segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Mujica critica sociedade capitalista em discurso na ONU


Um discurso que devia ser espalhado por todo o mundo! Refletido por toda a gente, com seriedade, respeito e muita atenção.
Admirável intervenção de um grande político, de um grande senhor, de um grande Presidente. Um socialista a sério que não desiste das suas ideias, dos seus valores, das suas convicções e que dá testemunho das mesmas ao mundo inteiro!
Notável!




   

O Presidente uruguaio lamentou o embargo a Cuba, o colonialismo nas Malvinas e a pobreza na América Latina

 
O presidente do Uruguai, José Mujica, criticou duramente o consumismo durante seu discurso na 68ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, nesta terça-feira (24/09). “O deus mercado organiza a economia, a vida, e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos frustração, pobreza e autoexclusão”, afirmou.

No discurso, que durou 40 minutos, ele também elogiou a utopia “de seu tempo”, mencionou a sua luta pelo antigo sonho de uma “sociedade libertária e sem classes” e destacou a importância da ONU, que se traduz para ele num “sonho de paz para a humanidade”.

Aos jornais uruguaios, Mujica prometeu um “discurso exótico” e fugiu do protocolo ao dizer que “tem angústia pelo futuro” e que a nossa “primeira tarefa é salvar a vida humana”.
“Sou do Sul (...) e carrego inequivocamente milhões de pessoas pobres na América Latina, carrego as culturas originárias esmagadas, o resto do colonialismo nas Malvinas, os bloqueios inúteis a Cuba, carrego a consequência da vigilância eletrónica, que gera desconfiança e que nos envenena inutilmente. Carrego a dívida social e a necessidade de defender a Amazónia, os nossos rios, de lutar por uma pátria para todos e que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, com o dever de lutar pela tolerância”.

A humanidade sacrificou os deuses imateriais e ocupou o templo com o “deus mercado, que organiza a economia, a vida, e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos a frustração, a pobreza, a autoexclusão”. No mesmo tom, ressaltou o fracasso do modelo adotado no capitalismo: “o certo hoje é que para a sociedade consumir como um americano médio seriam necessários três planetas. A nossa civilização montou um desafio mentiroso”.

Uruguaio criticou os altos gastos dos países com armamentos

Para o presidente, o atual modelo de civilização “é contra os ciclos naturais, contra a liberdade, que supõe ter tempo para viver, (…) é uma civilização contra o tempo livre, que não se paga, que não se compra e que é o que nos permite viver as relações humanas”, porque “só o amor, a amizade, a solidariedade, e a família transcendem”. “Arrasamos as selvas e implantamos selvas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insónia com remédios. E pensamos que somos felizes ao deixar o humano”.

Paz e guerra

“A cada 2 minutos gastam-se 2 milhões de dólares em materiais militares. As pesquisas médicas correspondem à quinta parte dos investimentos militares”, criticou o presidente ao sustentar que ainda estamos na pré-história: “enquanto o homem recorrer à guerra quando fracassar a política, estaremos na pré-história”, defendeu.

Assim, criamos “este processo do qual não podemos sair e causa ódio, fanatismo, desconfiança, novas guerras; eu sei que é fácil poeticamente autocriticarmos. Mas seria possível se firmássemos acordos de política planetária que nos garantam a paz”. Ao invés disso, “bloqueiam os espaços da ONU, que foi criada com um sonho de paz para a humanidade”.

O uruguaio também abordou a debilidade da ONU, que “se burocratiza por falta de poder e autonomia, de reconhecimento e de uma democracia e de um mundo que corresponda à maioria do planeta”.

“O nosso pequeno país tem a maior quantidade de soldados em missões de paz e estamos onde queiram que estejamos, e somos pequenos”. Dizemos com conhecimento de causa, garantiu o mandatário, que “estes sonhos, estes desafios que estão no horizonte, implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais para governar a nossa história e superar as ameaças à vida”. Para isso é “preciso entender que os indigentes do mundo não são da África, ou da América Latina e sim de toda humanidade que, globalizada, deve empenhar-se no desenvolvimento para a vida”.

“Pensem que a vida humana é um milagre e nada vale mais que a vida. E que o nosso dever biológico é acima de todas as coisas, impulsionar e multiplicar a vida e entendermos que a espécie somos nós” . E concluiu: “a espécie deveria ter um governo para a humanidade que supere o individualismo e crie cabeças políticas”.



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com Vanessa Silva, do "Portal Vermelho"

sábado, 28 de setembro de 2013

Não vais votar?




Não querer votar nas eleições para os órgãos e instituições políticas do meu país, é deitar por terra, banalizar e renegar uns dos maiores direitos conquistados com a Revolução de Abril, que foi e continua a ser a liberdade de escolha através do meu voto.
Liberdade de escolha que nesse pequeno gesto, nessa cruz que se traça ou não, fará certamente a diferença, dela dependendo o aparecimento de minorias ou até maiorias parlamentares, governos e políticas cuja continuidade - a História nos ensina - ameaça se torna ao regime democrático, abrindo frequentemente lugar à prepotência política e à arbitrariedade na ação governativa e legislativa que não queremos, mas que, inevitavelmente,  sobretudo com a abstenção, a todos atingirá.

Quando voto, decido, julgo, avalio e até penalizo os partidos e as suas políticas. Sim, os partidos, sem os quais nenhuma democracia se constituirá. Por isso é que voto. Por isso é que deves votar.

Quando não votas, não existes. Escondes-te numa posição fácil de clara desresponsabilização pelo que do teu gesto possa resultar para o país e para a continuação do estado democrático. Demites-te, assim, daquilo que era legítimo e até obrigatório fazeres se fosses um tipo consciente do que estudaste e até ensinaste, porque muitos morreram a lutar por esse dia, essa liberdade, torturados e perseguidos que foram por travarem um combate do qual agora foges vergonhosamente.
Quando não votas, és como um desertor que abandona o país à sua sorte e nada dele quer saber.

Não, nada se fará ou mudará se não intervieres com o teu voto e ele falar por ti.

Quando não votas, acobardas-te porque foges a um dever e a uma responsabilidade cívica que a ti também cabe mas que não assumes, deixando perigosamente que outros por ti decidam, mal ou bem, os destinos do nosso país e da tua autarquia. Depois, de forma perversamente subtil, passas para os outros, falsamente envaidecido, um discurso oco, árido, sistematicamente oco, sistematicamente árido, próprio dos que à espreita sempre estarão só para criticar, nada fazendo ou tendo feito, sequer pensado em fazer, interessados somente em denegrir quem com seriedade o seu programa político fez e a sua ação pautou, entregando-o para sufrágio popular.
Estás descontente com os partidos? Com a Política? Com certos candidatos? Com a corrupção e o compadrio? Com o despesismo do Estado? Estás descontente? Que fizeste ou tens feito para acabar com isso?

Estiveste na Rua, nas manifestações contra a cada vez maior pobreza dos portugueses? Contra esta austeridade terrível que nos atormenta e mata lentamente? Estiveste na Rua, nas manifestações contra a delapidação das contas públicas, as mordomias das elites, de certos políticos, dos banqueiros, dos gestores públicos, contra as PPP, contra a falta de transparência da gestão do erário público, do roubo de salários e de direitos constitucionalmente adquiridos, da desigualdade social crescente, do desrespeito pela Constituição e conquistas dos trabalhadores? Onde tens estado quando lutamos contra o fim do Estado Social? Que tens feito? Falas, sim, mas nada fazes para combater aquilo que criticas. Aliás, só criticas e nem votar vais, entrincheirado que estás e continuas a estar no teu discurso de espetador passivo, sempre com as mesmas palavras, acomodado com as mesmas palavras, os mesmos gestos e a mesma atitude, agarrado aos erros do passado que outros cometeram mas nada fazendo hoje para que uma nova mudança na Política aconteça.
Que exemplo dás aos teus filhos, aos nossos jovens que pela primeira vez vão votar? Quantas vezes andaste na tua cidade, na tua freguesia, e viste o que foi feito ou não foi feito e devia ser? Quantas vezes contataste órgãos do teu país ou da tua autarquia sobre incumprimentos graves acontecidos mas prometidos nos seus programas eleitorais? Quantas vezes?

Não condenes os partidos porque sem partidos não tens democracia. Assume a sua existência como um sinal de desenvolvimento e maturidade política do teu país mas não lhes delegues, exclusivamente, uma discussão e uma responsabilidade da qual sistematicamente te excluis como cidadão crítico e ativo que se esperava que fosses e ás vezes dizes ser, tu, que nem interessado estás em votar.
Quem não vai votar não tem autoridade cívica nem moral para exigir ou criticar seja que governo, presidente ou autarquia for.

Todos deviam pensar no que fazem, melhor, no que não querem fazer para mudar aquilo que criticam.
Quem não vai votar não se importa com o seu país.

Eu importo-me.
Não me chega pertencer-lhe. Quero participar nele.
 
 
 
Nazaré Oliveira

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Grande José Régio!


De um dos primeiros livros de poesia que li, ainda adolescente.
Um dos poemas mais fantástico de um dos mais fantásticos poetas que existiram (e continuarão a existir) - CÂNTICO NEGRO de José Régio.

 


Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces

 Estendendo-me os braços, e seguros

 De que seria bom que eu os ouvisse

 Quando me dizem: "vem por aqui!"

 Eu olho-os com olhos lassos,

 (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

 E cruzo os braços,

 E nunca vou por ali...

 

 A minha glória é esta:

 Criar desumanidade!

 Não acompanhar ninguém.

 - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

 Com que rasguei o ventre à minha mãe

 

 Não, não vou por aí! Só vou por onde

 Me levam meus próprios passos...

 

 Se ao que busco saber nenhum de vós responde

 Por que me repetis: "vem por aqui!"?

 

 Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

 Redemoinhar aos ventos,

 Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

 A ir por aí...

 

 Se vim ao mundo, foi

 Só para desflorar florestas virgens,

 E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

 O mais que faço não vale nada.

 

 Como, pois sereis vós

 Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

 Para eu derrubar os meus obstáculos?...

 Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

 E vós amais o que é fácil!

 Eu amo o Longe e a Miragem,

 Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

 

 Ide! Tendes estradas,

 Tendes jardins, tendes canteiros,

 Tendes pátria, tendes tectos,

 E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

 Eu tenho a minha Loucura !

 Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

 E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

 

 Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

 Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

 Mas eu, que nunca principio nem acabo,

 Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 

 Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

 Ninguém me peça definições!

 Ninguém me diga: "vem por aqui"!

 A minha vida é um vendaval que se soltou.

 É uma onda que se alevantou.

 É um átomo a mais que se animou...

 Não sei por onde vou,

 Não sei para onde vou

- Sei que não vou por aí!

 

 

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'

Pois, pá!

Zé Povinho (de Rafael Bordalo Pinheiro)
 
 
É assim mesmo pá, vai para a praia, vai beber umas bejecas e não te preocupes, não penses em nada porque há milhares de gajos a pensar por ti, milhares e milhares de gajos, com computadores, comissões, redes de polícia secreta, comentadores políticos, jornalistas, eu sei lá.
Nem tens que te preocupar, não é pá? Estás de consciência tranquila, sempre fizeste o que tinhas a fazer, não é pá? Votaste no centro moderado nas regionais, votaste na direita moderada nas nacionais e votaste no palhaço moderado nas presidenciais, que mais querem eles? Que lhes ofereças a Europa no Natal? Ah não acham bem? Então para a próxima já nem vais votar, pronto, está decidido, queres lá saber, para safado, safado e meio, eles que se lixem, que é para isso que nós lhes pagamos, não é pá? E deixa-te de políticas, que a tua política é o trabalho, o trabalhinho, porreirinho da Silva. Ah não tens trabalho? Que queres tu que eu te faça? Faz-te à vida, arma-te em empreendedor ou então emigra, quem é que tu pensas que és? O Ulrich, não? E esses gajos que para aí andam a contestar tudo, esses esquerdistas de merda que só desestabilizam, deviam era passar uma semana na António Maria Cardoso, a levar porrada até criar bicho e depois despachavam-se para Caxias ou para Peniche por tempo indeterminado, para ver se acalmavam, como nos outros tempos, não é pá? Isso é que eram tempos, não era pá? A malta andava pianinho, não havia confusões, tudo caladinho, uma maravilha, não era pá? Agora esta porcaria da Democracia é só chatices pá, manifestações, greves, eleições e o caneco, uma treta isto da Democracia, não é pá? Uma trabalheira!
Tu é que tens razão pá, que se lixem todos e mais a Democracia, tu é que a levas direita, e aprendam que tu não vives sempre, não é pá?

 
 
Carlos Galvão (adaptado de “FMI” de José Mário Branco)

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

September songs



 
 


 
 
 
 

Setembro





Não nos podemos instalar simplesmente nas vitórias de ontem, nos saberes adquiridos de um dia, nas experiências de uma determinada etapa. Chega setembro e damos por nós a conjugar regressos. Há duas maneiras de encarar este reencontro com o nosso quadro habitual de vida. Podemos entendê-lo como um retomar simples de um percurso que a pausa estival interrompeu. Voltamos aos mesmos lugares, ao mesmo ritmo, aos mesmos tiques rotineiros, como se a vida fosse um contínuo inalterado. Ou podemos voltar, tendo ganho uma distância crítica e criativa, em relação ao modo como habitamos o real que nos cabe. Sentimos então, como naquele verso de Rainer Maria Rilke, que temos de chegar ao que conhecemos e arriscar olhá-lo como se fosse a primeira vez. De facto, a vida, nas suas várias expressões (laborais, familiares, afetivas…) precisa de recomeços que o sejam verdadeiramente. Não nos podemos instalar simplesmente nas vitórias de ontem, nos saberes adquiridos de um dia, nas experiências de uma determinada etapa. O recomeço supõe uma abertura esperançada em relação ao hoje, encarando-o com a pobreza e a ousadia de quem aceita, depois de ter percorrido já uma estrada, considerar que está novamente, e que estará até ao fim, a viver sucessivos pontos de partida. Neste sentido, precisamos de jogar a vida no aberto, mantendo uma plasticidade interior que é um grande investimento de confiança no modo como Deus se vai manifestando a cada momento. Talvez precisemos todos escutar mais profundamente a vida para captar essa novidade que nos chega por dentro, esse refazer das disposições interiores, essa rejuvenescida vontade de nos pormos à estrada, quando a tentação que nos sobrevém, a dada altura, é a de nos arrumarmos num canto qualquer. Há aquela frase exigente e fantástica que o D. Quixote repetia: “vale mais o caminho do que a estalagem”. Setembro abeira-se de nós assim, desafiando-nos não a um regresso à estalagem, à zona de conforto, à vida tornada mais ao menos maquinal, mas a expormo-nos aos reinícios autênticos, ao refazer humilde e apaixonado do nosso labor, às aprendizagens que nos avizinham silenciosamente do definitivo escondido no provisório que tateamos.

 

 José Tolentino Mendonça

domingo, 8 de setembro de 2013

Papa Francisco: Podemos sair desta espiral de dor e de morte?




«Deus viu que isso era bom» (Gn 1,12.18.21.25). A narração bíblica da origem do mundo e da humanidade nos fala de Deus que olha a criação, quase a contemplando, e repete uma e outra vez: isso é bom. Isso, queridos irmãos e irmãs, nos permite entrar no coração de Deus e recebermos a sua mensagem que procede precisamente do seu íntimo.

Podemo-nos perguntar: qual é o significado desta mensagem? O que diz esta mensagem para mim, para ti, para todos nós?

1. Simplesmente nos diz que o nosso mundo, no coração e na mente de Deus, é “casa de harmonia e de paz” e espaço onde todos podem encontrar o seu lugar e sentir-se “em casa”, porque é “isso é bom”. Toda a criação constitui um conjunto harmonioso, bom, mas os seres humanos em particular, criados à imagem e semelhança de Deus, formam uma única família, em que as relações estão marcadas por uma fraternidade real e não simplesmente de palavra: o outro e a outra são o irmão e a irmã que devemos amar, e a relação com Deus, que é amor, fidelidade, bondade, se reflete em todas as relações humanas e dá harmonia para toda a criação.
O mundo de Deus é um mundo onde cada um se sente responsável pelo outro, pelo bem do outro. Esta noite, na reflexão, no jejum, na oração, cada um de nós, todos nós pensamos no profundo de nós mesmos: não é este o mundo que eu desejo? Não é este o mundo que todos levamos no coração? O mundo que queremos não é um mundo de harmonia e de paz, em nós mesmos, nas relações com os outros, nas famílias, nas cidades, nas e entre as nações? E a verdadeira liberdade para escolher entre os caminhos a serem percorridos neste mundo, não é precisamente aquela que está orientada pelo bem de todos e guiada pelo amor?

2. Mas perguntemo-nos agora: é este o mundo em que vivemos? A criação conserva a sua beleza que nos enche de admiração; ela continua a ser uma obra boa. Mas há também “violência, divisão, confronto, guerra”. Isto acontece quando o homem, vértice da criação, perde de vista o horizonte da bondade e da beleza, e se fecha no seu próprio egoísmo.

Quando o homem pensa só em si mesmo, nos seus próprios interesses e se coloca no centro, quando se deixa fascinar pelos ídolos do domínio e do poder, quando se coloca no lugar de Deus, então deteriora todas as relações, arruína tudo; e abre a porta à violência, à indiferença, ao conflito.
É justamente isso o que nos quer explicar o trecho do Génesis em que se narra o pecado do ser humano: o homem entra em conflito consigo mesmo, percebe que está nu e se esconde porque sente medo (Gn 3, 10); sente medo do olhar de Deus; acusa a mulher, aquela que é carne da sua carne (v. 12); quebra a harmonia com a criação, chega a levantar a mão contra o seu irmão para matá-lo. Podemos dizer que da harmonia se passa à desarmonia? Mas, podemos dizer isso: que da harmonia se passa à desarmonia? Não. Não existe a “desarmonia”: ou existe harmonia ou se cai no caos, onde há violência, desavença, confronto, medo...
É justamente nesse caos que Deus pergunta à consciência do homem: «Onde está o teu irmão Abel?». E Caim responde «Não sei. Acaso sou o guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9).
Esta pergunta também se dirige a nós, assim que também a nós fará bem perguntar:
- Acaso sou o guarda do meu irmão? Sim, tu és o guarda do teu irmão!
Ser pessoa significa sermos guardas uns dos outros! Contudo, quando se quebra a harmonia, se produz uma metamorfose: o irmão que devíamos guardar e amar se transforma em adversário a combater, a suprimir. Quanta violência surge a partir deste momento, quantos conflitos, quantas guerras marcaram a nossa história! Basta ver o sofrimento de tantos irmãos e irmãs. Não se trata de algo conjuntural, mas a verdade é esta: em toda violência e em toda guerra fazemos Caim renascer. Todos nós! E ainda hoje prolongamos esta história de confronto entre os irmãos, ainda hoje levantamos a mão contra quem é nosso irmão.
Ainda hoje nos deixamos guiar pelos ídolos, pelo egoísmo, pelos nossos interesses; e esta atitude se faz mais aguda: aperfeiçoamos as nossas armas, a nossa consciência adormeceu, tornamos mais sutis as nossas razões para nos justificar.
Como fosse uma coisa normal, continuamos a semear destruição, dor, morte! A violência e a guerra trazem somente morte, falam de morte! A violência e a guerra têm a linguagem da morte!

Depois do Dilúvio, cessou a chuva, surge o arco-íris e a pomba traz um ramo de oliveira. Penso também hoje naquela oliveira que os representantes das diversas religiões plantamos em Buenos Aires, na Praça de Maio, no ano 2000, pedindo que não haja mais caos, pedindo que não haja mais guerra, pedindo paz.

3. E neste ponto, me pergunto: É possível percorrer o caminho da paz? Podemos sair desta espiral de dor e de morte? Podemos aprender de novo a caminhar e percorrer o caminho da paz? Invocando a ajuda de Deus, sob o olhar materno da  Salus Populi romani, Rainha da paz, quero responder: Sim, é possível para todos! Esta noite queria que de todos os cantos da terra gritássemos: Sim, é possível para todos! E mais ainda, queria que cada um de nós, desde o menor até o maior, inclusive aqueles que estão chamados a governar as nações, respondesse: - Sim queremos!
A minha fé cristã leva-me a olhar para a Cruz. Como eu queria que, por um momento, todos os homens e mulheres de boa vontade olhassem para a Cruz! Na cruz podemos ver a resposta de Deus: ali, à violência não se respondeu com violência, à morte não se respondeu com a linguagem da morte. No silêncio da Cruz se cala o fragor das armas e fala a linguagem da reconciliação, do perdão, do diálogo, da paz. Queria pedir ao Senhor, nesta noite, que nós cristãos e os irmãos de outras religiões, todos os homens e mulheres de boa vontade gritassem com força: a violência e a guerra nunca são o caminho da paz! Que cada um olhe dentro da própria consciência e escute a palavra que diz: sai dos teus interesses que atrofiam o teu coração, supera a indiferença para com o outro que torna o teu coração insensível, vence as tuas razões de morte e abre-te ao diálogo, à reconciliação: olha a dor do teu irmão – penso nas crianças: somente nelas... olha a dor do teu irmão, e não acrescentes mais dor, segura a tua mão, reconstrói a harmonia perdida; e isso não com o confronto, mas com o encontro! Que acabe o barulho das armas!

A guerra significa sempre o fracasso da paz; é sempre uma derrota para a humanidade.

Ressoem mais uma vez as palavras de Paulo VI: «Nunca mais uns contra os outros, não mais, nunca mais... Nunca mais a guerra, nunca mais a guerra! (Discurso às Nações Unidas, 4 de outubro de 1965: ASS 57 [1965], 881). «A paz se afirma somente com a paz; e a paz não separada dos deveres da justiça, mas alimentada pelo próprio sacrifício, pela clemência, pela misericórdia, pela caridade» (Mensagem para o Dia Mundial da Paz, de 1976: ASS 67 [1975], 671).

Irmãos e irmãs, perdão, diálogo, reconciliação são as palavras da paz: na amada nação síria, no Oriente Médio, em todo o mundo! Rezemos, nesta noite, pela reconciliação e pela paz, e nos tornemos todos, em todos os ambientes, em homens e mulheres de reconciliação e de paz. Assim seja.


Papa Francisco
HOMILIA DO SANTO PADRE
Praça de São Pedro Sábado, 7 de  Setembro de 2013