa existência com ela e, acima de tudo, queremos que ela seja um agente activo nesta nossa jornada.

Ser amigo dá muito trabalho. Implica muito esforço e erramos muitas vezes. Não é um amor que um dia termina e fica longe do coração. Não é uma sociedade que cumpre normas. Não temos regras impostas, porque vivemos na fase da experimentação. Continuamente. O ambiente, a massa da amizade começa a formar-se e torna-se tão nossa que sabemos na perfeição como moldá-la.

Há vários tipos de amizade. Entre as quais, as de infância em que crescemos com aquela presença e, sem explicações – porque não as precisamos – somos amigos a vida toda. Para sempre.

Há as amizades paixão. São intensas mas muito fugazes. Conforme surgem na nossa vida também saem. E desaparecem.

Depois há as amizades-amor. São mais do que tudo. São meias pessoas. Aliás, são pessoas inteiras naquilo que somos, no nosso ser. Não precisam de saber tudo, mas sabem, mesmo sem contarmos. Vivem connosco mesmo que estejam a milhares de quilómetros de distância. Avançamos de mãos dadas sem, muitas vezes, nos tocarmos. Estamos ligados umbilicalmente, tal como uma mãe e o seu filho.

Amizades de anos, meses ou horas. São o que são. Mas arrebatam-nos o coração. Deixa de ser – permitam-me o egoísmo – um trabalho para o nosso bem. Ver aquele amigo feliz deixa-nos a jubilar, e isso é viciante. Olhar a felicidade naquele que amamos é elevar os pés do chão e provar um bocadinho do céu.

Não que precisasse, mas estar longe reforçou essa certeza. Os nossos amigos são os melhores do mundo. Mas são-no porque é um trabalho de equipa. Nosso e deles. Nós queremos ser amigos, e sabemos sê-lo. Somos muito bons nisto. Somos os melhores. E, por isso, uma vez mais, todos nós temos os melhores amigos do mundo. Porque amamos. Sabemos amar. É amor.


Isto é para vocês, melhores amigos do mundo, que longe ou perto não saem do meu coração. Que trabalham nesta nossa aventura juntos. Que apresentam as ideias mais idiotas com o ar mais sério de sempre. Que riem nos momentos inapropriados. Que silenciam as nossas vergonhas e nos empurram nos nossos medos. Isto é para vocês, melhores amigos do mundo.


in http://capazes.pt/cronicas/aos-melhores-amigos-do-mundo/view-all/

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Viva Saramago! Sempre!

José Saramago
Foto de Ana Baião, EXPRESSO


Aqui, na íntegra, o texto inédito de José Saramago sobre a democracia e o poder político, lido numa conferência em Sevilha em 1991, aquando 
da comemoração do quinto centenário dos Descobrimentos. Um texto que se mantém completamente atual. 
Publicado no EXPRESSO de 18.06.2015.


Abro com duas citações de Aristóteles, ambas extraídas de Política. A primeira delas, curta, sintética, diz-nos que “em democracia, os pobres são soberanos, com exclusão dos ricos, porque são eles o maior número, e porque a vontade da maioria é lei”. A segunda, que, começando por anunciar uma restrição ao alcance da primeira, não só, afinal de contas, a alarga e completa, como a si própria praticamente se alcandora à altura de um axioma, esse princípio que, por evidente, não requer, para convencer, o esforço de uma demonstração. Eis o que nos diz a citação segunda: “A igualdade (no Estado) pede que os pobres não tenham mais poder que os ricos, que não sejam eles os únicos soberanos, mas que o sejam todos na proporção do número existente de uns e outros. Este parece ser o meio de garantir ao Estado, eficazmente, a igualdade e a liberdade”. Se não estou demasiado equivocado na interpretação desta passagem, o que Aristóteles nos está a dizer aqui é que os cidadãos ricos, embora participando, com toda a legitimidade democrática, no governo da polis, sempre estariam em minoria nele, pelo simples efeito de uma proporcionalidade imperativa e incontestável. Em algo Aristóteles acertava: que se saiba, ao longo de toda a História, jamais os ricos foram em maior número que os pobres. Mas esse acerto do filósofo de Estagira, pura obviedade aritmética, estilhaça-se contra a dura muralha dos factos: os ricos foram sempre aqueles que governaram o mundo ou que sempre tiveram quem por eles governasse. E hoje, provavelmente, mais do que nunca. Não resisto a recordar-vos, sofrendo com a minha própria ironia, que, para o discípulo de Platão, o Estado era a forma superior da moralidade...

Qualquer manual elementar de Direito Político nos informará que a democracia é “uma organização interna do Estado em que cabe ao povo a origem e o exercício do poder político, uma organização em que o povo governado governa por intermédio dos seus representantes”, ficando assim asseguradas, acrescentará o dito manual, “a intercomunicação e a simbiose entre governantes e governados, no quadro de um Estado de direito”. Em minha modesta opinião, aceitar acriticamente definições como esta, sem dúvida de uma pertinência e de um rigor formal que quase tocam a fronteira das ciências exactas, corresponderia, se nos transportássemos ao quadro pessoal da nossa quotidianidade biológica, a não dar atenção à gradação infinita de estados mórbidos, patológicos ou degenerativos de diversa gravidade que é possível, em cada momento, perceber no nosso próprio corpo. Expressando-me de outra maneira: o facto de a democracia poder ser definida de acordo com as fórmulas antes citadas, ou outras igualmente equivalentes em precisão e rigor, não significa que como real e efectiva democracia tenhamos de caracterizá-la em todos os casos e circunstâncias, só porque ainda é possível, quando o seja, reencontrar e identificar, no conjunto dos seus órgãos institucionais e das suas estruturas, algum ou alguns dos traços que nas referidas definições se explicitem ou que nela estejam implícitos.

Uma breve e primária incursão pela história das ideias políticas vai servir-me para trazer à colação duas questões simples que, sendo do conhecimento de toda a gente, são também, não obstante, e com o costumado argumento de que os tempos mudaram, postos de lado e desconsiderados sempre que se apresente a ocasião de reflectir, não já sobre meras definições de democracia, mas sobre a sua substância concreta. A primeira questão recordar-me-á que a democracia apareceu na Grécia clássica, mais exactamente em Atenas, por alturas do século V antes de Cristo; que essa democracia pressupunha a participação de todos os homens livres no governo da cidade; que se baseava na forma directa, sendo efectivos todos os cargos, ou atribuídos segundo um sistema misto de sorteio e eleição; que os cidadãos tinham direito a votar e a apresentar propostas nas assembleias populares.

Porém (e esta é a minha segunda questão), em Roma, continuadora e herdeira imediata das inovações civilizadoras dos Gregos, o sistema democrático, apesar das provas dadas no país de origem, não conseguiu ser estabelecido. Conhecemos as razões. A par de alguns outros factores adjuvantes, no entanto de menor importância social e política, o principal e definitivo obstáculo à implantação da democracia em Roma proveio do enorme poder económico de uma aristocracia fundiária que, muito justificadamente, via no sistema democrático um inimigo directo dos seus interesses. Embora tendo presente o risco de generalizações abusivas a que as extrapolações de tempo e de lugar sempre nos podem levar, é irresistível que me interrogue sobre se os impérios económicos e financeiros dos nossos dias, multinacionais e pluricontinentais, não estarão, eles também, fiéis à exclusiva e implacável lógica dos interesses, a trabalhar, fria e deliberadamente, para a eliminação progressiva de uma possibilidade democrática que, cada vez mais afastada temporalmente das suas indecisas expressões de origem, vai a caminho de um rápido estiolamento, por enquanto ainda mantida nas suas formas exteriores, mas profundamente desvirtuada na sua essência. Pergunto-me até que ponto poderão dar-nos garantias de uma acção realmente democrática as diversas instâncias do poder político quando, aproveitando-se da legitimidade institucional que lhes adveio da eleição popular, tentam desviar a nossa atenção da evidência palmar de que no mesmíssimo processo da votação já se encontravam presentes, e em conflito, por um lado, a expressão de uma opção política representada materialmente pelo voto e, por outro lado, a demonstração involuntária de uma abdicação cívica na maior parte dos casos sem consciência de si mesma? Por outras palavras: não será verdade que, no mesmo exacto instante em que o seu voto foi introduzido na urna, o eleitor transferiu para outras mãos, na prática e sem mais contrapartidas que as promessas que lhe haviam sido feitas durante a campanha eleitoral, a parcela de poder político que até esse momento lhe pertencera de legítimo direito como membro da comunidade de cidadãos?

Parecer-vos-á talvez imprudente da minha parte este papel de advogado do Diabo que aqui estou parecendo assumir, ao começar por denunciar o vazio instrumental que, nos nossos sistemas democráticos, separa aqueles que elegeram daqueles que foram eleitos, para logo a seguir, e sem ao menos recorrer à habilidade retórica de uma transição preparatória, passar a interrogar-me sobre a pertinência e a propriedade efectivas dos distintos processos políticos de delegação, representação e autoridade democrática.

Uma razão mais para que nos detenhamos um pouco a ponderar sobre o que a nossa democracia é e para que serve, antes de pretendermos, como se tornou moda do tempo, que ela se torne obrigatória e universal. Porque esta caricatura de democracia que, como missionários de uma nova religião, andamos a querer, pela persuasão ou pela força, difundir e instalar no resto do mundo, não é a democracia dos sábios e ingénuos Gregos, mas aquela outra que os pragmáticos Romanos teriam implantado nas suas terras se nela tivessem visto alguma utilidade prática, como ouso dizer que está a suceder à nossa volta neste começo de milénio, agora que a temos aí diminuída e rebaixada por mil e um condicionantes de toda a espécie (económicos, financeiros, tecnológicos, estruturais), os quais, não nos reste nenhuma dúvida, teriam levado os latifundistas do Lácio a mudar rapidamente de ideias, tornando-se nos mais activos e entusiásticos “democratas”... Chegados a esta altura do discurso, é mais do que provável que no espírito de muitos dos que até agora me têm escutado com benevolência principie a despontar a incómoda suspeita de que o orador, afinal de contas, não tem nada de democrata, o que, como não deixariam os mais informados e argutos de acrescentar, pertenceria ao domínio das verdades óbvias, conhecidas como geralmente são as minhas inclinações ideológicas e políticas... Que não é este o lugar nem este o momento de justificar ou defender, já que apenas me propus trazer aqui algo do que tenho pensado sobre a ideia, a suposição, a convicção, a esperança de que estejamos caminhando, todos juntos, em direcção a um mundo realmente democratizado, caso em que estaríamos convertendo em realidade, dois milénios e meio depois de Sócrates, Platão e Aristóteles, e num nível superior de consecução, a quimera grega de uma sociedade harmoniosa, agora já sem diferença entre senhores e escravos, segundo dizem as almas cândidas que ainda acreditam na perfeição... Uma vez que as democracias a que redutoramente temos chamado ocidentais não são censatárias nem racistas, uma vez que o voto do cidadão mais rico ou de pele mais clara pesa e conta tanto nas urnas como o do cidadão mais pobre ou de pele mais escura, que o mesmo é dizer, colocando as aparências no lugar das realidades, nós teríamos alcançado o grau óptimo de uma democracia de teor resolutamente igualitário, à qual só estaria a faltar uma mais ampla cobertura geográfica para se tornar no suspirado sucedâneo político das panaceias universais da antiguidade médica. Ora, se me é permitido lançar alguma água fria nestes superficiais e unânimes fervores, direi que a realidade brutal do mundo em que vivemos torna definitivamente irrisórios os traços idílicos do quadro que acabo de descrever, e que sempre, de uma maneira ou de outra, acabaremos por encontrar, por fim já sem surpresa, um corpo autoritário particular sob as roupagens democráticas gerais. Tentarei explicar-me melhor. Ao afirmar que o acto de votar, sendo obviamente expressão de uma vontade política determinada, é também, em simultâneo, um acto de renúncia ao exercício dessa mesma vontade, implicitamente manifestado na delegação operada pelo poder próprio do votante, ao afirmá-lo, repito, coloquei-me tão somente no primeiro limiar da questão, sem considerar então outros prolongamentos e outras consequências do acto eleitoral, quer do ponto vista institucional, quer do ponto de vista dos diversos estratos políticos e sociais em que decorre a vida da comunidade de cidadãos. Observando agora as coisas mais de perto, creio poder concluir que sendo o acto de votar, objectivamente, pelo menos em grande parte da população de um país, uma forma de renúncia temporal à acção política que deveria ser-lhe natural e permanente, mas que se vê adiada e posta em surdina até às eleições seguintes, altura em que os mecanismos delegatórios recomeçarão do princípio para da mesma maneira virem a terminar, ela, essa renúncia, poderá ser, não menos objectivamente, para a minoria dos eleitos, o primeiro passo de um processo que, estando democraticamente justificado pelos votos, não raras vezes prossegue, contra as baldadas esperanças dos iludidos votantes, objectivos que de democráticos nada têm e que poderão até, na sua concretização, chegar a ofender frontalmente a lei. Em princípio, a nenhuma comunidade mentalmente sã lhe passaria pela cabeça a ideia de eleger traficantes de armas e de drogas ou, em geral, indivíduos corruptos e corruptores para seus representantes nos parlamentos ou nos governos, porém, a amarga experiência de todos os dias mostra-nos que o exercício de amplas áreas do poder, tanto em âmbitos nacionais como internacionais, se encontra nas mãos desses e de outros criminosos, ou dos seus mandatários políticos directos e indirectos. Nenhum escrutínio, nenhum exame microscópico dos votos lançados numa urna seria capaz de tornar visíveis, por exemplo, os sinais denunciadores das relações de concubinato entre a maioria dos Estados e grupos económicos e financeiros internacionais cujas acções delituosas, incluindo aqui as bélicas, estão a levar à catástrofe o planeta em que vivemos.

Aprendemos dos livros, e as lições da vida o confirmam, que, por mais equilibradas que se apresentem as suas estruturas institucionais e respectivo funcionamento, de pouco nos servirá uma democracia política que não tenha sido constituída como raiz e razão de uma efectiva e concreta democracia económica e de uma não menos concreta e efectiva democracia cultural. Dizê-lo nos dias de hoje há-de parecer, mais que uma banalidade, um exausto lugar-comum herdado de certas inquietações ideológicas do passado, mas seria o mesmo que fechar os olhos à realidade das ideias não reconhecer que aquela trindade democrática — a política, a económica, a cultural —, cada uma delas complementar das outras, representou, no tempo da sua prosperidade como projecto de futuro, uma das mais congregadoras bandeiras cívicas que alguma vez, na história recente, foram capazes de comover corações, abalar consciências e mobilizar vontades. Hoje, pelo contrário, desprezadas e atiradas para a lixeira das fórmulas que o uso, como a um sapato velho, cansou e deformou, a ideia de uma democracia económica, por muito relativizada que tivesse de ser, deu lugar a um mercado obscenamente triunfante, e a ideia de uma democracia cultural foi substituída por uma não menos obscena massificação industrial das culturas, esse falso melting-pot com que se pretende disfarçar o predomínio absoluto de uma delas. Cremos haver avançado, mas, de facto, retrocedemos. E cada vez se irá tornando mais absurdo falar de democracia se persistirmos no equívoco de identificá-la com as suas expressões quantitativas e mecânicas, essas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem proceder antes a um exame sério e conclusivo do modo como eles utilizam o voto que os colocou no lugar que ocupam.

Uma democracia que não se auto-observe, que não se auto-examine, que não se autocritique, estará fatalmente condenada a anquilosar-se. Não se conclua do que acabo de dizer que estou contra a existência dos partidos: sou militante de um deles. Não se pense que aborreço os parlamentos: querê-los-ia, isso sim, mais laboriosos e menos faladores. E tão-pouco se imagine que sou o inventor de uma receita mágica que, doravante, permitirá aos povos viverem felizes sem governos: apenas me recuso a admitir que só seja possível governar e desejar ser governado de acordo com os modelos democráticos em uso, a meu ver incompletos e incoerentes, esses modelos que, numa espécie de assustada fuga para a frente, pretendemos tornar universais, como se, no fundo, só quiséssemos fugir dos nossos próprios fantasmas, em vez de os reconhecer como o que são e trabalhar para vencê-los. Chamei “incompletos” e “incoerentes” aos modelos democráticos em uso porque realmente não vejo como se possa designá-los de outra maneira.

Uma democracia bem entendida, inteira, redonda, irradiante, como um sol que por igual a todos ilumine deverá, em nome da pura lógica, começar por aquilo que temos mais à mão, isto é, o país onde nascemos, a sociedade em que vivemos, a rua onde moramos. Se esta condição primária não for observada, e a experiência de todos os os dias diz-nos que não o é, todos os raciocínios e práticas anteriores, quer dizer, a fundamentação teórica e o funcionamento experimental do sistema, estarão, desde o início, viciados e corrompidos. De nada adiantará limpar as águas do rio à sua passagem pela cidade se o foco contaminador estiver na nascente. Vimos já como se tornou obsoleto, fora de moda, e até mesmo ridículo, invocar os objectivos humanistas de uma democracia económica e de uma democracia cultural, sem os quais o que designamos por democracia política ficou limitado à fragilidade de uma casca, acaso brilhante e colorida de bandeiras, cartazes e palavras de ordem, mas vazia de conteúdo civicamente nutritivo. Querem, porém, as circunstâncias da vida actual que até mesmo essa delgada e quebradiça casca das aparências democráticas, ainda preservadas pelo impenitente conservadorismo do espírito humano, ao qual costumam bastar as formas exteriores, os símbolos e os rituais para continuar a acreditar na existência de uma materialidade já carecida de coesão ou de uma transcendência que deixou perdidos pelo caminho o sentido e o nome — querem as circunstâncias da vida actual, repito, que as cintilações e as cores que até agora têm adornado, diante dos nossos resignados olhos, as desgastadas formas da democracia política, se estejam a tornar rapidamente baças, sombrias, inquietantes, quando não impiedosamente grotescas como a caricatura de uma decadência que se vai arrastando entre chufas de desprezo e uns últimos aplausos irónicos ou de interessada conveniência.

Como sempre aconteceu desde o começo do mundo e sempre continuará a acontecer até ao dia em que a espécie humana se extinga, a questão central de qualquer tipo de organização social humana, da qual todas as outras decorrem e para a qual, mais cedo ou mais tarde, todas acabam por concorrer, é a questão do poder, e o principal problema teórico e prático com que nos enfrentamos consistirá na necessidade de identificar quem o detém, de averiguar como chegou a ele, de verificar o uso que dele faz, os meios de que se serve e os fins a que aponta. Se a democracia fosse, de facto, o que com autêntica ou simulada ingenuidade continuamos a dizer que é, o governo do povo, pelo povo e para o povo, qualquer debate sobre a questão do poder deixaria de ter sentido, uma vez que, residindo o poder no povo, seria ao povo que competiria a sua administração, e, sendo o povo a administrar o poder, está claro que só o poderia fazer para o seu próprio bem e para a sua própria felicidade, pois a isso o estaria obrigando aquilo a que chamo, sem qualquer aspiração a um mínimo de rigor conceptual, a lei da conservação da vida. Ora, só um espírito perverso, panglossiano até ao cinismo, teria a ousadia de afirmar que o mundo em que vivemos é satisfatoriamente feliz, este mundo que, pelo contrário, ninguém deveria pretender que o aceitemos tal qual é, só pelo facto de ser, repetindo o conhecido nariz-de-cera, o melhor dos mundos possíveis. Também insistentemente se afirma que a democracia é o menos mau sistema político de todos quantos até hoje se inventaram, e não se repara que talvez esta conformidade resignada com uma coisa que se contenta com ser “a menos má” seja o que nos anda a travar o passo que porventura seria capaz de conduzir-nos a algo “melhor”.

Por sua própria natureza e definição, o poder democrático será sempre provisório e conjuntural, dependerá da instabilidade do voto, da flutuação das ideologias e dos interesses das classes, e, como tal, pode até ser visto como uma espécie de barómetro orgânico que vai registando as variações da vontade política da sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com uma amplitude cada vez maior, abundam os casos de alterações políticas aparentemente radicais que tiveram como efeito radicais alterações de governo, mas a que não se seguiram as alterações sociais, económicas e culturais igualmente radicais que o resultado do sufrágio havia prometido.

Efectivamente, dizer hoje “governo socialista”, ou “social-democrata”, ou “democrata-cristão”, ou “conservador”, ou “liberal”, e chamar-lhe “poder”, é como uma operação de cosmética, é pretender nomear algo que não se encontra onde se nos quer fazer crer, mas sim em outro e inalcançável lugar — o do poder económico —, esse cujos contornos podemos perceber em filigrana

por trás das tramas e das malhas institucionais, mas que invariavelmente se nos escapa quando tentamos chegar-lhe mais perto e que inevitavelmente contra-atacará se alguma vez tivermos a louca veleidade de reduzir ou disciplinar o seu domínio, subordinando-o às pautas reguladoras do interesse geral. Por outras e mais claras palavras, afirmo que os povos não elegeram os seus governos para que eles os “levassem” ao mercado, e que é o mercado que condiciona por todos os modos os governos para que lhe “levem” os povos.

E, se assim falo do Mercado (agora com maiúscula), é por ser ele, nos tempos modernos, o instrumento por excelência do autêntico, único e insofismável poder realmente digno desse nome que existe no mundo, o poder económico e financeiro transnacional e pluricontinental, esse que não é democrático porque não o elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que finalmente não é democrático porque não visa a felicidade do povo.

Não faltarão sensibilidades delicadas para considerarem escandaloso e gratuitamente provocador o que acabo de dizer, mesmo que tenham de reconhecer que não fiz mais que enunciar algumas verdades transparentes e elementares, uns quantos dados correntes da experiência de todos nós, simples observações do senso comum. Sobre essas e outras não menos claras obviedades, porém, têm imposto as estratégias políticas de todos os rostos e cores um prudente silêncio a fim de que não ouse alguém insinuar que, conhecendo a verdade, andamos a cultivar a mentira ou dela aceitamos ser cúmplices.

Enfrentemos, portanto, os factos. O sistema de organização social que até aqui temos designado como democrático tornou-se cada vez mais numa plutocracia (governo dos ricos) e cada vez menos uma democracia (governo do povo). É impossível negar que a massa oceânica dos pobres deste mundo, sendo geralmente chamada a eleger, não é nunca chamada a governar (os pobres nunca votariam num partido de pobres porque um partido de pobres não teria nada para prometer-lhes). É impossível negar que, na mais do que problemática hipótese de que os pobres formassem governo e governassem politicamente em maioria, como a Aristóteles não repugnou admitir na Política, ainda assim não disporiam dos meios para alterar a organização do universo plutocrático que os cobre, vigia e não raramente afoga. É impossível não nos apercebermos de que a chamada democracia ocidental entrou em um processo de transformação retrógrada que é totalmente incapaz de parar e inverter, e cujo resultado tudo faz prever que seja a sua própria negação. Não é preciso que alguém assuma a tremenda responsabilidade de liquidar a democracia, ela já se vai suicidando todos os dias. Que fazer, então? Reformá-la?

Demasiado sabemos que reformar algo, como escreveu o autor de “Il Gattopardo”, não é mais que mudar o suficiente para que tudo se mantenha igual.


Regenerá-la? A qual visão suficientemente democrática do passado valeria a pena regressar para, a partir dela, reconstruir com novos materiais o que hoje está em vias de se perder? À da Grécia antiga? À das cidades e repúblicas mercantis da Idade Média? À do liberalismo inglês do século XVII? À do enciclopedismo francês do século XVIII? As respostas seriam com certeza tão fúteis quanto já o foram as perguntas... Que fazer, então? Deixar de considerar a democracia como um dado adquirido, definido de uma vez e para sempre intocável. Num mundo que se habituou a discutir tudo, uma só coisa não se discute, precisamente a democracia. Melífluo e monacal, como era seu estilo retórico, Salazar, o ditador que governou o meu país durante mais de quarenta anos, pontificava: “Não discutimos Deus, não discutimos a Pátria, não discutimos a Família”. Hoje discutimos Deus, discutimos a pátria, e só não discutimos a família porque ela própria se está a discutir a si mesma. Mas não discutimos a democracia. Pois eu digo: discutamo-la, meus senhores, discutamo-la a todas as horas, discutamo-la em todos os foros, porque, se não o fizermos a tempo, se não descobrirmos a maneira de a reinventar, sim, de a re-inventar, não será só a democracia que se perderá, também se perderá a esperança de ver um dia respeitados neste infeliz planeta os direitos humanos.


José Saramago