José Saramago Foto de Ana Baião, EXPRESSO |
Aqui, na íntegra, o texto inédito de José Saramago sobre a democracia e o poder político, lido numa conferência em Sevilha em 1991, aquando da comemoração do quinto centenário dos Descobrimentos. Um texto que se mantém completamente atual.
Publicado no EXPRESSO de 18.06.2015.
Abro com duas citações de
Aristóteles, ambas extraídas de Política. A primeira delas, curta, sintética,
diz-nos que “em democracia, os pobres são soberanos, com exclusão dos ricos,
porque são eles o maior número, e porque a vontade da maioria é lei”. A segunda,
que, começando por anunciar uma restrição ao alcance da primeira, não só,
afinal de contas, a alarga e completa, como a si própria praticamente se
alcandora à altura de um axioma, esse princípio que, por evidente, não requer,
para convencer, o esforço de uma demonstração. Eis o que nos diz a citação
segunda: “A igualdade (no Estado) pede que os pobres não tenham mais poder que
os ricos, que não sejam eles os únicos soberanos, mas que o sejam todos na
proporção do número existente de uns e outros. Este parece ser o meio de
garantir ao Estado, eficazmente, a igualdade e a liberdade”. Se não estou
demasiado equivocado na interpretação desta passagem, o que Aristóteles nos
está a dizer aqui é que os cidadãos ricos, embora participando, com toda a
legitimidade democrática, no governo da polis, sempre estariam em minoria nele,
pelo simples efeito de uma proporcionalidade imperativa e incontestável. Em
algo Aristóteles acertava: que se saiba, ao longo de toda a História, jamais os
ricos foram em maior número que os pobres. Mas esse acerto do filósofo de
Estagira, pura obviedade aritmética, estilhaça-se contra a dura muralha dos
factos: os ricos foram sempre aqueles que governaram o mundo ou que sempre
tiveram quem por eles governasse. E hoje, provavelmente, mais do que nunca. Não
resisto a recordar-vos, sofrendo com a minha própria ironia, que, para o
discípulo de Platão, o Estado era a forma superior da moralidade...
Qualquer manual elementar
de Direito Político nos informará que a democracia é “uma organização interna
do Estado em que cabe ao povo a origem e o exercício do poder político, uma
organização em que o povo governado governa por intermédio dos seus
representantes”, ficando assim asseguradas, acrescentará o dito manual, “a
intercomunicação e a simbiose entre governantes e governados, no quadro de um
Estado de direito”. Em minha modesta opinião, aceitar acriticamente definições
como esta, sem dúvida de uma pertinência e de um rigor formal que quase tocam a
fronteira das ciências exactas, corresponderia, se nos transportássemos ao
quadro pessoal da nossa quotidianidade biológica, a não dar atenção à gradação
infinita de estados mórbidos, patológicos ou degenerativos de diversa gravidade
que é possível, em cada momento, perceber no nosso próprio corpo. Expressando-me
de outra maneira: o facto de a democracia poder ser definida de acordo com as
fórmulas antes citadas, ou outras igualmente equivalentes em precisão e rigor,
não significa que como real e efectiva democracia tenhamos de caracterizá-la em
todos os casos e circunstâncias, só porque ainda é possível, quando o seja,
reencontrar e identificar, no conjunto dos seus órgãos institucionais e das
suas estruturas, algum ou alguns dos traços que nas referidas definições se
explicitem ou que nela estejam implícitos.
Uma breve e primária
incursão pela história das ideias políticas vai servir-me para trazer à colação
duas questões simples que, sendo do conhecimento de toda a gente, são também,
não obstante, e com o costumado argumento de que os tempos mudaram, postos de
lado e desconsiderados sempre que se apresente a ocasião de reflectir, não já
sobre meras definições de democracia, mas sobre a sua substância concreta. A
primeira questão recordar-me-á que a democracia apareceu na Grécia clássica,
mais exactamente em Atenas, por alturas do século V antes de Cristo; que essa
democracia pressupunha a participação de todos os homens livres no governo da
cidade; que se baseava na forma directa, sendo efectivos todos os cargos, ou
atribuídos segundo um sistema misto de sorteio e eleição; que os cidadãos
tinham direito a votar e a apresentar propostas nas assembleias populares.
Porém (e esta é a minha
segunda questão), em Roma, continuadora e herdeira imediata das inovações
civilizadoras dos Gregos, o sistema democrático, apesar das provas dadas no
país de origem, não conseguiu ser estabelecido. Conhecemos as razões. A par de
alguns outros factores adjuvantes, no entanto de menor importância social e
política, o principal e definitivo obstáculo à implantação da democracia em
Roma proveio do enorme poder económico de uma aristocracia fundiária que, muito
justificadamente, via no sistema democrático um inimigo directo dos seus
interesses. Embora tendo presente o risco de generalizações abusivas a que as
extrapolações de tempo e de lugar sempre nos podem levar, é irresistível que me
interrogue sobre se os impérios económicos e financeiros dos nossos dias,
multinacionais e pluricontinentais, não estarão, eles também, fiéis à exclusiva
e implacável lógica dos interesses, a trabalhar, fria e deliberadamente, para a
eliminação progressiva de uma possibilidade democrática que, cada vez mais
afastada temporalmente das suas indecisas expressões de origem, vai a caminho
de um rápido estiolamento, por enquanto ainda mantida nas suas formas
exteriores, mas profundamente desvirtuada na sua essência. Pergunto-me até que
ponto poderão dar-nos garantias de uma acção realmente democrática as diversas
instâncias do poder político quando, aproveitando-se da legitimidade institucional
que lhes adveio da eleição popular, tentam desviar a nossa atenção da evidência
palmar de que no mesmíssimo processo da votação já se encontravam presentes, e
em conflito, por um lado, a expressão de uma opção política representada
materialmente pelo voto e, por outro lado, a demonstração involuntária de uma
abdicação cívica na maior parte dos casos sem consciência de si mesma? Por
outras palavras: não será verdade que, no mesmo exacto instante em que o seu
voto foi introduzido na urna, o eleitor transferiu para outras mãos, na prática
e sem mais contrapartidas que as promessas que lhe haviam sido feitas durante a
campanha eleitoral, a parcela de poder político que até esse momento lhe
pertencera de legítimo direito como membro da comunidade de cidadãos?
Parecer-vos-á talvez
imprudente da minha parte este papel de advogado do Diabo que aqui estou
parecendo assumir, ao começar por denunciar o vazio instrumental que, nos
nossos sistemas democráticos, separa aqueles que elegeram daqueles que foram
eleitos, para logo a seguir, e sem ao menos recorrer à habilidade retórica de
uma transição preparatória, passar a interrogar-me sobre a pertinência e a
propriedade efectivas dos distintos processos políticos de delegação,
representação e autoridade democrática.
Uma razão mais para que
nos detenhamos um pouco a ponderar sobre o que a nossa democracia é e para que
serve, antes de pretendermos, como se tornou moda do tempo, que ela se torne
obrigatória e universal. Porque esta caricatura de democracia que, como
missionários de uma nova religião, andamos a querer, pela persuasão ou pela
força, difundir e instalar no resto do mundo, não é a democracia dos sábios e
ingénuos Gregos, mas aquela outra que os pragmáticos Romanos teriam implantado
nas suas terras se nela tivessem visto alguma utilidade prática, como ouso
dizer que está a suceder à nossa volta neste começo de milénio, agora que a
temos aí diminuída e rebaixada por mil e um condicionantes de toda a espécie
(económicos, financeiros, tecnológicos, estruturais), os quais, não nos reste
nenhuma dúvida, teriam levado os latifundistas do Lácio a mudar rapidamente de
ideias, tornando-se nos mais activos e entusiásticos “democratas”... Chegados a
esta altura do discurso, é mais do que provável que no espírito de muitos dos
que até agora me têm escutado com benevolência principie a despontar a incómoda
suspeita de que o orador, afinal de contas, não tem nada de democrata, o que,
como não deixariam os mais informados e argutos de acrescentar, pertenceria ao
domínio das verdades óbvias, conhecidas como geralmente são as minhas
inclinações ideológicas e políticas... Que não é este o lugar nem este o
momento de justificar ou defender, já que apenas me propus trazer aqui algo do
que tenho pensado sobre a ideia, a suposição, a convicção, a esperança de que
estejamos caminhando, todos juntos, em direcção a um mundo realmente
democratizado, caso em que estaríamos convertendo em realidade, dois milénios e
meio depois de Sócrates, Platão e Aristóteles, e num nível superior de
consecução, a quimera grega de uma sociedade harmoniosa, agora já sem diferença
entre senhores e escravos, segundo dizem as almas cândidas que ainda acreditam
na perfeição... Uma vez que as democracias a que redutoramente temos chamado
ocidentais não são censatárias nem racistas, uma vez que o voto do cidadão mais
rico ou de pele mais clara pesa e conta tanto nas urnas como o do cidadão mais
pobre ou de pele mais escura, que o mesmo é dizer, colocando as aparências no
lugar das realidades, nós teríamos alcançado o grau óptimo de uma democracia de
teor resolutamente igualitário, à qual só estaria a faltar uma mais ampla
cobertura geográfica para se tornar no suspirado sucedâneo político das
panaceias universais da antiguidade médica. Ora, se me é permitido lançar
alguma água fria nestes superficiais e unânimes fervores, direi que a realidade
brutal do mundo em que vivemos torna definitivamente irrisórios os traços
idílicos do quadro que acabo de descrever, e que sempre, de uma maneira ou de
outra, acabaremos por encontrar, por fim já sem surpresa, um corpo autoritário
particular sob as roupagens democráticas gerais. Tentarei explicar-me melhor.
Ao afirmar que o acto de votar, sendo obviamente expressão de uma vontade
política determinada, é também, em simultâneo, um acto de renúncia ao exercício
dessa mesma vontade, implicitamente manifestado na delegação operada pelo poder
próprio do votante, ao afirmá-lo, repito, coloquei-me tão somente no primeiro
limiar da questão, sem considerar então outros prolongamentos e outras
consequências do acto eleitoral, quer do ponto vista institucional, quer do
ponto de vista dos diversos estratos políticos e sociais em que decorre a vida
da comunidade de cidadãos. Observando agora as coisas mais de perto, creio poder
concluir que sendo o acto de votar, objectivamente, pelo menos em grande parte
da população de um país, uma forma de renúncia temporal à acção política que
deveria ser-lhe natural e permanente, mas que se vê adiada e posta em surdina
até às eleições seguintes, altura em que os mecanismos delegatórios recomeçarão
do princípio para da mesma maneira virem a terminar, ela, essa renúncia, poderá
ser, não menos objectivamente, para a minoria dos eleitos, o primeiro passo de
um processo que, estando democraticamente justificado pelos votos, não raras
vezes prossegue, contra as baldadas esperanças dos iludidos votantes,
objectivos que de democráticos nada têm e que poderão até, na sua
concretização, chegar a ofender frontalmente a lei. Em princípio, a nenhuma comunidade
mentalmente sã lhe passaria pela cabeça a ideia de eleger traficantes de armas
e de drogas ou, em geral, indivíduos corruptos e corruptores para seus
representantes nos parlamentos ou nos governos, porém, a amarga experiência de
todos os dias mostra-nos que o exercício de amplas áreas do poder, tanto em
âmbitos nacionais como internacionais, se encontra nas mãos desses e de outros
criminosos, ou dos seus mandatários políticos directos e indirectos. Nenhum
escrutínio, nenhum exame microscópico dos votos lançados numa urna seria capaz
de tornar visíveis, por exemplo, os sinais denunciadores das relações de
concubinato entre a maioria dos Estados e grupos económicos e financeiros
internacionais cujas acções delituosas, incluindo aqui as bélicas, estão a levar
à catástrofe o planeta em que vivemos.
Aprendemos dos livros, e
as lições da vida o confirmam, que, por mais equilibradas que se apresentem as
suas estruturas institucionais e respectivo funcionamento, de pouco nos servirá
uma democracia política que não tenha sido constituída como raiz e razão de uma
efectiva e concreta democracia económica e de uma não menos concreta e efectiva
democracia cultural. Dizê-lo nos dias de hoje há-de parecer, mais que uma
banalidade, um exausto lugar-comum herdado de certas inquietações ideológicas
do passado, mas seria o mesmo que fechar os olhos à realidade das ideias não
reconhecer que aquela trindade democrática — a política, a económica, a
cultural —, cada uma delas complementar das outras, representou, no tempo da
sua prosperidade como projecto de futuro, uma das mais congregadoras bandeiras
cívicas que alguma vez, na história recente, foram capazes de comover corações,
abalar consciências e mobilizar vontades. Hoje, pelo contrário, desprezadas e atiradas
para a lixeira das fórmulas que o uso, como a um sapato velho, cansou e
deformou, a ideia de uma democracia económica, por muito relativizada que
tivesse de ser, deu lugar a um mercado obscenamente triunfante, e a ideia de
uma democracia cultural foi substituída por uma não menos obscena massificação
industrial das culturas, esse falso melting-pot com que se pretende disfarçar o
predomínio absoluto de uma delas. Cremos haver avançado, mas, de facto,
retrocedemos. E cada vez se irá tornando mais absurdo falar de democracia se
persistirmos no equívoco de identificá-la com as suas expressões quantitativas
e mecânicas, essas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem proceder
antes a um exame sério e conclusivo do modo como eles utilizam o voto que os
colocou no lugar que ocupam.
Uma democracia que não se
auto-observe, que não se auto-examine, que não se autocritique, estará
fatalmente condenada a anquilosar-se. Não se conclua do que acabo de dizer que
estou contra a existência dos partidos: sou militante de um deles. Não se pense
que aborreço os parlamentos: querê-los-ia, isso sim, mais laboriosos e menos
faladores. E tão-pouco se imagine que sou o inventor de uma receita mágica que,
doravante, permitirá aos povos viverem felizes sem governos: apenas me recuso a
admitir que só seja possível governar e desejar ser governado de acordo com os
modelos democráticos em uso, a meu ver incompletos e incoerentes, esses modelos
que, numa espécie de assustada fuga para a frente, pretendemos tornar universais,
como se, no fundo, só quiséssemos fugir dos nossos próprios fantasmas, em vez
de os reconhecer como o que são e trabalhar para vencê-los. Chamei
“incompletos” e “incoerentes” aos modelos democráticos em uso porque realmente
não vejo como se possa designá-los de outra maneira.
Uma democracia bem
entendida, inteira, redonda, irradiante, como um sol que por igual a todos
ilumine deverá, em nome da pura lógica, começar por aquilo que temos mais à
mão, isto é, o país onde nascemos, a sociedade em que vivemos, a rua onde
moramos. Se esta condição primária não for observada, e a experiência de todos
os os dias diz-nos que não o é, todos os raciocínios e práticas anteriores,
quer dizer, a fundamentação teórica e o funcionamento experimental do sistema,
estarão, desde o início, viciados e corrompidos. De nada adiantará limpar as
águas do rio à sua passagem pela cidade se o foco contaminador estiver na
nascente. Vimos já como se tornou obsoleto, fora de moda, e até mesmo ridículo,
invocar os objectivos humanistas de uma democracia económica e de uma
democracia cultural, sem os quais o que designamos por democracia política
ficou limitado à fragilidade de uma casca, acaso brilhante e colorida de
bandeiras, cartazes e palavras de ordem, mas vazia de conteúdo civicamente
nutritivo. Querem, porém, as circunstâncias da vida actual que até mesmo essa
delgada e quebradiça casca das aparências democráticas, ainda preservadas pelo
impenitente conservadorismo do espírito humano, ao qual costumam bastar as
formas exteriores, os símbolos e os rituais para continuar a acreditar na
existência de uma materialidade já carecida de coesão ou de uma transcendência
que deixou perdidos pelo caminho o sentido e o nome — querem as circunstâncias
da vida actual, repito, que as cintilações e as cores que até agora têm
adornado, diante dos nossos resignados olhos, as desgastadas formas da
democracia política, se estejam a tornar rapidamente baças, sombrias,
inquietantes, quando não impiedosamente grotescas como a caricatura de uma
decadência que se vai arrastando entre chufas de desprezo e uns últimos
aplausos irónicos ou de interessada conveniência.
Como sempre aconteceu
desde o começo do mundo e sempre continuará a acontecer até ao dia em que a
espécie humana se extinga, a questão central de qualquer tipo de organização
social humana, da qual todas as outras decorrem e para a qual, mais cedo ou
mais tarde, todas acabam por concorrer, é a questão do poder, e o principal
problema teórico e prático com que nos enfrentamos consistirá na necessidade de
identificar quem o detém, de averiguar como chegou a ele, de verificar o uso
que dele faz, os meios de que se serve e os fins a que aponta. Se a democracia
fosse, de facto, o que com autêntica ou simulada ingenuidade continuamos a dizer
que é, o governo do povo, pelo povo e para o povo, qualquer debate sobre a
questão do poder deixaria de ter sentido, uma vez que, residindo o poder no
povo, seria ao povo que competiria a sua administração, e, sendo o povo a
administrar o poder, está claro que só o poderia fazer para o seu próprio bem e
para a sua própria felicidade, pois a isso o estaria obrigando aquilo a que
chamo, sem qualquer aspiração a um mínimo de rigor conceptual, a lei da
conservação da vida. Ora, só um espírito perverso, panglossiano até ao cinismo,
teria a ousadia de afirmar que o mundo em que vivemos é satisfatoriamente
feliz, este mundo que, pelo contrário, ninguém deveria pretender que o
aceitemos tal qual é, só pelo facto de ser, repetindo o conhecido
nariz-de-cera, o melhor dos mundos possíveis. Também insistentemente se afirma
que a democracia é o menos mau sistema político de todos quantos até hoje se
inventaram, e não se repara que talvez esta conformidade resignada com uma
coisa que se contenta com ser “a menos má” seja o que nos anda a travar o passo
que porventura seria capaz de conduzir-nos a algo “melhor”.
Por sua própria natureza
e definição, o poder democrático será sempre provisório e conjuntural,
dependerá da instabilidade do voto, da flutuação das ideologias e dos
interesses das classes, e, como tal, pode até ser visto como uma espécie de
barómetro orgânico que vai registando as variações da vontade política da
sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com uma amplitude cada vez maior,
abundam os casos de alterações políticas aparentemente radicais que tiveram
como efeito radicais alterações de governo, mas a que não se seguiram as
alterações sociais, económicas e culturais igualmente radicais que o resultado
do sufrágio havia prometido.
Efectivamente, dizer hoje
“governo socialista”, ou “social-democrata”, ou “democrata-cristão”, ou
“conservador”, ou “liberal”, e chamar-lhe “poder”, é como uma operação de
cosmética, é pretender nomear algo que não se encontra onde se nos quer fazer
crer, mas sim em outro e inalcançável lugar — o do poder económico —, esse
cujos contornos podemos perceber em filigrana
por trás das tramas e das
malhas institucionais, mas que invariavelmente se nos escapa quando tentamos
chegar-lhe mais perto e que inevitavelmente contra-atacará se alguma vez
tivermos a louca veleidade de reduzir ou disciplinar o seu domínio,
subordinando-o às pautas reguladoras do interesse geral. Por outras e mais
claras palavras, afirmo que os povos não elegeram os seus governos para que
eles os “levassem” ao mercado, e que é o mercado que condiciona por todos os
modos os governos para que lhe “levem” os povos.
E, se assim falo do
Mercado (agora com maiúscula), é por ser ele, nos tempos modernos, o
instrumento por excelência do autêntico, único e insofismável poder realmente
digno desse nome que existe no mundo, o poder económico e financeiro
transnacional e pluricontinental, esse que não é democrático porque não o
elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que
finalmente não é democrático porque não visa a felicidade do povo.
Não faltarão
sensibilidades delicadas para considerarem escandaloso e gratuitamente
provocador o que acabo de dizer, mesmo que tenham de reconhecer que não fiz
mais que enunciar algumas verdades transparentes e elementares, uns quantos
dados correntes da experiência de todos nós, simples observações do senso
comum. Sobre essas e outras não menos claras obviedades, porém, têm imposto as
estratégias políticas de todos os rostos e cores um prudente silêncio a fim de
que não ouse alguém insinuar que, conhecendo a verdade, andamos a cultivar a
mentira ou dela aceitamos ser cúmplices.
Enfrentemos, portanto, os
factos. O sistema de organização social que até aqui temos designado como
democrático tornou-se cada vez mais numa plutocracia (governo dos ricos) e cada
vez menos uma democracia (governo do povo). É impossível negar que a massa
oceânica dos pobres deste mundo, sendo geralmente chamada a eleger, não é nunca
chamada a governar (os pobres nunca votariam num partido de pobres porque um
partido de pobres não teria nada para prometer-lhes). É impossível negar que,
na mais do que problemática hipótese de que os pobres formassem governo e
governassem politicamente em maioria, como a Aristóteles não repugnou admitir
na Política, ainda assim não disporiam dos meios para alterar a organização do
universo plutocrático que os cobre, vigia e não raramente afoga. É impossível
não nos apercebermos de que a chamada democracia ocidental entrou em um
processo de transformação retrógrada que é totalmente incapaz de parar e
inverter, e cujo resultado tudo faz prever que seja a sua própria negação. Não
é preciso que alguém assuma a tremenda responsabilidade de liquidar a
democracia, ela já se vai suicidando todos os dias. Que fazer, então?
Reformá-la?
Demasiado sabemos que
reformar algo, como escreveu o autor de “Il Gattopardo”, não é mais que mudar o
suficiente para que tudo se mantenha igual.
Regenerá-la? A qual visão
suficientemente democrática do passado valeria a pena regressar para, a partir
dela, reconstruir com novos materiais o que hoje está em vias de se perder? À
da Grécia antiga? À das cidades e repúblicas mercantis da Idade Média? À do
liberalismo inglês do século XVII? À do enciclopedismo francês do século XVIII?
As respostas seriam com certeza tão fúteis quanto já o foram as perguntas...
Que fazer, então? Deixar de considerar a democracia como um dado adquirido,
definido de uma vez e para sempre intocável. Num mundo que se habituou a
discutir tudo, uma só coisa não se discute, precisamente a democracia. Melífluo
e monacal, como era seu estilo retórico, Salazar, o ditador que governou o meu
país durante mais de quarenta anos, pontificava: “Não discutimos Deus, não
discutimos a Pátria, não discutimos a Família”. Hoje discutimos Deus,
discutimos a pátria, e só não discutimos a família porque ela própria se está a
discutir a si mesma. Mas não discutimos a democracia. Pois eu digo:
discutamo-la, meus senhores, discutamo-la a todas as horas, discutamo-la em
todos os foros, porque, se não o fizermos a tempo, se não descobrirmos a
maneira de a reinventar, sim, de a re-inventar, não será só a democracia que se
perderá, também se perderá a esperança de ver um dia respeitados neste infeliz
planeta os direitos humanos.
José Saramago