SOBRE AUTONOMIA DAS ESCOLAS PÚBLICAS
Margarida Olazabal Cabral[1] | Ana Rita Bessa[2] | Número 2 | Junho 2014
Sumário: 1. Introdução. 2. Uma história de centralismo. 3. Um conceito de autonomia. 3.1. Distinções e uma definição. 3.2. A contratualização como instrumento de execução. 4. Algumas limitações e possíveis soluções para uma autonomia efetiva. 5. Conclusões
RESUMO: A autonomia das escolas públicas tem sido amplamente discutida, nas mais diversas perspetivas, e parece ser uma ideia consensual. No entanto, se analisarmos a realidade somos levados a concluir que as nossas escolas não são verdadeiramente autónomas. Neste trabalho procuram-se perceber as razões que levam a que assim seja, e defende-se um conceito de autonomia baseado na ideia de atribuição, através de contrato, de efetivos poderes às escolas que lhes permitam prosseguir um projeto próprio que as diferencie umas das outras. Esta visão determina que as funções do Estado, em especial do Ministério da Educação e Ciência (e a sua própria orgânica), devam ser repensadas. Apontam-se algumas das dificuldades que se colocam a uma efetiva autonomia, e sugerem-se caminhos possíveis para as superar.
PALAVRAS-CHAVE: serviço público de educação; escolas; autonomia; descentralização; desconcentração
1. INTRODUÇÃO
O tema da autonomia das escolas do ensino não superior tem sido sobejamente tratado desde há vários anos, através de diversas lentes de análise, sejam políticas, jurídicas, académicas, sociológicas, e sob diversos formatos, normativos legais, projetos-piloto, efetivos contratos, inúmeros fóruns de debate e um sem-fim de teses de mestrado e doutoramento.
Paradoxalmente, onde menos parece ter sido tratado – ou pelo menos, bem tratado – é exatamente no terreno, nas escolas, onde deveria ter expressão e concretização, sob pena de se tornar num conceito vazio, desgastado e sem propósito.
Neste trabalho, não nos arrogamos a pretensão de trazer uma visão particularmente inovadora, nem tão-pouco uma solução simplista para um tópico há tanto tempo em debate. Procurámos, sim, levantar as questões que nos parecem centrais para a clarificação do conceito. Tentámos perceber o que inibe a realização efetiva da autonomia, designadamente através da análise dos instrumentos legais, iniciativas discursivas ou impreparações de facto, que justificam poder-se dizer com propriedade que não existe, na generalidade dos casos, uma verdadeira escola pública com autonomia.
No presente trabalho, começamos por olhar para a história da escola pública, para percebermos que ela tem sido, como em tantos outros campos da nossa Administração Pública, uma história de centralismo. Um centralismo que, no caso das escolas, não terminou, mesmo quando se tornou consensual no discurso a defesa da sua autonomia. Em seguida, procuramos delimitar o conceito de autonomia, designadamente face aos de descentralização e de desconcentração, e avançamos com a noção de autonomia que entendemos ser de defender para as nossas escolas, bem como o modo de a implementar. Em seguida, arriscamos apontar razões reais de fracasso da autonomia, e os efetivos limites da mesma, para, finalmente, procurarmos apontar caminhos de futuro para uma verdadeira autonomia das escolas.
2. UMA HISTÓRIA DE CENTRALISMO
Por razões históricas, o sistema de escolas públicas em Portugal nasceu e cresceu de forma centralizada, a partir de um Ministério, muito de acordo com o modelo francófono.
A nossa política de educação tem uma tradição muitíssimo centralizadora, que se acentua na segunda metade do século XX e que não recua verdadeiramente depois disso, apesar do regime democrático parecer reclamar o contrário. Não existe, como no caso dos países anglo-saxónicos, a tradição de uma escola que é dominada por uma comunidade local e que, por essa razão, tem uma dose de autonomia inata no seu DNA. Pelo contrário, as nossas escolas não têm prática de serem autónomas, estando mais habituadas a ter de cumprir aquilo que lhes é ditado pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC).
Durante o regime liberal oitocentista, aquilo que caracteriza o sistema de ensino português é uma enorme tensão entre a tradição centralizadora e algumas experiências de descentralização. Em abril de 1890 é criado o Ministério da Instrução Pública e Belas-Artes, antecessor do atual MEC, marcando a opção centralizadora. A razão invocada era o insucesso da descentralização da política de educação.
Na I República, começa-se por se hesitar ainda em defender a descentralização, mas a experiência dura pouco (Sidónio Pais, em 1918, põe-lhe termo). “O centralismo na administração do sistema educativo consolidar-se-á no Estado Novo, aproximando-se do modelo extremado de uma regulação coerciva, autoritária e de pendor fortemente nacionalista e endoutrinadora. Com esse modelo, o conceito de Estado Educador ganha a sua máxima expressão, em que o papel das escolas, das comunidades e das autarquias se remete à estrita concretização das orientações superiores. A imagem da descentralização ficaria, entretanto, associada às efémeras experiências dos regimes liberal e republicano e ao seu insucesso real ou, pelo menos, à não consensualização de um modelo cujos resultados são, no mínimo duvidosos.”[3]
David Justino afirma, em seguida, que “uma das questões mais enigmáticas relativas à evolução do sistema de ensino em Portugal prende-se com a transição do modelo de organização do ensino herdado do Estado Novo para o modelo do regime democrático. As transformações ocorridas logo após a revolução, sendo profundas no que diz respeito ao currículo, à administração das escolas e ao controlo macro das novas instituições democráticas, revelaram-se superficiais no que respeita a qualquer reconfiguração descentralizadora. Aparentemente os mecanismos de regulação coerciva, de caráter burocrático e administrativo, mantiveram-se praticamente intactos, o mesmo é dizer, fortemente centralizados. Ousaríamos dizer que o conceito de Estado Educador se poderia aplicar a preceito a dois regimes políticos de tão contrária natureza”. [4]
Os vários estudos confirmam que a “organização centralizadora e burocrática (...) continua a dominar a administração da educação em Portugal”[5]. Nas palavras de Gomes Canotilho, terá prevalecido uma “alegada conceção jacobina de ensino, traduzida na unicidade e uniformidade da oferta escolar”[6].
Na verdade, a democracia traz um discurso a favor da descentralização e da autonomia das escolas, mas a prática (muitas vezes, suportada por normas jurídicas) foi a de continuar a desconfiar da capacidade das escolas se autodeterminarem, não abdicando o Estado de tudo regular e determinar. A par do aumento da escolaridade obrigatória, esta prática levou à criação de sistema administrativo central, com grande dimensão e peso.
É verdade que nos últimos anos se acentuou a afirmação de uma política pública de concessão de autonomia às escolas. Na atual legislatura, o Governo fez mesmo da concessão de autonomia às escolas uma “bandeira” da sua política educativa.
É também certo que a legislação reflete esse discurso, pelo menos – embora não só – na terminologia utilizada. Desde 1989 (com o Decreto-Lei n.º 43/89, de 3 de fevereiro)[7] que o Estado português legisla no sentido de conferir autonomia às escolas. Em 1998, prevê-se pela primeira vez o “contrato de autonomia”. No entanto, paralelamente a essa autonomia consagrada, o legislador continuou a regular, de modo uniforme, e não permitindo opções da própria escola, uma série de matérias que se diria deverem ser atribuídas às escolas com autonomia.
Essa “ambivalência” do Estado legislador e do Estado Administração – que quer dar poder de autodeterminação mas simultaneamente desconfia da capacidade de escolas autónomas prestarem um bom serviço público de educação – mantém-se até hoje.
O legislador tem reforçado o enquadramento legal da autonomia, estendendo-o recentemente a uma maior liberdade de configuração do currículo. Os 22 contratos de autonomia existentes em 2007 deram lugar a mais de 300 contratos de autonomia em 2014.
Paralelamente, e paradoxalmente, continua-se a não se resistir à tentação centralizadora de tudo regular e continuamos a ter portarias, decretos-regulamentares, despachos normativos e todas as formas de regulamentos administrativos (e mesmo de atos administrativos) emanados do MEC que não permitem o exercício de uma verdadeira autonomia.
Pode dizer-se, por um lado, que a realidade declarada pelo legislador é contrariada pela prática administrativa, em especial do próprio Ministério. Mas, por outro lado, podemos mesmo ir mais longe e duvidar de que aquilo que se proclama – e que as diversas leis regulam – seja verdadeiramente a atribuição dos poderes às escolas que lhes permitam auferir de uma verdadeira autonomia.
Importa então perceber de que tratamos quando falamos de autonomia.
3. UM CONCEITO DE AUTONOMIA
3.1. DISTINÇÕES E UMA DEFINIÇÃO
Pese embora tratar-se de um termo aparentemente banal no contexto da política de Educação, a verdade é que não existe uma visão clara, ou consensual, sobre o conceito de autonomia das escolas, o que este inclui e em que deve ser limitado, qual o seu objetivo último, como se realiza e efetiva e em benefício de quem.
Aliás, e ao longo do tempo, a sua definição tem sido revista pelo legislador por diversas vezes. Por exemplo, nos termos do Decreto-Lei n.º 43/89, a autonomia da escola foi definida como “(…) a capacidade de elaboração e realização de um projeto educativo em benefício dos alunos e com a participação de todos os intervenientes no processo educativo (…)” (n.º 1 do artigo 2.º).
Em 1998, o mesmo conceito passou a ser entendido como “(…) o poder reconhecido à escola pela administração educativa de tomar decisões nos domínios estratégico, pedagógico, administrativo, financeiro e organizacional, no quadro do seu projeto educativo e em função das competências e dos meios que lhe estão consignados. (…)” (n.º 1 do artigo 3.º do Decreto‐Lei n.º 115‐A/98, de 4 de maio)[8].
Já em 2008, no Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril (n.º 1 do artigo 8.º)[9], a abrangência passou a ser maior e a autonomia a ser entendida como “a faculdade reconhecida ao agrupamento de escolas ou à escola não agrupada pela lei e pela administração educativa de tomar decisões nos domínios da organização pedagógica, da organização curricular, da gestão dos recursos humanos, da ação social escolar e da gestão estratégica, patrimonial, administrativa e financeira, no quadro das funções competências e recursos que lhe estão atribuídos”.
Parece-nos importante começar por clarificar três ideias que, no debate público, tendem a confundir-se, a saber: descentralização, desconcentração e autonomia propriamente dita.
A. DESCENTRALIZAÇÃO:
A descentralização, do ponto de vista jurídico, é um processo de atribuição de competências a pessoas coletivas territoriais para além do Estado, maxime as autarquias locais, as quais prosseguem fins próprios.
No domínio da educação tem-se assistido à atribuição de mais competências aos municípios, mas nem sempre isso tem significado um efetivo reforço da autonomia local nesta matéria.
O Decreto-Lei nº144/2008, de 28 de Julho[10], constituiu um passo claro no sentido da delegação de competências em órgãos que não pertencem à esfera da Administração Central. Estabeleceu a transferência de competências para os órgãos dos municípios no que respeita à educação pré-escolar e ao ensino básico, abrindo ainda a possibilidade de as autarquias exercerem igualmente estas competências em estabelecimentos de ensino secundário em que se lecione também o ensino básico, mediante um contrato específico.
É este o documento legal que está na origem dos Contratos de Execução atualmente em vigor em mais de 100 municípios, abrangendo os seguintes domínios:
· Pessoal Não Docente;
· Ação Social Escolar;
· Construção, manutenção e apetrechamento dos estabelecimentos de ensino;
· Transportes escolares;
· Componente de Apoio à Família;
· Atividades de Enriquecimento Curricular.
Resumidamente, a situação atual é a descrita no quadro abaixo:
Quadro 1: Enquadramento jurídico atual
Fonte: “Avaliação da descentralização de competências de educação para os municípios”, CIES-IUL, Abril 2012
Este processo de delegação de competências envolveu a transferência de encargos para as autarquias, atribuindo-lhes, por vezes, o papel de “meros” executores das políticas definidas pela Administração Central, nem sempre em sintonia com a autonomia do poder local e nem sempre facilitando o aproveitamento das reais possibilidades que o princípio da subsidiariedade pressupõe.
Adicionalmente, o movimento de agregação de escolas contribuiu para um acréscimo da complexidade na gestão de responsabilidades no terreno, na medida em que, sobre uma mesma direção escolar – que, em muitos casos, recaiu sobre o diretor da escola secundária agregada –, houve que atender a realidades administrativas muito diferentes: para umas escolas, a manutenção de edifícios ou a alimentação passaram a ser competência da Câmara; noutras, do MEC ou da própria escola; ou, em alguns casos, o pessoal não docente passou a beneficiar de serviços camarários de saúde, por exemplo, através de colaboradores com condições diferenciadas, decorrentes do seu vínculo com a tutela.
Com o objetivo de avaliar os resultados da aplicação destes Contratos, o CIES-IUL (abril de 2012)[11] realizou um estudo que, grosso modo, concluiu:
· Quanto às autarquias abrangidas: uma avaliação satisfatória do processo, esclarecendo que os problemas existentes não advieram das novas incumbências mas da questão financeira, quer no que concerne à verba fixa enviada pelo MEC para a construção/manutenção dos equipamentos escolares (vista como insuficiente), quer quanto ao rácio que definiu um teto para o número de funcionários não docentes, que para a maior parte dos municípios fica aquém das necessidades;
· Quanto às escolas destes municípios: salientou-se um menor entusiasmo relativamente ao modelo, considerando que as competências transferidas para as autarquias foram muitas vezes excessivas, apresentando como pontos de insatisfação as áreas da construção/manutenção e apetrechamento das escolas e a insuficiência ao nível do pessoal não docente, devido ao limite estabelecido pelo rácio acima referido.
Nesta mesma linha, também o Conselho Nacional da Educação (CNE)[12] apontou algumas recomendações que elencamos de forma sumária:
· Redefinir, utilizando uma matriz de domínios e níveis de decisão, o enquadramento legal das competências das autarquias em matéria de educação, harmonizando e simplificando a legislação existente, em especial nas suas interfaces com a administração central e a autonomia das escolas, ficando claro o que compete a cada parte e pelo que deverá prestar contas;
· Estabelecer um processo de descentralização efetivo, abrangendo progressivamente todos os municípios, num quadro político-institucional que garanta os instrumentos legais e financeiros para uma resposta adequada às competências transferidas;
· Definir, de forma estável, o financiamento das autarquias de acordo com as reais competências descentralizadas, com critérios transparentes e assentes em indicadores que caracterizem o concelho para efeitos de educação, como sejam, entre outros, o número de alunos a escolarizar, as características geográficas e sociais do território abrangido, as condições e a tipologia da rede e do parque escolar e o diagnóstico elaborado no âmbito da Rede Social;
· Considerar os Conselhos Municipais de Educação como órgãos consultivos de facto, com participação na articulação ao nível supraconcelhio e cuja composição tem de integrar os diretores das escolas e agrupamentos;
· Equacionar a dimensão regional da administração da educação, tendo em conta a extinção das Direções Regionais de Educação (DRE).
B. DESCONCENTRAÇÃO:
A desconcentração de competências significa, do ponto de vista jurídico, um processo de descongestionamento de competências dentro da mesma pessoa coletiva, conferindo-se a funcionários ou agentes subalternos certos poderes decisórios, os quais numa administração concentrada estariam reservados exclusivamente ao nível superior.[13]
O Decreto-Lei n.º 266-G/2012 de 31 de dezembro[14] determinou a extinção das DRE, num movimento que podemos classificar como contrário ao da desconcentração de competências.
As competências das DRE foram pois agregadas na Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) – criada para o efeito e na dependência direta do MEC –, considerando-se que, desta forma, se obteria uma maior eficácia no acompanhamento das escolas ao mesmo tempo que se abriria caminho para a autonomia destas últimas.
Paradoxalmente, o mesmo legislador que adotou um caminho de descentralização a favor da administração local, e em dimensões acessórias à atividade escolar, optou pela concentração de competências no MEC no que respeita a áreas centrais da escola, designadamente a componente pedagógica e didática da educação, o apoio técnico à sua formulação e o acompanhamento e avaliação da sua concretização.
Portugal parece não ser caso único no que respeita a este tipo de fenómenos de concentração. Um estudo recente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE)[15] analisou precisamente o tema da tomada de decisões nos sistemas educativos, tendo identificado quatro principais domínios de decisão: organização do ensino; gestão do pessoal; planificação e estruturas e gestão dos recursos; e quatro níveis de decisão: o estabelecimento de ensino; o executivo local; o executivo regional; e o executivo central.
Portugal situou-se, em todos os parâmetros, na zona em que predomina a decisão a um nível central, sendo a decisão local mínima, senão mesmo, em alguns domínios, inexistente. No estudo refere-se que “desde o início dos anos 80 um dos objetivos das reformas da educação foi no sentido de dar maior poder de decisão aos níveis mais próximos dos cidadãos — executivo local e estabelecimento de ensino —, mas que, paradoxalmente, muitos países aumentaram a influência do executivo central na fixação de normas, na definição de programas e na organização de avaliações”. Entre 2003 e 2011 a tomada de decisão centralizou-se em cerca de metade dos países analisados e particularmente assim em Portugal.
C. AUTONOMIA
Finalmente, autonomia pode ser definida como a concessão de poder às escolas – concretamente, aos seus conselhos gerais e diretores –, por um período a definir, a fim de que estas possam desenvolver a sua atividade de prestação do serviço público de educação.
As escolas autonomizar-se-ão se lhes forem atribuídas competências, até aqui concentradas ou descentralizadas, em áreas que lhes permitam desenvolver um projeto próprio, de forma a alcançar um diferencial de desempenho significativo e em benefício, em primeira instância, daqueles a quem servem, i.e., alunos e suas famílias.
Neste sentido, e em nosso entender, conceder autonomia a uma escola deve configurar um ato de atribuição de um poder de atuação lato, e não apenas um conjunto de “pequenas liberdades” ou “benefícios”, seguramente relevantes – como seja a possibilidade de ter mais créditos horários, ou a colocação de um psicólogo, como contrapartida de melhorias em determinados critérios predefinidos – mas manifestamente restritos, ou demasiado “experimentais”, para que a escola possa ir ao encontro pleno do que a sua comunidade próxima requer.
A autonomia tem necessariamente de começar pela liberdade de definição do projeto educativo, que muito ganhará em ser desenvolvido em proximidade, envolvendo a comunidade local, tendo em vista as suas necessidades, em particular as que ainda não são servidas ou o são de forma insuficiente.
Deve fazer parte da autonomia das escolas o recrutamento dos docentes e não docentes, no sentido de garantir que se contratam as pessoas adequadas, motivadas e preparadas para desenvolver o projeto educativo.
A atuação pedagógica, e respetivas estratégias preventivas e corretivas, deve também ser prerrogativa da escola, balizada naturalmente pela existência de um núcleo curricular nacional obrigatório.
A escola deve ser dotada de um orçamento previamente conhecido, sem prejuízo de que se financie através de fundos próprios via orçamento privativo, como, de resto já acontece. Deve poder tomar as decisões administrativas que fizerem mais sentido, quer quanto à sua estratégia de gestão – por exemplo, no que respeita às compras de material escolar ou de outra natureza – quer quanto à sua estratégia educativa – por exemplo, no que respeita à escolhdas das atividades de natureza curricular ou extra curricular que se pretende oferecer.
Num momento inicial, e como requisito prévio, deve ser validado o desejo da direção da escola – sancionado pelo seu conselho geral – de se tornar autónoma, porque esta não se decreta mas constrói-se como uma prática, depois de aberto um caminho. A jusante, deverá ser exercida pelo MEC uma função inspetiva, mas também colaborativa, garante de que a escola desenvolve de forma conforme e eficaz a sua atividade, nos termos em que a definiu no projeto educativo contratualizado – figura que, mais adiante, discutiremos.
Assumir a autonomia das escolas de facto, ao invés de celebrar contratos de autonomia parciais como até agora, significa um movimento efetivo de confiança nas escolas e nos seus líderes; e significa de igual modo uma capacidade de colocar no terreno tanto meios de acompanhamento como de accountability que assegurem que esta maior liberdade se traduz em maior responsabilidade e melhores resultados educativos.
Ao mesmo tempo, conceder autonomia às escolas levará a um processo de “singularização”[16], em oposição à uniformização ainda prevalecente do nosso sistema educativo, que tornará as escolas em lugares de maior eficiência e de encontro com as necessidades e desejos das famílias nas quais encontra a sua razão de ser.
3.2. A CONTRATUALIZAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EXECUÇÃO
Podemos teoricamente admitir várias formas de atribuir autonomia às escolas. A primeira, correspondendo ao método “normal” de atribuição de poderes dentro da Administração Pública, passaria apenas por se aprovar uma lei, geral e abstrata, que concedesse de igual forma a todas as escolas poderes para se “autodeterminarem”. Não nos parece, no entanto, que pudesse funcionar. Em primeiro lugar, porque se trataria de um simples fenómeno de “cima para baixo”, propenso a criar entropia e insatisfação, em vez de adesão dos destinatários. Em segundo lugar, porque, necessariamente, se trataria de forma igual aquilo que é diferente. A realidade de cada escola é diversa e nem todas estão preparadas para receber o mesmo grau, ou o mesmo tipo, de autonomia.
O nosso legislador já percebeu isso quando veio prever a figura do “contrato de autonomia”: já hoje as escolas acordam com o MEC alguns espaços daquilo que é apelidado de “autonomia”.
A contratualização da autonomia é, na sua conceção teórica, o modelo que nos parece mais adequado, naturalmente com o necessário enquadramento legislativo. No entanto, isso não significa a nossa adesão aos contratos de autonomia, tal como eles existem atualmente. Se formos analisar os mais de 300 contratos de autonomia já celebrados[17], veremos que se trata basicamente de uma série de instrumentos com um modelo único, em que se contratualizam benefícios e pequenas liberdades, em troca do cumprimento de determinados objetivos. Não encontramos nesses contratos ditos de autonomia a revelação de especificidades, de características próprias, que nos permitam diferenciar e caracterizar a escola que os assina. Dir-se-ia que o mesmo modelo de contrato de autonomia parece servir a todas as escolas, diferenciando-se apenas nos números concretos.
Aquilo que propomos é mais do que isso. É a atribuição de autonomia através de um contrato verdadeiramente enquadrador da atividade da escola signatária, que a caracterize, com atribuição de deveres e direitos a ambas as partes, e podendo (ou melhor, devendo) sempre que tal se revele adequado, envolver outros atores da comunidade educativa.
Embora estejamos a tratar de um fenómeno que se passa dentro da Administração Pública em sentido orgânico, podemos conceber estes contratos, com as devidas adaptações[18], à imagem dos contratos de concessão de serviço público, em que o Estado delega em entidade terceira a gestão (ou mesmo a conceção, construção e gestão) de um serviço público. Nestes contratos regulam-se os termos específicos de gestão do serviço, e anexam-se propostas apresentadas em concurso público (ou noutro procedimento de adjudicação), que ficam a fazer parte dos contratos e que permitem caracterizar o modo como o serviço público vai ser gerido. Ao concessionário compete saber como quer explorar o seu serviço, dentro das exigências de serviço público que lhe são impostas pelo Estado. A sua proposta, esse seu “modo próprio de fazer”, adquire a natureza de uma obrigação jurídica quando o contrato é celebrado.
Nesse sentido, o contrato de autonomia – que, repete-se, encontraria a sua legitimidade em normais legais, evidentemente – não seria um contrato igual para todas as escolas, mas seria antes um contrato que distinguiria cada escola.
Em bom rigor, a partir de tais contratos, e da avaliação da sua concretização que seria pública, poderíamos passar a olhar para as escolas públicas como olhamos hoje para as escolas privadas, em função dos seus projetos educativos, e não apenas como sendo “boas” ou “más”, com base em rankings de classificações finais de exames nacionais.
Aos organismos estatais a quem incumbe o acompanhamento e fiscalização do contrato seria pedida mais do que uma tarefa burocrática, ou mesmo de mero controlo, devendo competir-lhes um verdadeiro acompanhamento/apoio na concretização do projeto escolar. Isso também ficaria contratualizado. Nesta conceção, o Estado centralizador – que tudo quer decidir e dirigir – daria lugar a um Estado que, em nome do interesse dos cidadãos (e estamos aqui a tratar de cidadãos em situação particularmente vulnerável) colabora com as escolas na concretização dos seus projetos. As obrigações do Estado[19] em matéria de acompanhamento, colaboração, fiscalização ficariam definidas de forma concreta no contrato, como verdadeiros deveres (e não apenas como direitos).
E, pergunta-se, todas as escolas teriam contratos de autonomia? E as escolas que não quisessem ser autónomas?
Convém distinguir aqui dois planos.
Numa perspetiva de longo prazo, não fará sentido conceber escolas que não querem ser autónomas. É o mesmo que dizer que o Estado admite escolas que não querem ser verdadeiramente escolas mas apenas um local onde os alunos vão ter aulas e os professores lecionam.
Numa proposta de curto, e mesmo médio, prazo, temos de ser realistas e perceber que esta contratualização da verdadeira autonomia se vai ter de fazer por pequenos passos, em que algumas escolas terão de se preparar e reestruturar para poderem celebrar um contrato de autonomia.
Há que insistir na administração por contrato porque é a única forma de fazer o encontro entre aquilo que é a tarefa constitucional atribuída ao Estado em matéria de educação e as necessidades, realidades e desejos de cada comunidade educativa. É, por outro lado, o único modo de comprometer – e responsabilizar – todas as partes envolvidas, deixando as escolas de cumprir o que lhes é heterodeterminado e o Estado de fiscalizar aquilo que impõe de forma igual para todos, para ambos os atores terem de prosseguir aquilo que assumiram serem as suas obrigações e responsabilidades.
4. ALGUMAS LIMITAÇÕES E POSSÍVEIS SOLUÇÕES PARA UMA AUTONOMIA EFETIVA
Pensamos serem de duas grandes ordens as razões pelas quais muito, e há muito tempo, se discute a autonomia das escolas, mas tão-pouco se arrisca de forma sistémica.
Um primeiro conjunto de razões tem que ver com princípios organizativos e valorativos que regem o sistema educativo em Portugal e que aliás têm, como atrás referido, uma justificação histórica.
O sistema é essencialmente centralizado, cabendo à sua “inteligência” – o MEC e respetivas direções gerais – a definição concreta de muitas das dimensões centrais da atividade das escolas, embora tenha havido nos tempos mais recentes a concessão de alguns graus de liberdade à direções das mesmas. Mas são precisamente isso, i.e., “graus de liberdade” e não verdadeiras “cartas de foral”.
Acresce que à Inspeção Geral da Educação e Ciência (IGEC), outro organismo central, cabe estritamente um papel de avaliação das escolas, num exercício desenvolvido a posteriori, e no sentido da conformidade com o standard proposto pelo MEC. Não tem esta inspeção a competência para ajudar as escolas a construir melhores práticas, apesar do conhecimento que vai acumulando no seu contacto informado com aquelas.
Por outro lado, a ausência de um princípio de confiança efetiva nas escolas e o receio implícito de que estas, se mal geridas, possam causar danos geracionais – ainda que, muitas vezes, os resultados obtidos pelo modelo centralizado atual sejam objetivamente fracos –, impede que seja concedida às escolas e respetivas comunidades, a definição do projeto e dos meios que melhor as serviria.
Um segundo conjunto de limitações com uma natureza eminentemente prática que poderiam ser progressivamente contornadas através de decisões políticas, algumas muito difíceis, designadamente:
· A preparação das lideranças das escolas para o exercício de autonomia. Muitas estarão já capacitadas, outras precisarão de ser acompanhadas nesse caminho, sendo que ou a desconcentração de serviços é feita de forma eficiente, ou o recurso a entidades externas, como as Universidades, poderia ter um papel acelerador nesta dimensão.
· As fortes restrições orçamentais atuais poderão impor dotações limitadas às escolas potencialmente restritivas dos seus projetos. Gerir em autonomia é também fazer a gestão criativa da escassez e as direções das escolas teriam de fazer as suas opções dentro das possibilidades reais existentes. Em nosso entender, haveria seguramente lugar a uma maior segurança resultante da previsibilidade orçamental, assim como ganhos de eficiência e transparência na afetação de recursos.
· A definição de um currículo nacional focado nas matérias entendidas como essenciais. Seguramente, não seria um exercício simples, quer pela tradição educativa, quer pelos interesses legítimos dos vários grupos científicos. Um grupo de trabalho isento, eventualmente constituído por professores, universitários e empregadores, suportado num benchmark internacional, poderia estabelecer um ponto de partida a ser reavaliado em ciclos periódicos.
· O concurso nacional de professores. É pedra angular do sistema e é, simultaneamente, uma das maiores limitações à existência de uma escola verdadeiramente autónoma. Um modelo alternativo seria o de manter um concurso nacional para a criação de uma bolsa de professores certificados, que seriam depois recrutados pelas escolas como resultado do encontro entre o projeto educativo e o seu curriculum e características pessoais – e não colocados de forma automática por via de listas de graduação, sem qualquer afinidade com a proposta da escola.
5. CONCLUSÕES
A autonomia que propugnamos baseia-se num princípio de confiança nas escolas públicas – que hoje não vigora – que lhes permita usar de um poder efetivo na prestação do serviço público de educação, junto da comunidade concreta em que se inserem.
Desta forma, e num horizonte de médio prazo, cada escola poder-se-á apresentar com um projeto educativo próprio, fundado num contrato com o Estado, que, de forma efetiva, a diferencia das restantes, em benefício do sistema educativo público, e em especial dos alunos e suas famílias.
A sua concretização parece-nos compatível com mecanismos tanto de desconcentração como de descentralização, em consonância com a realidade concreta de cada comunidade local, que deve ser perspetivada nas suas múltiplas dimensões, demográficas, sociais, económicas, geográficas, entre outras.
Em função desta visão de médio prazo, as funções do Estado, em especial do MEC (e a sua própria orgânica), devem ser repensadas. O MEC terá de deixar de atuar como uma superestrutura de gestão de cada escola, para assumir um papel essencialmente regulador, fiscalizador e de acompanhamento, como de resto constitui responsabilidade inalienável do Estado em matéria de serviço público de educação.[20]
Esta visão traz responsabilidades acrescidas em matéria de transparência, pelo que será essencial tornar públicos os contratos celebrados, bem como a sua execução e resultados. Está aqui em causa uma opção política cujo sucesso (ou fracasso) tem especial sensibilidade já que se reflete em pessoas concretas, designadamente menores em processo de formação como adultos, e que condicionará as gerações futuras.
[1] Advogada, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas, sócia da Sociedade “Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados”.
[2] Mestre em Ciências da Educação, diretora da LeYa Educação.
[3] David Justino, Políticas e dinâmicas escolares em contextos municipais, in História dos Municípios na Educação e na Cultura: incertezas de ontem, desafios de hoje, organização de Áurea Adão e Justino Magalhães, Dezembro de 2012, IIE-UL, p. 104, disponível em http://www.ie.ul.pt/pls/portal/docs/1/446800.PDF.
[4] Idem, p. 105.
[5] João Barroso, Utilização do conhecimento em política: o caso da gestão escolar em Portugal, Educação e Sociedade, 30(109), pp.995.
[6] O Direito Constitucional como Ciência de Direcção: O núcleo essencial de prestações sociais ou a localização incerta da socialidade (Contributo para a reabilitação da força normativa da “constituição social”), R. Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 19, n. 67, p.15-68, 2008.
[11] CIES- IUL- Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, Instituto Universitário de Lisboa.http://www.dgeec.mec.pt/np4/202/%7B$clientServletPath%7D/?newsId=268&fileName=Relat_rio_final_Avalia__o_da_descentrali.pdf.
[12] http://www.cnedu.pt/images/stories/2012/Rec._Autarquias.pdf, novembro de 2012.
[13] Ver Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol.I, Almedina, 2001, pp.657 a659.
[16] Martins, Guilherme Oliveira, “Autonomia das escolas. Enquadramento e conceito”, pp 50, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, 2ª Edição.
[17] Análise que não constitui tarefa fácil, uma vez que não existe qualquer sítio da Internet que disponibilize estes contratos. Mas sugerimos que se consultem os seguintes exemplos: http://www.zarco.pt/site/docs/ca.pdfhttp://www.esfga.pt/contrato%20de%20autonomia.pdf
[18] As “devidas adaptações” resultam também da natureza do serviço público de que aqui se trata.
[19] Note-se que nos parece perfeitamente possível compatibilizar autonomia com descentralização, sendo nesse caso, o município um dos co-contratantes no contrato de autonomia, podendo ser-lhe atribuídas as funções de fiscalização, acompanhamento e colaboração, atribuídas ao Estado no caso de não haver descentralização.
[20] Em concordância com as ideias defendidas pelos Professores Joaquim de Azevedo e Rodrigo Queiroz e Melo, no artigo “Propostas para um novo modelo de regulação de educação”, in Revista “Brotéria”, setembro de 2011.
in http://e-publica.pt/autonomiaescolaspublicas.html