Preliminar
O presente artigo não é um texto académico composto em linguagem de rigor filosófico, mas reflete um propósito que é mais de convocação ao interesse geral sobre um tema tão rico quanto importante para (…) os dias correntes (…).
Ética é um dos grandes capítulos em que se divide o pensar do ser humano desde os primórdios da filosofia, na Grécia Antiga. E desde essa origem a ética teve e tem uma íntima ligação com a política, chegando mesmo a uma quase identificação naquele momento da Antiguidade. É que ética é um conceito Iminentemente ligado ao coletivo seja esse coletivo a corporação (o caso das éticas profissionais), a nação ou a humanidade (onde se colocam todas as questões dos direitos humanos). Assim é que a filosofia política foi sempre tratada dentro do grande capítulo da ética que, com a física (e a metafísica) e a lógica, compunham o quadro geral da filosofia na Antiguidade.
O conceito de ética é também algo estreitamento vinculado ao sentimento dos povos, ao seu modo de viver e aos seus costumes, como indica a raiz grega da palavra (ethos), e tem naturalmente evoluído no seu conteúdo, como evoluem esses costumes ao longo do tempo e da história. As éticas de hoje são em vários aspectos profundamente diferentes das antigas, e a forma de encarar a escravidão é provavelmente o exemplo mais conspícuo dessas diferenças que abrangem muitos outros aspectos relevantes. Os antigos não conheciam, por exemplo, nenhuma ética da humanidade e um dos seus princípios de virtude era o de fazer o mal aos povos inimigos.
Quanto à política, a sua ideia se desdobra em dois conceitos diferentes que convivem quotidianamente na opinião dos cidadãos e na motivação da ação dos políticos: um é o de que a política, a mais nobre das ocupações humanas, é o empenho na realização do bem comum, do bem da coletividade ao qual se aplica como a um propósito final; é a concepção de Platão e de Aristóteles, dos filósofos pregos que a explicitaram na sua polémica de afirmação da filosofia (que se confundia para eles com a política), contra o pragmatismo dos sofistas e dos retóricos que ensinavam a linguagem eficaz para o manejo das assembleias e das funções políticas. O outro é o de que a política é a arte e a sabedoria de conquistar e de manter estável o poder; o fazer o bem; nesta visão, não é propriamente um fim, mas um meio de ganhar o apoio dos cidadãos para a conservação e a estabilização do poder, empregado em paralelo com outros meios também válidos, como o marketing, o controle da mídia, o clientelismo, o populismo e até mesmo a mentira, a violência e a corrupção. Este é o conceito derivado das interpretações mais correntes dos conselhos de Maquiavel e é o que melhor se enquadra nas concepções da ciência política moderna, entendida a ciência como conhecimento neutro, isto é, destacado de qualquer consideração de natureza ética.
Ambos os conceitos são correntes no mundo e nos tempos, tendendo a prevalecer, no geral, o "realismo" do segundo. Assim é que, entre nós, contemporaneamente, a virtude mais popular da política é a esperteza, que a linguagem simples tem chamado de "jogo de cintura", juntamente com a coragem, macheza ou ousadia; qualidade das quais nasce a confiança no político, como alguém capaz de bem dirigir o povo com pulso e habilidade. A ideia do bem, entretanto, estará sempre presente e importante, a fazer a crítica permanente do pragmatismo, impedindo o poder de violar certos limites ditados pela ética e levando-o mesmo a fazer concessões a muitas de suas postulações, ainda que vistas frequentemente como românticas ou quixotescos. E o propósito do bem, a sua busca pela política, tende a ganhar dimensão de hegemonia nos momentos de crise grave que abale os fundamentos éticos da sociedade, gerando verdadeiros momentos revolucionários que operam profundas transformações político-sociais.
As relações da ética com a política se dão principalmente em três vertentes, quais sejam, as relações de conflito, as de convergência ou encontro e aquelas que se desdobram numa dialética de condicionamento ou de iluminação.
Relações de Conflito
Um primeiro campo de relacionamento, que tem sempre suscitado mais interesse nas especulações e nos debates que se travam sobre o tema, é o dos conflitos entre os princípios da ética e a realidade da política.
Formou-se neste campo uma verdadeira dialética do pragmatismo dos fins com o dever dos meios que assumiu formas diversas ao curso da história. Na Antiguidade, a critica pela perspectiva da ética era feita pelos filósofos em nome do ideal da "vida digna" sobre as políticas dos governantes que buscavam a glória e especialmente dos tiranos que exerciam o poder por cima das leis. Na Idade Média, o objetivo do pragmatismo estava ligado a estabilidade dos reinas e à glória dos príncipes, enquanto a critica pela perspectiva ética era feita em nome dos princípios da moral cristã que deviam pautar os "bons governos". Na modernidade, o eixo do pragmatismo transferiu-se para a eficácia vista pela ótica do económico, enquanto a critica ética se fundava nas ideologias da igualdade económica e da justiça social.
Assim, ética e política sempre tiveram uma intensa relação dialética de conflito, na convivência, variando os termos e os temas desse confronto. Entre esses temas, sempre se ressaltou o da mentira política, como uma espécie de agressão mais aceitável aos princípios morais. Platão, por exemplo, dava aos médicos e aos políticos o direito ao uso da "mentira útil", aquela capaz de agir como um fármaco sobre os indivíduos e sobre a pólis em estado de doença. Modernamente, a polémica da mentira e da verdade se tem situado em torno do conceito da "razão de Estado" que se originou nas relações de diplomacia entre os Estados monárquicos e se estendeu às relações governantes-súditos, significando projetos e informações que tinham de ser mentidos em segredo nos círculos mais íntimos do poder. Negar peremptoriamente a existência de um projeto ou dispositivo de defesa que não pode ser conhecido é um caso típico, a manutenção de segredos militares; forjar imagem negativa de uma nação inimiga ou do seu líder é outro. Muito além do uso da mentira, casos bem mais graves de violação de princípios morais, como o assassinato de inimigos perigosos, são cometidos secretamente em nome dessas razões de Estado e, quando revelados posteriormente, podem ser compreendidos e até aceitos por grande parte da opinião corrente, desde que justificados com a apresentação de um fim que possa ser considerado eticamente mais forte, como a defesa da nação ameaçada. Tal aceitação, todavia, nunca é consensual, mesmo nos casos mais leves, e sempre suscita reações e críticas que fazem do conceito de "razões de Estado" motivo de muita polémica e contestação.
O uso da mentira nas ações políticas pode também ultrapassar o conjunto dos casos caracterizadamente decorrentes de "razão de Estado" e continuar tendo aceitação, muitas vezes até mais consensual, sob o ponto de vista da critica feita segundo a ética. Por analogia, poder-se-ia invocar para esses casos uma justificativa reconhecida como "razão de Governo". Exemplo típico é o de um congelamento de preços, ou qualquer outra medida de governo que não possa ser conhecida com antecedência, sob pena de provocar especulações e manobras destruidoras dos efeitos intentados; a negação desses atos pelo governante até o dia em que são decretados é uma mentira política bastante aceitável pelos critérios éticos correntes, desde que explicada imediatamente após pelos próprios fatos.
A dialética da política com a mentira tem ainda outras áreas de contato, a atividade política necessariamente tem uma dimensão que é o "fazer imagem", construir e cultivar a imagem do líder, a imagem do candidato, a imagem do partido, algo que fácil e corretamente escorrega para o "forjar imagem", com o sentido de forçar os limites da verdade, e se confunde frequentemente com a impostura e a mentira útil para o forjador. É sabido que a política lida muito com "versões", e não tanto com verdades científicas, cujo estabelecimento é missão da história, com seus métodos e sua perspectiva de tempo. A versão é um tipo de informação imediata e oportunista, naturalmente sujeita ao erro e ao equívoco, podendo resvalar com frequência para a mentira fazedora de imagem, sem que seja fácil detectar a intenção maldosa. Dentro desta mesma área de contato, colocam-se também os esforços de mobilização para adesões populares de sustentação a posições de governo ou de oposição, que trabalham com versões, com compromissos apenas relativos com a verdade, com promessas sabidamente irrealizáveis, buscando antes a eficácia no que concerne aos objetivos colimados.
O entendimento que compatibiliza esses conflitos da ética com a política é o de que ambos os conceitos tem tudo a ver com a vida humana, com o Ser do homem em sociedade, e este Ser recusa qualquer tipo de enclausuramento dentro de princípios absolutamente rígidos. Se a moral, no âmbito do indivíduo, admite margens de flexibilidade no que respeita aos seus princípios (e só na teoria aceita os imperativos categóricos, não obstante a enorme lucidez de Kant para mostrar que não existe diferença entre teoria e prática), a ética, que preside as ações na perspectiva da coletividade, invoca tantas vezes a razão, atributo essencial desse Ser, a fim de validar margens de tolerância para as ações políticas, sem que tenha de renunciar ou abrir mão de seus princípios, simplesmente flexibilizando-os. Não seria preciso chamar Hegel para compreender a força racional dessas realidades.
Há formas e feições desses conflitos que são específicas do funcionamento da democracia representativa que se vai consolidando como sistema político em todas as partes do mundo. É o caso, por exemplo, da promessa política, usada, larga e genericamente, de maneira mais ou menos ética, como meio de conquista do voto, que é a via de legitimação própria do sistema. A promessa, que o mais das vezes é uma demanda do próprio eleitor (e por isso tão intensamente usada), decorre da necessidade humana de alimentar expectativas existenciais positivas e assume formas extensamente variáveis no que tango à possibilidade de compatibilização com a ética, desde aquelas realistas e lícitas, feitas com o propósito de cumprimento, até as que envolvem favores pessoais particulares e não divulgáveis (mesmo cumpridas), e as falsas promessas, que se enquadram no capítulo da mentira política, mas sem nenhuma relação ou justificação possível sob argumentos de razões de Estado ou de Governo.
A promessa aqui referida é a que se dirige a indivíduos ou a grupos constitutivos da clientela do candidato, não é a promessa ligada a compromissos programáticos ou de governo, apresentada ao todo da comunidade eleitora. Esta é verdadeiramente uma exigência da representação e da democracia, embora ela também possa frequentemente resvalar para a mentira, pela via da demagogia, e tornar-se incompatível com a ética.
Outras questões do regime democrático dizem respeito à compartimentação de representação política pelo corporativismo e à tendência manifesta nas democracias modernas ao desinteresse crescente da população em relação à esfera das coisas públicas, desinteresse mesmo pelo que concerne ao destino nacional respectivo. Penso que esta é uma questão que também tem a ver com a ética: a constatação de que a preocupação absolutamente predominante em assegurar as franquias e direitos da esfera da sociedade civil, e a exacerbação das disputas típicas das sociedades de mercado, as disputas de interesses legítimas dentro desta esfera (sociedade civil), como que vão amesquinhando a ética eminentemente política, a Ética de Hegel, e gradativamente substituindo-a pela ética do Gerson, para usar o jargão que o nosso povo entende. E a ética não pode ficar contida na esfera da vida privada em seus confrontos, a ética não se separa da política, da esfera da vida pública. A ética é política, é matéria pública, ou não é ética, pode ser moral, conjunto necessário de princípios das ações individuais. Logo adiante voltarei a comentar este ponto tão relevante.
E, ainda nessa abordagem de questões específicas do sistema democrático, há finalmente os que pretendem afirmar a relativa falta de importância de qualquer ética de valores universais (de fundo racionalista ou religioso) no mundo pós-moderno, sustentando, pragmaticamente, que o que é relevante é o respeito às normas positivas da democracia liberal, verdadeira garantia da boa convivência entre os homens em todos os sentidos.
Todavia, o avanço e a consolidação da democracia neste final de século vão produzindo, também, em contrapartida, linhas de pensamento que parecem impor-se progressivamente, constituindo uma tendência a resolver esses conflitos cada vez mais em favor da ética. No que tange à mentira política sob todas as suas formas, incluindo as variantes da promessa, crescem as exigências da chamada "transparência" de todas as ações públicas, políticas e governamentais, sendo cada vez mais o direito à verdade visto como condição necessária à efetivação da liberdade de opinião consagrada em todas as constituições, na medida em que, sem a informação completa e correta, não pode haver opinião no sentido pleno da expressão, no sentido compreendido por essas constituições.
No que toca aos aspectos ligados ao desinteresse pela política e ao menosprezo pelos princípios éticos na dimensão coletiva, a contrapartida vem da crítica ao que se pode chamar de "democracia de resultados" e da conseqüente exigência de novas formas de democracia mais participacionistas e menos "representativas" na acepção clássica do liberalismo.
Entretanto, se é possível inferir ou vislumbrar uma tendência ao encontro da ética com a política na evolução da democracia, este será um encontro a muito longo prazo, um encontro de tipo assintótico (?), não o encontro imediato e historicamente momentâneo, tratado a seguir.
Relações de Reencontro