Uma entrevista muito interessante feita a António Cândido. É brasileiro. Fala do Brasil mas, o que diz, pode muito bem aplicar-se ao nosso país. Vale a pena ler e pensar sobre tudo isto.
in http://airantunes.com.br/?p=7562
Aos 93 anos, Antonio Candido
explica a sua concepção de socialismo, fala
sobre literatura e revela não se interessar por novas obras
Crítico literário, professor, sociólogo, militante. Um adjetivo sozinho não
consegue definir a importância de Antonio Candido para o Brasil. Considerado um
dos principais intelectuais do país, ele mantém a postura socialista, a
cordialidade, a elegância, o senso de humor, o otimismo. Antes de começar nossa
entrevista, ele diz que viveu praticamente todo o conturbado século 20. E
participou ativamente dele, escrevendo, debatendo, indo a manifestações,
ajudando a dar lucidez, clareza e humanidade a toda uma geração de alunos,
militantes sociais, leitores e escritores.
Tão bom de prosa como de escrita, ele fala sobre seu método de análise
literária, dos livros de que gosta, da sua infância, do começo da sua
militância, da televisão, do MST, da sua crença profunda no socialismo como uma
doutrina triunfante. “O que se pensa que é a face humana do capitalismo é o que
o socialismo arrancou dele”, afirma.
Brasil de Fato – Nos seus textos é perceptível a intenção de
ser entendido. Apesar de muito erudito, sua escrita é simples. Por que esse
esforço de ser sempre claro?
Antonio Candido – Acho que a clareza é um respeito pelo
próximo, um respeito pelo leitor. Sempre achei, eu e alguns colegas, que, quando
se trata de ciências humanas, apesar de serem chamadas de ciências, são ligadas
à nossa humanidade, de maneira que não deve haver jargão científico. Posso dizer
o que tenho para dizer nas humanidades com a linguagem comum. Já no estudo das
ciências humanas eu preconizava isso. Qualquer atividade que não seja
estritamente técnica, acho que a clareza é necessária inclusive para pode
divulgar a mensagem, a mensagem deixar de ser um privilégio e se tornar um bem
comum.
Brasil de Fato – O seu método de análise da literatura parte
da cultura para a realidade social e volta para a cultura e para o texto. Como o
senhor explicaria esse método?
Antonio Candido – Uma coisa que sempre me preocupou muito é
que os teóricos da literatura dizem: é preciso fazer isso, mas não fazem. Tenho
muita influência marxista – não me considero marxista – mas tenho muita
influência marxista na minha formação e também muita influência da chamada
escola sociológica francesa, que geralmente era formada por socialistas. Parti
do seguinte princípio: quero aproveitar meu conhecimento sociológico para ver
como isso poderia contribuir para conhecer o íntimo de uma obra literária. No
começo eu era um pouco sectário, politizava um pouco demais minha atividade.
Depois entrei em contato com um movimento literário norte-americano, a nova
crítica, conhecido como new criticism. E aí foi um ovo de colombo: a obra de
arte pode depender do que for, da personalidade do autor, da classe social dele,
da situação econômica, do momento histórico, mas quando ela é realizada, ela é
ela. Ela tem sua própria individualidade. Então a primeira coisa que é preciso
fazer é estudar a própria obra. Isso ficou na minha cabeça. Mas eu também não
queria abrir mão, dada a minha formação, do social. Importante então é o
seguinte: reconhecer que a obra é autônoma, mas que foi formada por coisas que
vieram de fora dela, por influências da sociedade, da ideologia do tempo, do
autor. Não é dizer: a sociedade é assim, portanto a obra é assim. O importante
é: quais são os elementos da realidade social que se transformaram em estrutura
estética. Me dediquei muito a isso, tenho um livro chamado “Literatura e
sociedade” que analisa isso. Fiz um esforço grande para respeitar a realidade
estética da obra e sua ligação com a realidade. Há certas obras em que não faz
sentido pesquisar o vínculo social porque ela é pura estrutura verbal. Há outras
em que o social é tão presente – como “O cortiço” [de Aluísio Azevedo] – que é
impossível analisar a obra sem a carga social. Depois de mais maduro minha
conclusão foi muito óbvia: o crítico tem que proceder conforme a natureza de
cada obra que ele analisa. Há obras que pedem um método psicológico, eu uso;
outras pedem estudo do vocabulário, a classe social do autor; uso. Talvez eu
seja aquilo que os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um
pouco eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de
obras.
Brasil de Fato – Teria um tipo de abordagem estética que
seria melhor?
Antonio Candido – Não privilegio. Já privilegiei. Primeiro o
social, cheguei a privilegiar mesmo o político. Quando eu era um jovem crítico
eu queria que meus artigos demonstrassem que era um socialista escrevendo com
posição crítica frente à sociedade. Depois vi que havia poemas, por exemplo, em
que não podia fazer isso. Então passei a outra fase em que passei a priorizar a
autonomia da obra, os valores estéticos. Depois vi que depende da obra. Mas
tenho muito interesse pelo estudo das obras que permitem uma abordagem ao mesmo
tempo interna e externa. A minha fórmula é a seguinte: estou interessado em
saber como o externo se transformou em interno, como aquilo que é carne de vaca
vira croquete. O croquete não é vaca, mas sem a vaca o croquete não existe. Mas
o croquete não tem nada a ver com a vaca, só a carne. Mas o externo se
transformou em algo que é interno. Aí tenho que estudar o croquete, dizer de
onde ele veio.
Brasil de Fato – O que é mais importante ler na literatura
brasileira?
Antonio Candido – Machado de Assis. Ele é um escritor
completo.
Brasil de Fato – É o que senhor mais gosta?
Antonio Candido – Não, mas acho que é o que mais se
aproveita.
Brasil de Fato – E de qual o senhor mais gosta?
Antonio Candido – Gosto muito do Eça de Queiroz, muitos
estrangeiros. De brasileiros, gosto muito de Graciliano Ramos… Acho que já li
“São Bernardo” umas 20 vezes, com mentira e tudo. Leio o Graciliano muito,
sempre. Mas Machado de Assis é um autor extraordinário. Comecei a ler com 9 anos
livros de adulto. E ninguém sabia quem era Machado de Assis, só o Brasil e,
mesmo assim, nem todo mundo. Mas hoje ele está ficando um autor universal. Ele
tinha a prova do grande escritor. Quando se escreve um livro, ele é traduzido, e
uma crítica fala que a tradução estragou a obra, é porque não era uma grande
obra. Machado de Assis, mesmo mal traduzido, continua grande. A prova de um bom
escritor é que mesmo mal traduzido ele é grande. Se dizem: “a tradução matou a
obra”, então a obra era boa, mas não era grande.
Brasil de Fato – Como levar a grande literatura para quem
não está habituado com a leitura?
Antonio Candido – É perfeitamente possível, sobretudo
Machado de Assis. A Maria Vitória Benevides me contou de uma pesquisa que foi
feita na Itália há uns 30 anos. Aqueles magnatas italianos, com uma visão já
avançada do capitalismo, decidiram diminuir as horas de trabalho para que os
trabalhadores pudessem ter cursos, se dedicar à cultura. Então perguntaram:
cursos de que vocês querem? Pensaram que iam pedir cursos técnicos, e eles
pediram curso de italiano para poder ler bem os clássicos. “A divina comédia” é
um livro com 100 cantos, cada canto com dezenas de estrofes. Na Itália, não sou
capaz de repetir direito, mas algo como 200 mil pessoas sabem a primeira parte
inteira, 50 mil sabem a segunda, e de 3 a 4 mil pessoas sabem o livro inteiro de
cor. Quer dizer, o povo tem direito à literatura e entende a literatura. O
doutor Agostinho da Silva, um escritor português anarquista que ficou muito
tempo no Brasil, explicava para os operários os diálogos de Platão, e eles
adoravam. Tem que saber explicar, usar a linguagem normal.
Brasil de Fato – O senhor acha que o brasileiro gosta de
ler?
Antonio Candido – Não sei. O Brasil pra mim é um mistério.
Tem editora para toda parte, tem livro para todo lado. Vi uma reportagem que
dizia que a cidade de Buenos Aires tem mais livrarias que em todo o Brasil.
Lê-se muito pouco no Brasil. Parece que o povo que lê mais é o finlandês, que lê
30 volumes por ano. Agora dizem que o livro vai acabar, né?
Brasil de Fato – O senhor acha que vai?
Antonio Candido – Não sei. Eu não tenho nem computador… as
pessoas me perguntam: qual é o seu… como chama?
Brasil de Fato – E-mail?
Antonio Candido – Isso! Olha, eu parei no telefone e máquina
de escrever. Não entendo dessas coisas… Estou afastado de todas as novidades há
cerca de 30 anos. Não me interesso por literatura atual. Sou um velho caturra.
Já doei quase toda minha biblioteca, 14 ou 15 mil volumes. O que tem aqui é
livro para visita ver. Mas pretendo dar tudo. Não vendo livro, eu dou. Sempre
fiz escola pública, inclusive universidade pública, então é o que posso dar para
devolver um pouco. Tenho impressão que a literatura brasileira está fraca, mas
isso todo velho acha. Meus antigos alunos que me visitam muito dizem que está
fraca no Brasil, na Inglaterra, na França, na Rússia, nos Estados Unidos… que a
literatura está por baixo hoje em dia. Mas eu não me interesso por
novidades.
Brasil de Fato – E o que o senhor lê hoje em dia?
Antonio Candido – Eu releio. História, um pouco de política…
mesmo meus livros de socialismo eu dei tudo. Agora estou querendo reler alguns
mestres socialistas, sobretudo Eduard Bernstein, aquele que os comunistas tinham
ódio. Ele era marxista, mas dizia que o marxismo tem um defeito, achar que a
gente pode chegar no paraíso terrestre. Então ele partiu da ideia do filósofo
Immanuel Kant da finalidade sem fim. O socialismo é uma finalidade sem fim. Você
tem que agir todos os dias como se fosse possível chegar no paraíso, mas você
não chegará. Mas se não fizer essa luta, você cai no inferno.
Brasil de Fato – O senhor é socialista?
Antonio Candido – Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho
que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é
paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos,
na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os
operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com
o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o
socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem
que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser
explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo,
cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar,
para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze
horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não
ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as
crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é
um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo
tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é
baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter
sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia
não tem limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são
cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço.
Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o
sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e
por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que
é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor,
lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias…
tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia.
Brasil de Fato – Por quê?
Antonio Candido – Virou capitalismo. A revolução russa
serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder.
O socialismo hoje está infiltrado em todo lugar.
Brasil de Fato – O socialismo como luta dos
trabalhadores?
Antonio Candido – O socialismo como caminho para a
igualdade. Não é a luta, é por causa da luta. O grau de igualdade de hoje foi
obtido pelas lutas do socialismo. Portanto ele é uma doutrina triunfante. Os
países que passaram pela etapa das revoluções burguesas têm o nível de vida do
trabalhador que o socialismo lutou para ter, o que quer. Não vou dizer que
países como França e Alemanha são socialistas, mas têm um nível de vida melhor
para o trabalhador.
Brasil de Fato – Para o senhor é possível o socialismo
existir triunfando sobre o capitalismo?
Antonio Candido – Estou pensando mais na técnica de esponja.
Se daqui a 50 anos no Brasil não houver diferença maior que dez do maior ao
menor salário, se todos tiverem escola… não importa que seja com a monarquia,
pode ser o regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo! Digo que o
socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações estão sendo cada
vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão:
o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não
foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais
eficiente, porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais
complicada. É preciso conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado
tem, assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens
materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o
socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o
socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser… o
que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um
professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho
provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia
em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos
que o banqueiro, está bom, é o socialismo.
Brasil de Fato – O que o socialismo conseguiu no mundo de
avanços?
Antonio Candido – O socialismo é o cavalo de Troia dentro do
capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo
humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é
uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a China, o
Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o socialismo democrático é
moderado, é humano. E não há verdade final fora da moderação, isso Aristóteles
já dizia, a verdade está no meio. Quando eu era militante do PT – deixei de ser
militante em 2002, quando o Lula foi eleito – era da ala do Lula, da
Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema esquerda, para cutucar o
centro. É preciso ter esquerda e direita para formar a média. Estou convencido
disso: o socialismo é a grande visão do homem, que não foi ainda superada, de
tratar o homem realmente como ser humano. Podem dizer: a religião faz isso. Mas
faz isso para o que são adeptos dela, o socialismo faz isso para todos. O
socialismo funciona como esponja: hoje o capitalismo está embebido de
socialismo. No tempo que meu irmão Roberto – que era católico de esquerda –
começou a trabalhar, eu era moço, ele era tido como comunista, por dizer que no
Brasil tinha miséria. Dizer isso era ser comunista, não estou falando em
metáforas. Hoje, a Federação das Indústrias, Paulo Maluf, eles dizem que a
miséria é intolerável. O socialismo está andando… não com o nome, mas aquilo que
o socialismo quer, a igualdade, está andando. Não aquela igualdade que alguns
socialistas e os anarquistas pregavam, igualdade absoluta é impossível. Os
homens são muito diferentes, há uma certa justiça em remunerar mais aquele que
serve mais à comunidade. Mas a desigualdade tem que ser mínima, não máxima. Sou
muito otimista. (pausa). O Brasil é um país pobre, mas há uma certa tendência
igualitária no brasileiro – apesar da escravidão – e isso é bom. Tive uma sorte
muito grande, fui criado numa cidade pequena, em Minas Gerais, não tinha nem 5
mil habitantes quando eu morava lá. Numa cidade assim, todo mundo é parente. Meu
bisavô era proprietário de terras, mas a terra foi sendo dividida entre os
filhos… então na minha cidade o barbeiro era meu parente, o chofer de praça era
meu parente, até uma prostituta, que foi uma moça deflorada expulsa de casa, era
minha prima. Então me acostumei a ser igual a todo mundo. Fui criado com os
antigos escravos do meu avô. Quando eu tinha 10 anos de idade, toda pessoa com
mais de 40 anos tinha sido escrava. Conheci inclusive uma escrava, tia Vitória,
que liderou uma rebelião contra o senhor. Não tenho senso de desigualdade
social. Digo sempre, tenho temperamento conservador. Tenho temperamento
conservador, atitudes liberais e ideias socialistas. Minha grande sorte foi não
ter nascido em família nem importante nem rica, senão ia ser um reacionário.
(risos).
Brasil de Fato – A Teresina, que inspirou um livro com seu
nome, o senhor conheceu depois?
Antonio Candido – Conheci em Poços de Caldas… essa era uma
mulher extraordinária, uma anarquista, maior amiga da minha mãe. Tenho
um livrinho sobre ela. Uma mulher formidável. Mas eu me politizei muito tarde,
com 23, 24 anos de idade com o Paulo Emílio. Ele dizia: “é melhor ser fascista
do que não ter ideologia”. Ele que me levou para a militância. Ele dizia com
razão: cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político.
Brasil de Fato – E o dever da atual geração?
Antonio Candido – Ter saudade. Vocês pegaram um rabo de
foguete danado.
Brasil de Fato – No seu livro “Os parceiros do Rio Bonito” o
senhor diz que é importante defender a reforma agrária não apenas por motivos
econômicos, mas culturalmente. O que o senhor acha disso hoje?
Antonio Candido – Isso é uma coisa muito bonita do MST. No
movimento das Ligas Camponesas não havia essa preocupação cultural, era mais
econômica. Acho bonito isso que o MST faz: formar em curso superior quem
trabalha na enxada. Essa preocupação cultural do MST já é um avanço
extraordinário no caminho do socialismo. É preciso cultura. Não é só o livro, é
conhecimento, informação, notícia… Minha tese de doutorado em ciências sociais
foi sobre o camponês pobre de São Paulo – aquele que precisa arrendar terra, o
parceiro. Em 1948, estava fazendo minha pesquisa num bairro rural de Bofete e
tinha um informante muito bom, Nhô Samuel Antônio de Camargos. Ele dizia que
tinha mais de 90 anos, mas não sabia quantos. Um dia ele me perguntou: “ô seu
Antonio, o imperador vai indo bem? Não é mais aquele de barba branca, né?”. Eu
disse pra ele: “não, agora é outro chamado Eurico Gaspar Dutra”. Quer dizer, ele
está fora da cultura, para ele o imperador existe. Ele não sabe ler, não sabe
escrever, não lê jornal. A humanização moderna depende da comunicação em grande
parte. No dia em que o trabalhador tem o rádio em casa ele é outra pessoa. O
problema é que os meios modernos de comunicação são muito venenosos. A televisão
é uma praga. Eu adoro, hein? Moro sozinho, sozinho, sou viúvo e assisto
televisão. Mas é uma praga. A coisa mais pérfida do capitalismo – por causa da
necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo. Marx não
conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar de
dez em dez minutos, na cabeça de todos – na sua, na minha, do Sílvio Santos, do
dono do Bradesco, do pobre diabo que não tem o que comer – imagens de whisky,
automóvel, casa, roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro que não dá
condições para concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades
artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria… Esse
desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso graças
ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez carro popular,
vendia a 500 dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e o
Ford foi ficando milionário. De repente o carro não vendia mais. Ele ficou
desesperado, chamou os economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que
não vende, o carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O
produto artesanal é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser
feito para acabar, essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu
isso, passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais
socialista seria preciso encontrar uma maneira de não falir as empresas, mas
tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da renovação. Hoje um
automóvel é feito para acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como
miragem o lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro
infinito, é do bem-estar infinito.
Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio
de Janeiro em 24 de julho de 1918, concluiu seus estudos secundários em Poços de
Caldas (MG) e ingressou na recém-fundada Universidade de São Paulo em 1937, no
curso de Ciências Sociais. Com os amigos Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de
Almeida Prado e outros fundou a revista Clima. Com Gilda de Mello e Souza,
colega de revista e do intenso ambiente de debates sobre a cultura, foi casado
por 60 anos. Defendeu sua tese de doutorado, publicada depois como o livro “Os
Parceiros do Rio Bonito”, em 1954. De 1958 a 1960 foi professor de literatura na
Faculdade de Filosofia de Assis. Em 1961, passou a dar aulas de teoria literária
e literatura comparada na USP, onde foi professor e orientou trabalhos até se
aposentar, em 1992. Na década de 1940, militou no Partido Socialista Brasileiro,
fazendo oposição à ditadura Vargas. Em 1980, foi um dos fundadores do Partido
dos Trabalhadores. Colaborou nos jornais Folha da Manhã e Diário de São Paulo,
resenhando obras literárias. É autor de inúmeros livros, atualmente reeditados
pela editora Ouro sobre Azul, coordenada por sua filha, Ana Luisa
Escorel.
Transcrito do site de Luis
Nassif
Marco Antônio L. articulista do “Brasil de
Fato”