sexta-feira, 20 de julho de 2012

Eles não sabem, nem pensam, nem sentem

Hoje, nas minhas leituras pela imprensa e blogues que sigo, com a devida vénia, aqui publico o excecional texto do Mainstreet, sobre “o caso D. Januário Torgal Ferreira” e que, curiosamente, converge para a mesma linha de pensamento do meu artigo que publiquei dia 17 deste mês:



As reações de ministros, de homens do aparelho partidário do PSD e do CDS e, em particular, do ministro da defesa, Aguiar Branco, denotam um mal-estar impressionante.
Hoje, em declarações ao jornal i, D. Januário Torgal Ferreira, Major General da FFAA'S, responde de modo arrasador ao ministro, afirmações que pode confirmar aqui.

D. Januário é um homem da igreja católica, é um homem da filosofia, conhece os clássicos e sabe bem o que significa a ética, aparentemente dicotómica de Max Weber, da responsabilidade e da convicção.
No caso vertente, o Bispo das FFAA's arrima-se à da responsabilidade para afirmar isto:

“Não estou preocupado. Ele não é meu superior, não é meu ministro.” É a resposta de D. Januário Torgal ao ministro da Defesa, José Pedro Aguiar-Branco, que ontem o desafiou a escolher entre “ser bispo das Forças Armadas e ser comentador político”.
Ao i, D. Januário contrapõe: “Um bispo não tem que escolher entre a sua função de membro da Igreja ou de comentador político. Um bispo tem de falar de tudo, é sua obrigação interceder pelos mais frágeis. Se isso é ser comentador político, que seja”.

Já o meu amigo e apreciado comentador JAM escreve texto seminal sobre a postura de D. Januário:
"D. Januário, visto por Aristóteles: a voz do homem não se reduz a um conjunto de sons. Não é apenas simples voz (phone), não lhe serve apenas para indicar a alegria e a dor, como acontece, aliás, nos outros animais, dado que é também uma forma de poder comunicar um discurso (logos). Graças a ela o homem exprime não só o útil e o prejudicial, como também o justo e o injusto. Como dizia Fénelon, "em Atenas tudo dependia do povo e o povo dependia da palavra". Nesta democracia também. Obrigado D. Januário, pela palavra, a que apenas se pode responder com outra palavra. Para podermos continuar a ser animais políticos, isto é, animais de discurso, que, muito simplesmente, significa razão."

Sobre a postura de D. Januário Torgal Ferreira, a propósito do que este disse sobre o estado a que o governo se deixou levar e o seu modus operandi, vale a pena ler as declarações do Professor (e Politólogo) José Adelino Maltez:

"D. Januário, de Janus (o deus bifronte, que olha para o passado e para o futuro, na imagem), o que abre portas, tem de optar entre ser bispo das forças armadas e comentador político, acabou de dizer o Ministro da Defesa, em comentário político. O porta-voz do CDS para a área acaba também de dizer que o ministro tutela e é superior hierárquico do senhor bispo. Vale-nos que o comandante chefe das forças armadas é professor da Universidade Católica e ainda não disse nada."
Quase como nota de rodapé, uma pequena súmula biográfica do homem que foi escolhido pelo Bispo do Porto (que esteve "exilado" em Roma por vontade de Salazar), para seu Chefe de Gabinete:

"(...) Alguns anos mais tarde, regressou a França para frequentar um curso de Pós-graduação em Paris-Nanterre (1977-1979), sob a direcção de Paul Ricoeur. De seguida, deu início à elaboração da sua dissertação de doutoramento em Filosofia, a qual veio a abandonar após a morte dos pais (a mãe faleceu em 1980 e o pai em 1983). Foi Reitor da Igreja de S. José das Taipas, no Porto, participou no Centro Diocesano de Preparação para o Matrimónio, foi Director do Secretariado para a Pastoral Familiar e da Pastoral Universitária e foi membro, a pedido do Prof. Daniel Serrão, da Comissão de Ética do Hospital de S. João. No decurso da sua carreira de docente universitário, entre 1970 e 1989, trabalhou como Professor Assistente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde ministrou as disciplinas de Introdução à Filosofia, Axiologia e Ética, História da Cultura Clássica, História da Filosofia Antiga, Introdução às Ciências do Homem, Introdução à Psicologia (no Curso de Pós-graduação em Ciências Pedagógicas), Técnicas e Métodos de Investigação em Filosofia, Temas da Filosofia Contemporânea e Medieval e Hermenêutica do Texto Filosófico. Paralelamente, leccionou as disciplinas de Introdução à Psicologia e de História da Cultura na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti (1970), também no Porto; regeu o seminário "Introdução às Ciências do Homem", na Universidade de Aveiro (1977) e leccionou no Instituto de Estudos Teológicos (1980), mais tarde transitando para o Curso de Teologia da Universidade Católica, no pólo do Porto. Em Abril de 1989, ao ingressar no Ordinariato Castrense como Bispo Auxiliar das Forças Armadas e de Segurança, abandonou a docência e a investigação científica. Nesse ano tornou-se Vigário-geral Castrense e Capelão-Mor das Forças Armadas, recebendo a patente de Brigadeiro e, mais tarde, de Major-General. De 1993 a 1999 foi porta-voz e secretário da Conferência Episcopal Portuguesa, tendo estado em Oslo, em 1996, nessa qualidade, aquando da atribuição do Prémio Nobel da Paz a D. Ximenes Belo e a Ramos Horta. Em 2001 foi nomeado Ordinário Castrense, ou seja, Bispo das Forças Armadas e de Segurança, e, simultaneamente, Presidente da Comissão Episcopal das Migrações e Turismo e da Pax Christi, movimento católico internacional. A 24 de Junho de 2008 foi distinguido pelo Chefe de Estado-Maior do Exército, General José Luís Pinto Ramalho, com a Medalha D. Afonso Henriques, Mérito do Exército, 1ª classe. Januário Torgal Ferreira editou trabalhos de investigação em publicações periódicas, colabora nas enciclopédias Luso-brasileira e Logos e é comentador da rádio TSF."



Uma nota pessoal:

Num governo, em governos, em secretarias de estado, em empresas públicas, em gestores públicos, ministros, secretários de estado, assessores, secretárias... com "tantos e tão bons curriculum vitae e tantas e boas formações académicas", muitos deles sem nunca terem trabalhado em lado nenhum, a não ser lá, "nos gabinetes", realmente, é mais um caso para pensar nesta arrogância não só política como, também, intelectual, que tem governado a plebe!

Nelson Mandela - os caminhos da liberdade


Nelson Mandela - Os caminhos da liberdade: excelente reportagem de uma equipa da RTP encabeçada pelo jornalista António Mateus. No dia em que Nelson Mandela - um dos maiores ícones universais do nosso tempo - festeja 94 anos vale a pena recordar a evolução da África do Sul desde os dias de chumbo do regime racista de P. W. Botha até à actualidade.

António Mateus - que conhece bem a África do Sul, onde foi correspondente durante largos anos - recolhe os testemunhos de dois obreiros desta admirável transformação do mais próspero país do continente africano, anteriormente banido da comunidade internacional, num exemplo de multirracialismo, democracia e liberdade: Desmond Tutu e Frederik de Klerk. Ambos galardoados com o Nobel da Paz - o primeiro em 1984, pelo seu corajoso combate aos esbirros do apartheid, o segundo dez anos depois (em parceria com Mandela) por ter liderado enquanto chefe do Estado o processo de transição, que atingiu um dos seus momentos culminantes na hora da libertação do histórico líder do Congresso Nacional Africano, em Fevereiro de 1990, acompanhada com emoção em todo o mundo.

De Klerk, num depoimento emocionado, diz uma frase carregada de sabedoria: «Não devemos deixar que o futuro seja minado pelas amarguras do passado.»

Os cínicos de serviço, que lançaram os maiores anátemas à Primavera árabe iniciada em 2011 - e já traduzida em eleições na Tunísia, no Egipto e na Líbia - deviam ver com atenção esta reportagem.

Fazia-lhes bem.


in http://forteapache.blogs.sapo.pt/

terça-feira, 17 de julho de 2012

D. Januário Torgal Ferreira e os anjinhos



Defendo uma sociedade laica mas considero que a Igreja de Pedro (apóstolo), a Igreja que Jesus Cristo pretendeu e pretende, é aquela que, inequivocamente, deve estar ao lado dos pobres, dos explorados, dos humilhados, dos injustiçados, coisa que nem sempre vejo de forma clara, tal o pecado por omissão que tanto critico em certos membros da Igreja, sobretudo da Católica, mais temente aos homens do que a Deus, mais voltada para a teatralização e mediatização da fé do que para a verdadeira espiritualidade e cumprimento dos mandamentos que tanto propagandeia mas deveria interiorizar, deles sendo o principal exemplo.

Já lá vai o tempo em que o poder espiritual subordinava a si tudo e todos, e em que esse mesmo poder, omnipotente e omnipresente governava "a bem da nação", como aconteceu no Estado Novo, numa promíscua e aterradora ligação com o governo de Salazar-Caetano, e até, com Franco, Hitler ou Mussolini.

Mas é óbvia a importância que tiveram e têm homens (e mulheres) ligados a esta Igreja, como foi o caso de D. António Ferreira Gomes e tem sido o de D. Manuel Martins e de D. Januário Torgal Ferreira que, em nome do povo e em nome de valores que a todo o custo alguns querem varrer, vêm, destemidamente, num Portugal cada vez mais amordaçado, pôr-se ao lado da realidade que quem manda quer impingir, quando essa realidade é feita de mentira e de inverdades e que, por isso mesmo, denunciadas devem ser.
Aliás, em democracia, chega a ser crime não o fazer em nome da justiça e igualdade de todos perante a lei, pois é inadmissível o que, à custa do “25 de Abril” e do voto popular muitos têm galgado, pondo-se a salvo do atoleiro e da pouca-vergonha em que nos meteram e querem continuar a meter, completamente protegidos pelas leis que fazem (ou não fazem) e pelas impunidades políticas que os seus “cargos” lhe permitem.

É um imperativo moral fazer isto! Um dever cívico!

Pena é que a Igreja Católica, do seu púlpito, quer no Vaticano quer numa qualquer povoação de um qualquer lugar o faça, seja que membro for ou que funções ocupem, até mesmo os leigos e, particularmente, os que se dizem “praticantes-militantes”.
Incrível esta acomodação aos cargos e aos “lugarzinhos marcados”!
Relendo Eça de Queirós, sempre com uma inteligência e perspicácia fabulosas, de facto, mais uma vez concluo quão lentos temos sido ou andado há tantos séculos em matéria de intervenção e exigência cívica, política e governativa!

Em 1867, no “Distrito de Évora “dizia:

Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações. A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse. A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva. À escalada sobe todos os homens inteligentes, nervosos, ambiciosos (...) todos querem penetrar na arena, ambiciosos dos espetáculos cortesãos, ávidos de consideração e de dinheiro, insaciáveis dos gozos da vaidade.

D. Januário Torgal Ferreira, o bispo das Forças Armadas, diz que há «diabinhos negros» no atual Governo, dizendo que “Há jogos atrás da cortina, habilidades e corrupção. Este Governo é profundamente corrupto nestas atitudes a que estamos a assistir", frisou, acrescentando: "Nós estamos numa peregrinação em direção a Bruxelas e quando tudo estiver pago daqui de Portugal sai uma procissão de mascarados a dizer: vamos para um asilo, salvem-nos".

Mas, D. Januário, se me permite, se estes são negros, os outros negros foram, pois, como todos sabemos e por aquilo que nos provocaram, nenhum deles tem desculpa pelo que fez ou permitiu que se fizesse!

O registo crítico relativamente ao Governo não é uma novidade, mas os termos utilizados por D. Januário Torgal Ferreira nunca tinham sido tão fortes.
Na última noite, o bispo das Forças Armadas disse que por comparação com alguns dos atuais membros do Governo, os anteriores eram uns «anjos ao pé destes diabinhos negros que acabam de aparecer».
Há alguns meses, este bispo já tinha comparado Pedro Passos Coelho a Salazar.
Contactada pela TSF, fonte do executivo disse que as palavras do bispo não mereceram qualquer tipo de reação.

"O problema é civilizacional, porque é ético. Eu não acredito nestes tipos, em alguns destes tipos, porque são equívocos, porque lutam pelos seus interesses, porque têm o seu gangue, porque têm o seu clube, porque pressionam a comunicação social, o que significa que os anteriores, que foram tão atacados, eram uns anjos ao pé destes diabinhos negros que acabam de aparecer", frisou no programa Política Mesmo da TVI 24horas.


D. Januário tem sido uma voz ao lado da razão. Diferente, pela positiva, desassombrada, corajosa.

Espero que o continuem a deixar falar e que as suas palavras continuem a ser um alerta para o nosso povo, tão revoltado mas tão manso e tão apático.

De boas intenções e de diabinhos destes está o inferno cheio! Bem cheio!


nazaré oliveira


O direito ao delírio

A utopia é como o horizonte:
vemo-lo ao longe, nunca o alcançaremos, mas serve para que continuemos sempre a caminhar.

Smoke gets in your eyes

Uma cantora que sempre adorei ouvir! Patti Austin.
Aqui, num dos muitos e belíssimos trabalhos que tem. 
Simplesmente... fantástica!

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Mulheres martirizadas



Às vezes parece-nos um pesadelo imaginar que isto que vão ler continua a existir, em nome de tradições, culturas, religiões... Mas é verdade, sim, continuam a existir e a espalhar dor e revolta junto de mulheres, que, ainda crianças, adolescentes, são objeto de mutilação sexual, abusos continuados de toda a ordem, exploração e sevícias inimagináveis, violadas pelos maridos, proscritas tantas vezes pela comunidade e família...
Que horror de mundo, este, marcado (também) pela cultura da violência e pela insistente defesa de tradições a qualquer preço!
Felizmente que as organizações de Direitos Humanos e, particularmente, organizações de defesa das mulheres (e crianças) ganham cada vez mais mais visibilidade e a adesão de gente cada vez mais farta de religião com sofrimento e de cultura com crueldade!
Mesmo assim, a luta pela mudança de mentalidade(s) e a mentalidade em si, é uma das muitas batalhas difícil de travar na atualidade, sobretudo quando enraizada em religiões que exigem o sacrifício e a dor dos mais vulneráveis, sujeitando-os, em nome dessa mesma religião e "valores tradicionais" à pior das torturas: esvaziar de dignidade as pessoas e sujeitá-las a uma morte lenta e anunciada.
Este é um dos muitos exemplos que me chegou, desta vez, através do jornal i de hoje : Zeinabou Mint Mohamed.

Zeinabou foi excisada poucos meses depois de nascer, prometida aos cinco, noiva aos onze e forçada a um casamento combinado aos 13 anos. O seu inferno ainda não acabou.
Apesar disso Zeinabou ganhou coragem para usar a curta margem que dispõem do seu livre arbítrio: “Vivia bem, tinha um casamento rico, mas não era feliz. Eu não gosto de falar mal do meu país, algo que é sempre usado com segundas intenções, e devo mesmo dizer que a única coisa que mudaria eram os casamentos forçados” (…) “O meu casamento foi combinado pelos meus pais, no sentido de me garantirem uma vida confortável, com um marido bem colocado, mas eu só sonhava em acabar com aquele pesadelo”.
O convite de recordar a sua travessia e de a contar a um jornalista ocidental, embolava-lhe a voz e deixava o seu olhar escorregadio entre o copo de chá e a violência das suas memórias. “Tudo funciona de forma muito tradicional mas que, com aquela idade, não temos capacidade de contrariar. Certo dia o meu pai chamou-me e disse-me simplesmente: ‘Tu vais-te casar’. Uma semana depois conheci o senhor com quem o casamento estava combinado e soube que devia partir com ele para a sua cidade. Chorei, chorei, implorei ao meu pai para não me deixar ir, mas sem resultado. Ele tinha casado com a minha mãe tinha ela doze anos e, tal como eu, com uma grande diferença de idades.” Também a sua irmã mais velha havia saído de casa aos onze.
O casamento forçado é, de todas as práticas, aquela que mais é contestada, sobretudo pelas novas gerações. A origem destes comportamentos, não se circunscreve nem é resultado do Islão. A sua ancestralidade tem barbas bem mais antigas que qualquer profeta.
“Mudei de família, organizaram o casamento, e passei a ver a minha família apenas nas férias. Foi uma mudança horrível. Só pensava em voltar para casa. Sonhava, como todas as meninas de 13 anos, em casar com um príncipe por quem estivesse apaixonada”.
Zeinabou conta a sua história como se dela já não fizesse parte, narra o seu passado como se ele já não lhe pertencesse mesmo nos detalhes mais duros.
“O primeiro dia em que ele me mandou dormir com ele foi catastrófico. Não conhecia nada dos homens e o que me calhou como marido tinha quatro vezes a minha idade. Não sabia nada do que se ia passar ali. Ele veio e eu recusei-o mas ele não compreendeu. Dizia que era aquilo tinha de acontecer, que era isso que faziam as mulheres, que era o meu e o seu dever, e que se eu continuasse a recusar ele teria de chamar os amigos para me prenderem e para ele conseguir.”
A virgindade é algo fulcral no casamento tradicional. Poucos são os casamentos que se combinam sem estar implícita essa condição. Está previsto inclusive a anulação do casamento caso a mulher profane o negócio que a família celebrou com o seu marido. O uso da intimidade é tido como um abuso sem nome.
“Os seus amigos acabaram por vir, quatro deles. Agarram-me nos braços e nas pernas e ele finalmente conseguiu.” Com a excisão o desfloramento da mulher adquire contornos ainda mais violentos, uma vez que além da amputação do clitóris o sexo feminino é praticamente todo mutilado, deixando unicamente um pequeno orifício para urinar. O sexo feminino é reduzido à sua dimensão fisiológica sendo que as consequências são devastadoras quer do ponto de vista da saúde física quer do ponto de vista psicológico.
Zeinabou não considera ter sido violada na sua primeira experiência sexual, apesar de subjugada por quatro homens e tomada à força pelo marido: “Ele fez o que tinha de fazer. É assim. Eu não desejava estar ali nem passar por aquilo, tinha nojo dele, mas a verdade é que ele não tinha outra possibilidade. Era o seu dever como marido”.
Na primeira tentativa, conta, acabou por desmaiar. “Estava a sangrar muito e ele não encontrava o caminho”. Levada ao hospital para ser composta, volta a casa com um diagnóstico de infecção urinária e medicada para o efeito. “Estava com uma infecção e fiquei três dias a tomar medicamentos. Estava cheia de dores. Não me conseguia sentar e custava-me muito dormir.”
Passados poucos dias tudo se voltou a repetir, a repetir, a repetir, tantas vezes quantas fossem preciso até engravidar. Zeinabou, antes ainda de provar a adolescência, foi-se adaptando à sua função social de esposa e à sua contorcida condição de mulher. “Eu odeio-o, sinto repulsa, cada vez que me lembro dele e do que ele me fez.”
O filho nasceu quando tinha quinze anos e a partir daí conseguiu passar a rejeitá-lo, algo que se revelou mais fácil por nunca ter aceite a tradição da alimentação forçada e estar longe dos padrões de beleza que vigoram no imaginário masculino mauritano. “Eu não engordava, rejeitava a alimentação e a partir desse dia nunca mais tive de estar com ele. O meu pai já tinha tentado mas nunca conseguiram engordar-me. Eu recusava, vomitava sistematicamente. Chegaram a mandar-me para um sítio só para engordar, onde se vomitasse tentavam obrigar-me a comer tudo outra vez.”
Acabaria por continuar casada até aos dezoito anos, “altura em que ele foi apanhado a trair-me e eu pude pedir o divórcio”.
Quando assim é, é dado um período de reflexão onde a mulher deve viver em reclusão, na casa dos pais, afastada de todo e qualquer contacto social, para um e o outro ponderarem se querem mesmo levar o divórcio até ao fim. A Zeinabou não lhe custou a clausura. Era o último passo para a liberdade. “Nesse período ele mudou de ideias, voltou a oferecer o dote, mas eu não aceitei voltar para ele apesar da vontade da minha família mas eu só queria deixar aquela casa.”
O divórcio, para além de todas estas condições, implica ainda um último sacrifício. As mulheres que sejam mães de homens têm de abrir mão do seu filho. “Tive um filho com ele, que ficou com ele porque era homem e desde o divórcio que nunca mais o vi”.
Ao virar os vinte anos saiu de casa pelo seu pé e passou a viver de biscates entre Nouakchott e Dakar. “O dinheiro que o meu marido teve de pagar pelo divórcio não durou muito tempo, é uma ajuda muito pequena para começar a vida”.
Com os estudos médios praticamente acabados mas sem a conclusão do exame final, com uma formação profissional em informática e com fluência de duas línguas estrangeiras, não é fácil para Zeinabou encontrar trabalho. “Fui jornalista seis meses, onde fazia a crónica do tribunal, mas acabei por ser despedida”.
Sonha que um dia ainda voltará a casar, desta feita “com um homem pelo qual esteja apaixonada”, e conta que a mudança de mentalidades será sua aliada. “Alguns homens na Mauritânia já não ligam tanto a isso, mas mesmo assim não é fácil. Eu já estou a ficar velha e já fui casada”.
Eu sou muçulmana, não bebo álcool, só como carne halal e acho mal que os muçulmanos não sigam o Islão mas não posso ser a favor do que vivi.”

Até quando vai continuar esta morte lenta, Zeinabou Mint Mohamed? Até quando?


nazaré oliveira

domingo, 15 de julho de 2012

Alemanha? Haja vergonha!

Em 1953, a Alemanha de Konrad Adenauer entrou em default, falência, ficou Kaput, ou seja, ficou sem dinheiro para fazer mover a actividade económica do país. Tal qual como a Grécia actualmente.

A Alemanha negociou 16 mil milhões de marcos em dívidas de 1920 que entraram em incumprimento na década de 30 após o colapso da bolsa em Wall Street. O dinheiro tinha-lhe sido emprestado pelos EUA, pela França e pelo Reino Unido.

Outros 16 mil milhões de marcos diziam respeito a empréstimos dos EUA no pós-guerra, no âmbito do Acordo de Londres sobre as Dívidas Alemãs (LDA), de 1953. O total a pagar foi reduzido 50%, para cerca de 15 mil milhões de marcos, por um período de 30 anos, o que não teve quase impacto na crescente economia alemã.

O resgate alemão foi feito por um conjunto de países que incluíam a Grécia, a Bélgica, o Canadá, Ceilão, a Dinamarca, França, o Irão, a Irlanda, a Itália, o Liechtenstein, o Luxemburgo, a Noruega, o Paquistão, a Espanha, a Suécia, a Suíça, a África do Sul, o Reino Unido, a Irlanda do Norte, os EUA e a Jugoslávia.

As dívidas alemãs eram do período anterior e posterior à Segunda Guerra Mundial. Algumas decorriam do esforço de reparações de guerra e outras de empréstimos gigantescos norte-americanos ao governo e às empresas. Durante 20 anos, como recorda esse acordo, Berlim não honrou qualquer pagamento da dívida.

Por incrível que pareça, apenas oito anos depois de a Grécia ter sido invadida e brutalmente ocupada pelas tropas nazis, Atenas aceitou participar no esforço internacional para tirar a Alemanha da terrível bancarrota em que se encontrava.

Ora os custos monetários da ocupação alemã da Grécia foram estimados em 162 mil milhões de euros sem juros. Após a guerra, a Alemanha ficou de compensar a Grécia por perdas de navios bombardeados ou capturados, durante o período de neutralidade, pelos danos causados à economia grega, e pagar compensações às vítimas do exército alemão de ocupação.

As vítimas gregas foram mais de um milhão de pessoas (38 960 executadas, 12 mil abatidas, 70 mil mortas no campo de batalha, 105 mil em campos de concentração na Alemanha, e 600 mil que pereceram de fome). Além disso, as hordas nazis roubaram tesouros arqueológicos gregos de valor incalculável.

Qual foi a reação da direita parlamentar alemã aos atuais problemas financeiros da Grécia? Segundo esta, a Grécia devia considerar vender terras, edifícios históricos e objetos de arte para reduzir a sua dívida.

Além de tomar as medidas de austeridade impostas, como cortes no sector público e congelamento de pensões, os gregos deviam vender algumas ilhas, defenderam dois destacados elementos da CDU, Josef Schlarmann e Frank Schaeffler, do partido da chanceler Merkel. Os dois responsáveis chegaram a alvitrar que o Partenon, e algumas ilhas gregas no Egeu, fossem vendidas para evitar a bancarrota.            

"Os que estão insolventes devem vender o que possuem para pagar aos seus credores", disseram ao jornal "Bild". Depois disso, surgiu no seio do executivo a ideia peregrina de pôr um comissário europeu a fiscalizar permanentemente as contas gregas em Atenas.

O historiador Albrecht Ritschl, da London School of Economics, recordou recentemente à "Spiegel" que a Alemanha foi o pior país devedor do século XX. O economista destaca que a insolvência germânica dos anos 30 faz a dívida grega de hoje parecer insignificante.

No século XX, a Alemanha foi responsável pela maior bancarrota de que há memória", afirmou. "Foi apenas graças aos Estados Unidos, que injectaram quantias enormes de dinheiro após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, que a Alemanha se tornou financeiramente estável e hoje detém o estatuto de locomotiva da Europa. Esse facto, lamentavelmente, parece esquecido", sublinha Ritsch.             

O historiador sublinha que a Alemanha desencadeou duas guerras mundiais, a segunda de aniquilação e extermínio, e depois os seus inimigos perdoaram-lhe totalmente o pagamento das reparações ou adiaram-nas.            

A Grécia não esquece que a Alemanha deve a sua prosperidade económica a outros países.

Por isso, alguns parlamentares gregos sugerem que seja feita a contabilidade das dívidas alemãs à Grécia para que destas se desconte o que a Grécia deve atualmente.



Sérgio Soares, jornalista português