segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Igreja Católica, Moral, Sexualidade, Família...


Jesus Cristo, o jovem, o homem, cuja simplicidade e sabedoria se traduziu na constante reconciliação e socialização com todos os outros, não aceitaria, seguramente, orientações destas para a sua Igreja, a Igreja dos homens e não das pedras, como parece que andam ultimamente a fazer e a defender.
Leio estas palavras e, confesso, não entendo o temor, o clamor que propagam, o retrocesso sociológico e até civilizacional que auguram e prefiguram. Ou entendo?
Não se constrói nada de bom sem confiança, sem  liberdade responsável, sem alegria. Não se vive feliz a medo, do mesmo modo que não somos felizes só para nós mas para os outros, nos quais nos realizamos precisamente como seres capazes de amar, perdoar, dando e recebendo, aperfeiçoando-nos, nessa procura constante de um mundo melhor cuja construção em nós principia.
A ameaça do pecado, do "pecado institucionalizado" pela Igreja, volta novamente a pairar nas relações da mesma com os fíéis, como se a Contrarreforma e as disposições pós-tridentinas voltassem e a estagnação cultural que provocaram também.

Valha-nos Deus?


Nazaré Oliveira


06 de Fevereiro de 2018

Nota para a receção do capítulo VIII da exortação apostólica 'Amoris Laetitia'

1. Na exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia sobre o amor na família (AL), publicada a 19 de março de 2016, o Papa Francisco dá-nos o quadro geral da compreensão cristã do matrimónio e da família e oportunas indicações sobre a respetiva formação e acompanhamento. No capítulo VIII – Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade - não esquece as situações de fragilidade, especialmente as assim chamadas “irregulares”, em que ao matrimónio sucedeu a rutura e um casamento civil. Também estas deverão ser acompanhadas: «Os sacerdotes têm o dever de acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo» (AL, 300).

É o que pretendo fazer com esta Nota, aludindo diretamente a três documentos autorizados: a Amoris Laetitia, a correspondência entre os Bispos da Região Pastoral de Buenos Aires e o Papa Francisco e as indicações dadas aos sacerdotes da Diocese do Papa (Roma) pelo seu cardeal-vigário. Naturalmente, devem ler-se estes documentos na íntegra.

Além do mais que se pode e deve fazer no âmbito eclesial, incluindo o tribunal diocesano, atenda-se ao seguinte: «O diálogo com o sacerdote, no foro interno, concorre para a formação de um juízo correto sobre aquilo que dificulta a possibilidade duma participação mais plena na vida da Igreja e sobre os passos que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na própria lei não há gradualidade (cf. Familiaris Consortio, 34), este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. Para que isto aconteça, devem garantir-se as necessárias condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca da vontade de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita à mesma» (AL, 300).

E ainda, no que à formação da consciência respeita: «É claro que devemos incentivar o amadurecimento de uma consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde objetivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal objetivo. Em todo o caso, lembremo-nos que este discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais plena» (AL, 303).

É nesta linha que o Papa considera: «Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente -, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja» (AL, 305). Este trecho segue na nota de rodapé 351: «Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos.»

Reparemos no caráter restrito (em certos casos) e condicional (poderia) da frase. E o Papa ainda insiste: «Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza. […] Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falhanços é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e assim evitar as ruturas»» (AL, 307).               


2. A 5 de setembro de 2016 os Bispos da Região Pastoral de Buenos Aires publicaram uma Nota com Critérios básicos para a aplicação do capítulo VIII da Amoris Laetitia. Em Carta desse mesmo dia o Papa agradeceu o documento, nestes termos: «O texto é muito bom e explicita cabalmente o sentido do capítulo VIII da Amoris Laetitia. Não há outras interpretações». A recente publicação oficial destes documentos em Acta Apostolicae Sedis, CVIII/10 (2017) p. 1071 ss, requer-nos a indispensável receção. Os textos foram publicados em português em Lumen, setembro/outubro de 2016. p. 73 ss.

A Nota, assim autorizada, dá-nos uma sequência de aplicação do capítulo de que sublinho as seguintes passagens:

a) Quanto à finalidade: «Em primeiro lugar, recordamos que não convém falar de “autorizações” para aceder aos sacramentos, mas de um processo de discernimento acompanhado por um pastor. É um discernimento “pessoal e pastoral” (AL, 300)». E ainda: «Este caminho não acaba necessariamente nos sacramentos, mas pode orientar-se para outras formas de uma maior integração na vida da Igreja: uma maior presença na comunidade, a participação em grupos de oração ou reflexão, o compromisso nos diversos serviços eclesiais, etc. (cf. AL 299).»

b) Quanto ao processo: «… pode-se propor o compromisso em viver em continência. A Amoris laetitia não ignora as dificuldades desta opção (cf. nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, quando se falhe nesse propósito (cf. nota 364, segundo o ensinamento de S. João Paulo II ao Cardeal W. Baum, de 22/03/1996)». Continuando: «Noutras circunstâncias mais complexas, e quando não se pôde obter uma declaração de nulidade, a opção mencionada pode não ser de facto fatível. Não obstante, é igualmente possível um caminho de discernimento. Quando se chega a reconhecer que, num caso concreto, há limitações que atenuam a responsabilidade e a culpabilidade (cf. 301-302), particularmente quando uma pessoa considere que cairia numa ulterior falta, prejudicando os filhos da nova união, a Amoris Laetitia abre a possibilidade do acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia (cf. notas 336 e 351). Estes sacramentos, por sua vez, dispõem a pessoa a prosseguir amadurecendo e crescendo com a força da graça.»

c) Entretanto, a Nota prossegue: «Todavia, há que evitar entender esta possibilidade como um acesso não restrito aos sacramentos, ou como se qualquer situação o justificasse. O que se propõe é um discernimento que distinga adequadamente cada caso. Por exemplo, requer especial cuidado “uma nova união que vem de um recente divórcio”, ou “a situação de alguém que reiteradamente falhou nos seus compromissos familiares” (AL, 298). Também quando há uma espécie de apologia ou de ostentação da própria situação “como se fizesse parte do ideal cristão” (AL, 297). Nestes casos mais difíceis, os pastores devem acompanhar com paciência, procurando algum caminho de integração (cf. AL, 297, 299). […] Quando houve injustiças não resolvidas, o acesso aos sacramentos é particularmente escandaloso.»

d) A estas observações, juntam-se as seguintes: «Pode ser conveniente que um eventual acesso aos sacramentos se realize de modo reservado, sobretudo quando se prevejam situações conflituosas. Todavia, simultaneamente, não se deve deixar de acompanhar a comunidade para que cresça no espírito de compreensão e de acolhimento, sem que isso implique criar confusões no ensino da Igreja sobre o matrimónio indissolúvel.»

e) O discernimento continuará ainda, sem desistir da proposta matrimonial cristã na sua inteireza: «O discernimento não se fecha, porque “é dinâmico e deve permanecer sempre aberto a novas etapas de crescimento e novas decisões, que permitam realizar o ideal cristão de modo mais pleno” (AL, 303), segundo a “lei da gradualidade” (AL, 295) e confiando na ajuda da graça.»

Podemos concluir que, também para os Bispos signatários desta Nota, o discernimento não se deterá no que aconteceu ou ainda acontece, devendo caminhar para a adequação plena à verdade evangélica sobre o matrimónio: cf. Mt 5, 31-32; 19, 3-9; Mc 10, 2-12; Lc 16, 18.


3. Logo de seguida, a 19 de setembro de 2016, o então Cardeal Vigário do Papa para a Diocese de Roma, Agostino Vallini, dissertou sobre o tema no respetivo Congresso Pastoral. Sobre estes casos e o papel dos sacerdotes, que não substituem nem desacompanham as consciências, dispôs o seguinte: «Como deve ser entendida esta abertura? Certamente não no sentido de um acesso indiscriminado aos sacramentos, como por vezes acontece, mas de um discernimento que distinga adequadamente caso por caso. Quem pode decidir? Do teor do texto e da mens do seu Autor, não me parece que haja outra solução a não ser a do foro interno. De facto, o foro interno é o caminho favorável para abrir o coração às confidências mais íntimas e, se se tiver estabelecido no tempo uma relação de confiança com um confessor ou com um guia espiritual, é possível iniciar e desenvolver com ele um itinerário de conversão longo, paciente, feito de pequenos passos e de verificações progressivas. Portanto, não pode ser senão o confessor, a certa altura, na sua consciência, depois de muita reflexão e oração, a ter de assumir a responsabilidade perante Deus e o penitente, e pedir que o acesso aos sacramentos se faça de forma reservada. Nestes casos, não termina o caminho de discernimento (cf. AL, 303: discernimento dinâmico) para se alcançarem novas etapas em ordem ao ideal cristão pleno.» E acrescentou: «Precisamente a delicadeza de saber discernir, caso por caso, a vontade de Deus sobre essas pessoas, pede-nos a nós, sacerdotes, que nos preparemos bem para sermos capazes de tomar essas graves decisões». Esta preparação é extensiva a «agentes pastorais leigos» (cf. citado número de Lumen, p. 93-94).


4. Insistindo no acolhimento cordial e respeitoso de todas as pessoas, especialmente nos casos referidos, o Papa Francisco pretende sobretudo ressaltar o valor do matrimónio cristão e a necessidade de o preparar e acompanhar. É uma insistência retomada ao longo de toda a Amoris laetitia, como se lê em trechos tão claros como este: «Como cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimónio, para não contradizer a sensibilidade atual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer» (AL, 35).

Quer antes quer depois da celebração do matrimónio, o Papa Francisco refere o seu caráter vinculativo: «Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros» (AL, 211). E quase concluindo: «Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino» (AL, 315).

Quem seguir o magistério do Papa Francisco sobre o matrimónio dar-se-á conta de tal insistência. Insistência que devemos compartilhar, para sermos fiéis à sua intenção. Ainda muito recentemente: «É sabido como a família, sobretudo no Ocidente, é considerada, infelizmente, uma instituição superada. Em vez da estabilidade de um projeto definitivo, preferem-se ligações fugazes. Ora não se mantém de pé uma casa construída sobre a areia de relacionamentos frágeis e volúveis; mas é preciso a rocha, sobre a qual assentar bases sólidas. E a rocha é precisamente aquela comunhão de amor, fiel e indissolúvel, que une o homem e a mulher, comunhão essa que tem uma beleza austera, um caráter sacro e inviolável e uma função natural na ordem social» (Discurso ao corpo diplomático, in L’Osservatore Romano, ed. port., 11 de janeiro de 2018, p. 10).        


5. Com tudo isto presente, indico algumas alíneas operativas: a) Acompanhar e integrar as pessoas na vida comunitária, na sequência das exortações apostólicas pós-sinodais Familiaris Consortio, 84, Sacramentum Caritatis, 29 e Amoris Laetitia, 299 (cf. apêndice). b) Verificar atentamente a especificidade de cada caso. c) Não omitir a apresentação ao tribunal diocesano, quando haja dúvida sobre a validade do matrimónio. d) Quando a validade se confirma, não deixar de propor a vida em continência na nova situação. e) Atender às circunstâncias excecionais e à possibilidade sacramental, em conformidade com a exortação apostólica e os documentos acima citados. f) Continuar o discernimento, adequando sempre mais a prática ao ideal matrimonial cristão e à maior coerência sacramental.


Reunião de Vigários, 6 de fevereiro de 2018

+ Manuel, Cardeal-Patriarca



Apêndice:
·         S. João Paulo II, Familiaris Consortio, 84: «Juntamente com o Sínodo exorto vivamente os pastores e a inteira comunidade dos féis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança.»


·         Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 29: «… os divorciados recasados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da Palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos.»


·         Francisco, Amoris Laetitia, 299: «Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que quiseram afirmar que “os batizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo. A lógica da integração é a chave do seu acompanhamento pastoral, para saberem que não só pertencem ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas podem ter disso mesmo uma experiência feliz e fecunda. São batizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama neles dons e carismas para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais das diferentes formas de exclusão atualmente praticadas em âmbito litúrgico, pastoral, educativo e institucional possam ser superadas. Não só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afetuosamente deles e encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho. Esta integração é necessária também para o cuidado e a educação cristã dos seus filhos, que devem ser considerados o elemento mais importante”.»


in http://www.patriarcado-lisboa.pt/site/index.php?id=8626~


domingo, 4 de fevereiro de 2018

Ranking das escolas portuguesas



Título do artigo: 
Os rankings escolares são como as omeletes – Alexandre Henriques

Por Rui Cardoso in http://www.arlindovsky.net/2018/02/opiniao-os-rankings-escolares-sao-como-as-omeletes-alexandre-henriques/



Os rankings escolares são como as omeletes
Em primeiro lugar, quero agradecer ao jornal PÚBLICO este exercício de liberdade, em segundo lugar, reconhecer que os seus profissionais passaram horas e horas a analisar resultados para que todos nós conhecêssemos os rankings escolares.

Caros jornalistas e leitores, permitam-me a provocação…

Qual é a diferença entre a escola 320 e a escola 381 (garanto-vos que nem fui ver quais são!)? Será que a escola 320 é melhor, efetivamente, do que a escola 381? Atenção que ao dizer escola não me refiro a um dado momento cristalizado num exame mas sim a toda a comunidade escolar feita de alunos, professores, pais, encarregados de educação, funcionários e diretores. É que os rankings, direta ou indiretamente, passam uma imagem simplista e extremamente redutora – a escola 320 é melhor do que a escola 381.

Os rankings são imagem, os rankings são ego, os rankings são humilhação, os rankings são uma parte ínfima da realidade. Não acreditam?

Pois bem… os rankings mostram o aluno que gastou centenas de euros em explicações?

Os rankings mostram o aluno que esteve exposto ao frio e ao calor, quer na escola, quer em casa?

Os rankings mostram o aluno que sofreu privações de todo o género?

Os rankings mostram o aluno que assistiu ao pai bater na mãe, aos irmãos que teve de cuidar, enquanto abdicava do seu tempo para se preparar devidamente para o exame?

Os rankings mostram o aluno que teve como colegas alunos indisciplinados ou professores que não conseguiram dominar a turma?

Os rankings mostram o aluno que esteve inserido em turmas pequenas/grandes?

Os rankings mostram o aluno que não teve professor durante semanas/meses?

Os rankings mostram o aluno que anulou a matrícula?

Os rankings mostram o aluno retido?

E podia continuar…

Lembro-me, como se fosse hoje, de uma conversa que tive com um diretor que, tendo visto a sua escola subir em flecha nos rankings escolares, disse: “Alexandre, preferia mil vezes não ter uma taxa de reprovação de 30% no secundário, do que estar aqui a ser contactado pela comunicação social sobre o brilharete de ser subido umas centenas de lugares no ranking”.

Este ponto é muito importante e seria muito interessante colocar uma coluna com a percentagem de alunos retidos ou mesmo a percentagem de alunos que concluíram a escolaridade obrigatória sem qualquer reprovação.

E o que dizer da comparação, incomparável, da classificação externa com a interna? Talvez a população em geral desconheça, mas a classificação interna resulta do somatório de uma parcela que avalia o conhecimento – 60, 70, 80 % da nota total – a uma parcela que avalia atitudes e valores – 40, 30, 20% da classificação total. A classificação externa, ou seja, os exames, avaliam somente o conhecimento que, nessa situação, tem um peso de 100%. Então por que raio comparam as duas avaliações? Se nem os critérios de avaliação interna são iguais entre escolas?!

Portanto, comparar o que não é comparável é um absurdo total, uma falácia, ou como se costuma dizer na política, uma não verdade.

A escola é muito mais, mas mesmo muito mais do que uma pauta. Enquanto professor, valorizo tanto aquele aluno que supera as suas dificuldades para atingir uma classificação positiva como aquele que atinge uma classificação elevada. Tudo depende do ponto de partida, mas ambos estarão de parabéns!

Os rankings tornaram a escola escrava dos exames, tudo gira à sua volta. Os rankings e os exames deturpam aquilo que é essencial e a verdadeira obrigação da escola, ensinar/aprender, formando, indo ao encontro das caraterísticas individuais dos alunos, tornando-os melhores e mais preparados para a sociedade em geral. Os rankings e os exames tornaram-se um espetáculo mediático numa sociedade que transformou a Educação num negócio, onde se compara aqueles que têm os melhores ovos com aqueles que nem têm supermercado para os comprar…


Os rankings estão a mais, prejudicam a escola, uma escola que é de todos e devia ser defendida por todos.


sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Esperança na luta contra o cancro!



Análise ao sangue capaz de detectar e localizar oito tipos de cancro

Investigadores apresentam um teste não invasivo que usa a informação de dois biomarcadores: os níveis de proteínas associadas a cancro, bem como a presença de mutações genéticas no sangue.


Chama-se CancerSEEK e combina a análise do ADN com a detecção de oito proteínas associadas a oito tipos de cancros. O novo método é apresentado esta sexta-feira na revista Science por uma equipa liderada por cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, nos EUA. O objectivo deste teste não invasivo, que ainda terá de ser validado para chegar à prática clínica, é conseguir uma detecção precoce de vários cancros e a um baixo custo. Para já, foi usado em mais de mil doentes demonstrando uma sensibilidade que varia entre os 69 e 98%, dependendo do tipo de cancro.
Uma rápida pesquisa na internet leva-nos a várias notícias sobre projectos de investigação que procuram detectar o cancro (vários tipos de cancro) através de uma simples análise ao sangue. Uma equipa de investigadores apresenta agora o CancerSEEK que representa mais um avanço neste caminho para uma detecção simples (não invasiva) e precoce de cancro. “Há vários elementos novos no nosso estudo”, esclarece ao PÚBLICO Nickolas Papapdopoulos, autor principal do artigo e professor de oncologia e patologia no Centro de Cancro Kimmel na Universidade de Johns Hopkins.

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Assim, enumera o cientista, este é “um teste único, não invasivo, multi-analítico que avalia simultaneamente os níveis de oito proteínas de cancro e a presença de mutações genéticas associadas a cancro no sangue”.
A lista dos novos ingredientes deste método de diagnóstico não pára por aqui. “Este teste usa um pequeno mas robusto painel [de biomarcadores] para detectar mutações de genes associadas a cancro. Este pequeno painel é essencial para minimizar o número de falsos positivos e manter o teste acessível”, nota Nickolas Papapdopoulos, que acrescenta ainda que o CancerSEEK “determina com precisão a localização de um tumor, usando esta informação de várias fontes, ultrapassando a limitação actual dos testes existentes de biópsias líquidas”. Por fim, justifica que a abordagem multi-analítica usada foi essencial para desenvolver um teste de triagem com uma sensibilidade adequada, já que cada um dos marcadores não é suficiente, por si só, para detectar cancro.

Falta “refinar o teste”
O CancerSEEK foi testado em mais de mil doentes e para oito tipos de cancro: ovário, fígado, estômago, pâncreas, esófago, colorrectal, pulmão e mama. Além das oito proteínas para cada tipo de cancro, o painel de biomarcadores apoiou-se na detecção de mutações em 16 genes. Em alguns casos, o teste também deu informações sobre o tecido de origem do cancro. Os doentes envolvidos nesta investigação, já tinham sido diagnosticados com cancro pré-metastático com base nos sintomas da doença.

No artigo científico, os investigadores apresentam uma estimativa de custo deste teste de sangue para os oito tipos de cancro que, dizem, pode ficar abaixo dos 500 dólares (408 euros). Porém, estamos apenas a falar de uma estimativa a confirmar-se no futuro. “Para realmente estabelecer a utilidade clínica do CancerSEEK e demonstrar que pode salvar vidas, serão necessários estudos prospectivos de todos os tipos de cancro e numa grande população”, avisa Nickolas Papapdopoulos, que sublinha ainda que é necessário “explorar ainda mais a especificidade e sensibilidade num cenário de triagem mais realista e refinar o teste”.
O cientista antecipa ainda que outros biomarcadores para o cancro podem ser combinados para aumentar a sensibilidade e precisão do teste. “O nosso estudo estabelece o fundamento conceptual e prático para um exame de sangue único e multi-analítico para muitos tipos de cancro”, resume, frisando que existe ainda um longo caminho a percorrer até ao dia em que poderá ser comercializado.
Na opinião de José Luís Costa, investigador no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), no Porto, e professor do Departamento de Patologia e Oncologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, este trabalho (no qual não participou) “abre as portas para num futuro próximo se começar a pensar em detecção precoce de cancro”. Um assunto que, avisa, é “discutível do ponto de vista clínico”. “Estes investigadores do Johns Hopkins têm-nos habituado a trazer assuntos bastante relevantes, fazendo com que novos conceitos e possibilidades façam com que todo o campo de investigação dê passos em frente”, refere o cientista que actualmente se dedica à investigação de métodos menos invasivos para a detecção de cancro, como é o caso das biópsias líquidas que têm estado numa das frentes de investigação mais activas.
“A utilização do sangue periférico para identificar mutações tumorais com impacto clínico, isto é, com informação importante para a escolha terapêutica, tem sido introduzido na rotina oncológica nos últimos tempos. Aliás, nós no Ipatimup [Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto que faz parte do i3S] fazemos estes estudos há alguns anos com resultados muito positivos”, constata José Luís Costa.
Mas, confirma o cientista português, neste novo estudo há um avanço importante. “O que estes investigadores acrescentam com este estudo é trazerem uma camada adicional de informação obtida através da biopsia líquida. Além de identificarem mutações clinicamente relevantes, conseguem através da identificação de proteínas específicas identificar qual o órgão onde se encontra o tumor.” E, citando Bert Vogelstein, que é um dos autores do estudo e que o cientista português ouviu recentemente numa conferência científica, sintetiza que este estudo é mais um passo “para ligar a medicina de precisão com o rastreio e a prevenção, de modo a interceptar o cancro em estadios mais precoces e a maximizar as hipóteses de cura.”

19 de Janeiro de 2018, jornal PÚBLICO


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Dispositivo detecta cancro do ovário em poucos minutos através de gota de sangue

revista "Science"

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Raríssimas - o retrato de uma sociedade



A sopa envenenada
Como se comportamentos deste género não fossem o retrato de uma sociedade onde há uma escassa ética colectiva.

Este artigo não é sobre as “raríssimas”; ou seja, sobre o caso da associação com esse nome. Este artigo é sobre as vulgaríssimas; ou seja, sobre aquilo que este caso revela sobre a nossa sociedade, sobre os nossos comportamentos, sobre o modo como os media e os seus consumidores estão impregnados da sopa envenenada que é hoje a chamada “opinião pública”. O caso em si é fácil de descrever: numa instituição de solidariedade social, com obra reconhecida como meritória (podia não ser), a sua responsável (e certamente vários dos seus colaboradores, incluindo os “whistleblowers”, como é costume) abusou da sua situação para obter vantagens materiais, viver à custa dos dinheiros “solidários”, ter luxos, e empregar a família e amigos. À sua volta, uma rede de cumplicidades, envolvendo o poder político, e membros do Governo ou ajudaram a causa, sem cuidados, ou participaram no festim. Nalguns casos pode ter havido crimes, noutros comportamentos eticamente reprováveis. A instituição vivia encostada ao Estado (como quase tudo em Portugal) e recebia apoios da sociedade civil, parece que com alguma eficácia.
Uma reportagem da TVI denunciou o caso, os abusos e as cumplicidades. Fê-lo com equilíbrio e com matéria probatória sólida, incluindo depoimentos, emails e alguns filmes, uns feitos às escondidas, outros às claras. Do ponto de vista da deontologia jornalística, a única coisa que podia suscitar dúvidas eram os filmes que foram fornecidos juntamente com as outras denúncias por gente de “dentro”. Não é incomum no jornalismo de investigação este tipo de técnicas e há doutrina estabelecida sobre as regras a seguir. Neste caso, no documentário original, tudo o que lá está é mais do que justificado pelo interesse público da denúncia de um caso de claro abuso desta natureza. Na sequência deste documentário original seguiram-se as linhas de investigação e escrutínio, jornalístico e público, obrigatórias: a senhora foi afastada das suas funções, o membro do Governo envolvido demitiu-se (e se não se tivesse demitido devia ter sido demitido de imediato) e prossegue o trabalho de esclarecer se existem outras responsabilidades no Governo, quer por acção quer por omissão. A realidade tem mostrado que os membros do Governo e os outros políticos envolvidos não estão a sair-se muito bem das explicações que têm de dar. Esta parte está ainda em curso e deve ser inteiramente esclarecida, assim como os inquéritos judiciais e investigações por quem de direito.
Nada disto é incomum, é até muito vulgar, e consideravelmente consentido quando dentro de portas, e quando ou se esconde bem a mão, ou quando se distribui alguma coisa do bodo colectivo e “comem todos”. Até um dia. Nesse dia vai lá tudo deitar pedras, como se não se soubesse de nada, ou, um pouco por todo o lado, como se comportamentos deste género não fossem o retrato de uma sociedade onde há uma escassa ética colectiva, em parte porque somos ainda uma sociedade muito pobre, ou em que parte das pessoas saiu ainda há pouco tempo da pobreza, onde nunca na burocracia imperaram critérios de mérito, mas a cunha ou o patrocinato, onde esquemas de todo o tipo são tão comuns, no Estado, na política, nas empresas, nos bombeiros, nas casas paroquiais, nas escolas, nos quartéis, nos centros de saúde, um pouco por todo o lado. Talvez com menos gravidade, nem sendo muitas vezes crimes mas apenas abusos, mas com tanta trivialidade que não os vemos como culposos.
Significa isso que os portugueses não são honrados? Não, significa que são pobres, ou ainda que têm uma memória viva da pobreza, não sentem a coisa pública como sendo de todos, e sabem que, para empregar um filho, obter um papel na câmara, evitar pagar o IVA, passar à frente de uma fila, há um sistema de favores implantado que vive da complacência de quem se aproveita e da inveja de quem ficou de fora. E isto é de uma ponta à outra da sociedade. Desde os offshores “legais” ao planeamento fiscal, às compras para as cantinas, das empresas que fazem brindes para as campanhas eleitorais, até aos amigos e as empresas que arranjam sempre ser contratados sem concurso público, até ao autarca que “rouba mas faz” e a quem os mesmos que exorcizam a corrupção em cada palavra que dizem, afinal, votam.
Isto é corrupção, mas não só. É o retrato de uma sociedade disfuncional, muito desigual, onde quem tem acesso ao poder de gerir, ou de comprar, ou de vender, o faz quase sempre numa rede de amizades e cumplicidades, com proveito mútuo, e tão habitual que não merece condenação social. Até um dia, em que a complacência se substitui pela inveja. Nesse dia entra em cena aquilo a que chamei “a sopa envenenada”. Antes era a mesa de café onde quem estava à mesa era de uma honestidade férrea (até ao momento em que saia da mesa) e à volta, a começar pela mesa vizinha, era tudo ladrões, corruptos e desonestos. Agora a mesa de café é planetária e é nas sarjetas das redes sociais, onde o mesmo insuportável espírito domina os comentários e as entradas no Facebook. E é para esse público que hoje está o caso das “raríssimas”, agora investigado já não pelas regras jornalísticas, mas pelas da exploração demagógica e populista, pela exibição do pior que há nos seres humanos, da inveja social, da calúnia, do ressentimento, do bater nos que estão em baixo, e mesmo outro tipo de comportamentos pouco recomendáveis.
E o assunto está hoje assim nos media formais e informais: desequilibrado, com um overkill desproporcionado à gravidade dos factos e com violações sérias da privacidade das pessoas. Se é relevante que a pessoa A tivesse uma relação íntima com a pessoa B, isso pode ser dito com a obrigação da proporcionalidade e do respeito pela privacidade. Para se dar uma informação relevante não é preciso ter um exibicionismo voyeurista, que é uma coisa de outra natureza. Já para não falar de alguma elegância — tão bizarra palavra nos nossos dias —, mas também a noção de que humilhar e amesquinhar as pessoas coloca quem o faz no mesmo plano da senhora culpada destes abusos.
Acresce que o facto de a principal culpada dos desmandos ser uma mulher não é irrelevante. Pior ainda é uma mulher “insuportável”, arrogante, atractiva e muito senhora de si para parecer um perigo para os homens e para as mulheres que no fundo temem as mulheres deste tipo, ou pura e simplesmente temem as mulheres como se fossem amazonas. O sexismo facilitou e muito o incêndio dos comentários e há uma espécie de exorcismo contra a sedução implícita. Se não querem ouvir as sereias, coloquem cera nos ouvidos e não fiquem babados a ver a televisão e a vociferar de inveja, de todas as invejas.
É por isto que quase tudo para além do caso das “raríssimas” é muito mais triste do que as gambas e o BMW, quer pelo que está antes e a gente faz de conta que não vê, quer pelo que está depois em que a gente faz de conta que vê demais.

JPP

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Um texto lindíssimo de Jorge de Sena



"Como um presente de Natal, um texto lindíssimo de Jorge de Sena", assim escreveu Diana Andringa na sua pg de Facebook.

Vou partilhá-lo aqui no meu blogue. É fantástico!



Super Flumina Babylonis

A ascensão da estreita escada escura, e tão a pino, com os degraus muito altos e cambaios, era, sempre que voltava a casa, uma tortura. À força de equilíbrios, meio encostado à parede, cuja cal já se esvaíra havia muito e até nas suas costas, e apoiando em viés uma das muletas no extremo oposto do degrau de cima, ia subindo cuidadosamente, num resfolegar de raiva pela lentidão. Toda a unção adquirida na conversa com os frades de S. Domingos, a cujas prelecções regularmente assistia, ficando depois a discretear com eles, se perdia naquele regresso a casa, ao fim da tarde, e mal se recompunha no repouso à janela, sentado no banquinho baixo, comido o caldo, e ruminando memórias e tristezas, enquanto a velha mãe prosseguia intermináveis arrumos pontuados de começos de conversa, a que respondia com sorrisos e distraídos monossílabos ou com frases secas em que ripostava mais a si próprio que a ela mesma. Às vezes, ela insistia, repetindo um comentário, por uma resposta sua. Mas mesmo essa insistência não significava comunicação efectiva: ela apenas pretendia tranquilizar a própria consciência e o seu dó do filho envelhecido e doente, que a vida destruíra, com algumas palavras que lhe dirigisse, simulando uma conversa que não o deixasse entregue, perigosamente, aos solitários pensamentos, onde é sabido que o Inimigo especialmente se insinua. E não era dos pensamentos que ele tinha medo, mas dos vazios cada vez maiores que, entre os pensamentos, se faziam. Quando ela lhe falava, e sobretudo quando ela insistia, precisava não se deixar distrair pelas palavras que ouvia: ou logo, no fio interrompido das ideias que continuamente deslizavam como um rio revolto, se abria um vácuo tenebroso, um vórtice sombrio em que flutuavam farrapos de versos e de coisas vistas, e, mais no fundo, como que uma pequenina porta iluminada, ou um vidro posto sobre estranhas águas em que nadavam esquisitos seres, e que parecia um olho fito nele, pestanejando ou palpitando, não sabia bem, talvez que, sim, nem mesmo um olho, mas uma transparência marinha como os reflexos das ondas ao luar. A pequenina porta, que lhe fazia vertigens, nem sempre se mostrava. Na maior parte das vezes não havia mais que o poço em que se debruçava, ansioso de que a portinha se abrisse e tremente até ao arrepio pela frialdade que dela vinha. Fechando os olhos, cerrando-os com bastante força, conseguia então afugentar aquelas visões» ou aquela visão, sempre a mesma, que sonhava acordado. Porque dos sonhos tinha ódio. Pensar, devanear, lembrar, imaginar, mesmo supor como tudo poderia ter sido numa vida triunfante e num outro mundo, não era sonho, mas a certeza de que existia, de que as coisas se arrumavam por sua vontade, que a ordem delas e do Mundo era um desconcerto que ele organizava mentalmente. Quando dormia, não sonhava nunca. Não eram sonhos as coisas que então via, mas a continuação do mesmo poder e da mesma certeza, ou então tentações do demónio, como diziam os padres. Mas as tentações ele conhecia bem.. Não eram tentações da sua alma que Deus não deixaria que se perdesse nunca, a não ser naquele vórtice estranho onde parecia que Ele não penetrava. Como tentações? Que tentação era ter nos braços uma mulher que lhe escapara? Que tentação era matar, dormindo, um inimigo poderoso e inacessível? Que tentação era ver-se feliz num palácio, rico, respeitado, rodeado de servos e de admiradores, com uma mesa farta de bons petiscos e de bons vinhos, e com saúde e vigor para uns jogos de armas ou para uma bela amante pescada na rua, todos os dias uma diferente? Que tentação ver-se na Corte, com bom gibão de veludo e a gola de finas rendas, ouvindo os elogios dos seus pares, e recitando ou lendo o último poema escrito? Não eram tentações estas coisas, não, mas consolações piedosas da sua alma, a satisfação do que lhe fugira, a plenitude do que não tivera, a saciedade do que não bastara, a conquista do que jamais pudera ter sido seu. Pecado é sonhar com o futuro: desejar a mulher que se viu neste instante, querer com fúria o que é dado a outros, invejar furiosamente, como coisa que nos foi roubada, a felicidade alheia que está dançando, sem vergonha e sem respeito pela nossa miséria, diante dos nossos olhos que param a vê-la. Mas imaginar-se feliz no passado, com aquilo que fugidiamente o perpassara, e não fora nunca do tamanho da sua fome, não era tentação, não era um pecado, era, sim, a sua única riqueza, a sua única razão de esperar a morte, seco de amor, exangue de entusiasmos, descrente da pátria, destituído até da alegria de fazer versos. Os seus versos, agora, haviam-no abandonado. Haviam-se desfeito, como açúcar, no rio ininterrupto do pensamento, aonde antigamente flutuavam de súbito, como pedaços de ardente gelo, que um a um se atrelavam para dar um poema. E não tinha deles saudade alguma. Não fora nunca para si próprio que os escrevera. Para os outros, sim. Para que o ouvissem, para que o admirassem, para que o entendessem, para que vissem como tudo, na vida, tinha um sentido exacto que só ele era capaz de achar, uma arquitectura que não teria tido sem ele, uma beleza que não existe senão como a ideia que primeiro é pensada por quem é digno dela.
Empurrou a porta, e entrou. Contra o costume, a mãe não lhe apareceu, nem ele sentiu na casa ruído algum. Fechou a porta, foi até à mesa, e sentou-se na cadeira, encostando as muletas. Sentar-se era um alívio do cansaço, e uma nova tortura também. Mas a ausência da mãe, tão inabitual, tornou menos tortura a tortura de sentar-se ajeitando as partes inchadas e doloridas, acto que, com uma vergonha infinita, era obrigado a fazer diante dela, e que por isso não ajeitava bem, sentindo os olhos da velhinha fitos nele, horrorizados com a monstruosidade dos castigos reservados a quem se entrega aos pecados da carne, sem se manter puro como veio ao mundo. Ela, que, quando o marido voltava de uma viagem, só deixava que ele a beijasse depois de ter a certeza que não havia desembarcado em porto algum, desde muitos meses… Suspirando, sorriu para si mesmo. Na primeira viagem que fizera, ao embarcar-se para a Índia, ainda derrancado das orgias de noites consecutivas, destinadas a prevenir-se para tanto tempo de céu e mar e de conversa de homens, ele… Benzeu-se. Estas memórias eram tentações da carne. E nisso estava a diferença da poesia que escrevera na vida. Umas vezes escrevera na verdade para saber o que pensava. Mas outras vezes escrevera para possuir efectivamente, como, quando era moço, repetia de seguida o acto do amor, não porque desejasse, mas para sentir melhor que possuía, para ter a certeza de que possuía mesmo a marafona de que se esquecera durante a primeira vez. Agora, assim alquebrado e impotente, tudo o que pensava, se o escrevesse, lhe parecia que era só desta poesia que pecava contra o Santo Espírito, e que não era uma dádiva, uma oferta do seu corpo ao corpo em que entrava, mas uma rapina, uma avareza, uma maneira de devorar o próximo. E mesmo de tudo o que escrevera lhe parecia incerto que o tivesse sido abnegadamente, já que sempre ansiara pelo reconhecimento alheio, pelo triunfo, pela glória, pelos prémios, a ponto de contentar-se com o sorriso constrangido dos ignorantes a quem lia os poemas.
Levantou o olhar para a janela. No prédio fronteiro, viu o calafate sentado à mesa, que o observava amigavelmente por cima da escudela fumegante. Acenou-lhe de cabeça, e o outro fez com a mão um gesto largo, que terminou apontando o caldo numa oferta gentil. Correspondeu com um gesto como que de adeus, e desviou a vista. À varanda vieram encostar-se as duas crianças; não precisava de fitar Para saber. Nunca gostara de crianças, nunca pensara em tomar estado para tê-las suas. Talvez por isso mesmo é que tanto ou tudo da sua poesia ficara como aqueles filhos que não quisemos ter, e que depois se despegam de nós adivinhando um desapego de que nos arrependemos, mas que não deixa de ser um desapego mesmo arrependido. O amor para ele fora carne e espírito, tão carne, que nenhum espírito podia estar presente, e tão espírito, que nem toda a carne do mundo, usada dia e noite, chegava para contentá-lo. Até o fastio, que às vezes o afastava longamente de contactos carnais, era uma ardência insatisfeita, que se continha, suspensa e ameaçadora, à espera de esquecer que a carne era sempre igual, e os gestos do amor tão poucos que os sabia já de cor. Mas depois, ao fazê-los, era sempre, como na primeira vez, uma surpresa, uma ignorância curiosa, um receio tímido, uma insegurança doce, um pasmo juvenil, uma alegria nova, um encantamento frenético; era como na primeira iniciação, mas sem a perplexidade e a decepção de o amor não ser mais do que isso, quando a virtude do amor não está em ser mais do que é, mas em ser o prazer de não ser isso mesmo.
Novamente ergueu os olhos para a varanda fronteira. As crianças não estavam lá, e o homem, curvado para a escudela, comia o seu caldo. Aquele mistério da Encarnação, o frade hoje falara muito bem, explicando com eloquência o seu sentido. Mas o sentido da Encarnação não precisava ele que lho explicassem. Quem amara com a carne e com o pensamento como ele, quem escrevera do Amor como ele escrevera, e quem não gostara nunca de crianças, como ele, tinha da Encarnação uma experiência que o frade não tinha. Precisamente porque tudo se encarnara nele sem encarnar-se, e lhe devorara a própria carne, deixando-o aquele farrapo imundo que era agora, quem melhor sabia o que era a Encarnação? Ou, pelo menos, tanto quanto um homem pode sabê-lo? Sentir-se grávido de um poema, sentir-se fecundado por um relâmpago entrevisto, e ser um homem — é o mais que pode saber-se. Não o sabe a mulher que dá à luz, porque é delas dar à luz, às vezes sem ter amado. Não o sabe o homem que quer ter filhos, porque os pode fazer sem amor. Mas o poeta que praticou o amor até à destruição da carne, e escreveu poemas até que o espírito acha pouco a poesia, esse, sim, esse sabe o que Encarnação seja. Apenas, porém, o sabe. Mas não viveu a Encarnação, foi a Encarnação quem o viveu a ele. E é este o grande mistério, não o outro. E é a grande diferença entre um deus que se encarna, e o homem em quem a Encarnação se representa. Uma diferença que é, afinal, uma comédia, ou pode ser vista como uma comédia, porque todo o homem a quem isso aconteça é Anfitrião, um marido enganado pelo Júpiter que há nele.
Ficou vendo diante de si o palco iluminado, e as figuras declamando os versos. A porta rangeu, e os passinhos leves soaram atrás dele. A voz fininha e aguda começou a sua declamação desafinada.
— Esteve hoje cá o Padre Manuel à tua procura, e eu disse-lhe que hoje era dia de ires a São Domingos, e ele disse-me que não se tinha lembrado, e eu perguntei-lhe quando voltava, e ele respondeu que precisava perguntar-te do teu livro, mas não era pressa, voltava noutro dia, ou tu fosses procurá-lo amanhã ou depois. Que é que ele anda a fazer com o teu livro, sempre a perguntar-te coisas? Então um livro desses, que não é de coisas de Deus Nosso Senhor e da nossa santa religião, precisa que tu estejas sempre a explicar o que é isto e o que é aquilo, e a contar a tua vida, nem que ele fosse o teu evangelista? A Virgem Santíssima me perdoe, mas parece-me um grande pecado. E contar a vida às outras pessoas é um grande pecado da vaidade. A vida conta-se ao padre confessor, e faz-se a penitência que ele manda pelas nossas más palavras e obras, e pronto. E, à hora da morte, a gente conta o que ainda lembra ou fez entretanto, e o padre dá a absolvição, se fomos virtuosos e piedosos, e nunca faltámos aos nossos deveres para com Deus e a sua Igreja. Ah, veio também o criado do Senhor Rui Dias, do mando deste senhor, que tão teu amigo é, perguntar pela encomenda que te fez daquelas poesias del-rei David que Deus haja. E eu disse que tu ainda não acabaste e que logo acabas, e que tens trabalhado muito e até tens estudado com o Padre Manuel para que as palavras santas fiquem todas certas e nos seus lugares. E ele disse que o amo estava muito arreliado contigo, que havia mais que muitos meses que tinha feito a encomenda, e que tu não fazias nada, e que já tinha pago adiantado uma parte do trabalho. E eu disse que era verdade, que ele já tinha pago, mas que nestas coisas pagar adiantado alguma coisa é como dar o pano ao alfaiate, porque o alfaiate não pode fazer o gibão sem o pano, e tu não podias escrever sem comer. E disse-lhe que a tua tença estava atrasada e que não a pagavam, e que eu esperava muito da bondade do seu amo e do grande poder que lá tem no Paço que a tença fosse paga em dia, que bem a tinhas merecido de Sua Alteza pelos muitos serviços de teu pai que Deus tenha em descanso, e também pelos teus serviços, que se tinhas sido um rapaz sem juízo, e não tiveste sorte na vida, também eras um homem que escrevia livros, e sabias muitas coisas divinas e humanas, como o Senhor Padre Manuel me disse, e Frei Bartolomeu escreveu na licença que te deu…
— Frei Bartolomeu só disse que eu sabia muito de coisas humanas.
— Pois é. Porque saber de coisas divinas tu podias ter aprendido se tivesses estudado a valer, e tido juízo, que podias hoje até ser bispo e mais do que eles dois. Mas meteste-te com más mulheres e más companhias, e hoje é isso que se vê, e, em vez de seres tu a dar as licenças, és tu quem as vai pedir a eles. Se não fossem teus amigos e tu não lhes moesses a paciência, e não mostrasses como és um homem arrependido da má vida que teve, não ta davam, que isto de frades, Nossa Senhora me perdoe, se alguém me ouve. O teu pai é que se ria deles, e dizia que eram todos uns vadios, que só queriam comer e ter as mulheres dos outros. Abrenúncio, e por isso Deus o castigou com aquela desgraçada morte, que nem teve sepultura cristã. Mas tu podias ir procurar o Senhor Duque ou o Senhor D. Manuel, e lembrar-lhes que a tua tença está atrasada, e eles não há que não consigam, de tão grandes senhores que são, primos del-rei. Eu tive de sair para visitar a nossa comadre Joaquina que está outra vez com a sua dor e não tem ninguém que cuide dela, mas logo lhe disse que não podia demorar-me, porque hoje era dia de ires a São Domingos santificar a alma, que bem precisas, e logo voltavas com fome e querias a tua ceia, e ficavas aborrecido se eu não estivesse em casa quando chegasses, para te dar o caldo, e ela respondeu que não eras nenhuma criança que chorasse pelo peito da mãe, e eu disse-lhe que tu nunca tinhas chorado pelo peito da tua mãe, e é verdade também porque eu te dava logo de mamar mal tu abrias a boca para gritar. Mas que nunca choraste para mamar é a verdade, e só choravas depois, porque o meu leite era fraco e foi preciso trazer uma ama, e o teu pai queria que tu fosses criado com ama, porque não era da nossa condição que tu fosses criado ao peito de uma senhora como eu, esposa de um homem como ele, tudo gente de condição. Mas a condição que nós tínhamos era só o que ele ganhava, e Deus sabe como eu vivi depois que teu pai faltou e tu andavas lá por essas terras de gentios e de infiéis, por tanto tempo e eu sem saber se eras vivo ou morto, e só sabia quando chegavam as armadas e vinha alguém conhecido que me dava notícias tuas, e me dizia que tu tinhas ido para aqui e para ali, ou estavas não sei onde, que para mim todas aquelas Índias são o mesmo, e os nomes das terras são mesmo coisa do demónio, cruzes, de arrenegados para se entenderem. Muitas vezes eu pensava que me escrevias, mas tu nunca escrevias, e muitas pessoas me diziam que tu lá escrevias as cartas dos outros, que escrever bem tu sempre escreveste desde muito pequeno] mas punhas as coisas bonitas no papel para eles, e para mim nada. E eu ficava rezando a Sant’Ana e a Nossa Senhora e às vezes até mudava de santo para que nenhum se cansasse de me ouvir, sempre temendo que morresses nas guerras e nos naufrágios, ou dessas doenças que há lá, e a pensar que às vezes eu podia estar a rezar pela tua boa sorte e as rezas afinal servirem para te descontar os dias de Purgatório pelos teus pecados e leviandades, e o corpo que eu dei à luz estar comido dos peixes ou do gentio, sem sepultura cristã, como teu pobre pai que Deus haja e eu só soube tanto tempo depois. E a comadre Joaquina deu-me este pastel que aqui trago e que é de uma galinha que lhe deu a vizinha, ou uma meia galinha só, de que ela fez este pastel, e me disse que tinha outro e que te mandava este, mas queria que tu lhes escrevesses uma oração em verso a S. Crispim de que é muito devota, e eu disse que tu havias de escrever depois de comeres o pastel.
— Eu como o pastel, mas versos aos santos não faço.
— Deus meu, se alguém te ouve e pensa que tu não acreditas nos santos. A Santa Inquisição que nos livrou da maldade e da malícia dos inimigos da nossa Fé manda que se acredite nos santos, e eu bem sei que tu não acreditas, nunca te encomendas a eles, e é por pecado de orgulho, ao que me disse o Padre Manuel, quando eu lhe falei da minha aflição por tu não acreditares nos santos, e ele me respondeu que tu achas os santos pequenos de mais para ti, e não te contentas senão com Deus Nosso Senhor. Eu até fiquei arrepiada de pensar no perigo que é não ter um santo que nos proteja. Se não fossem o Senhor Duque e o Senhor D. Manuel e o Senhor Rui Dias e outros senhores assim, eu queria ver de que é que tu vivias, que el-rei nem saberia da tua existência. Deus me perdoe, mas não é que Deus não saiba de ti, porque ele sabe de todos nós e é um pai amantíssimo que não tira os olhos de nós. Mas está na sua divina majestade, ocupado em reger o Mundo, e nunca ninguém ganhou causas sem advogado. A mim a Senhora Sant’Ana nunca me desampara, eu nem sei o que seria de mim e de ti sem ela. Que este pastel é um milagre dela. Quando eu saí para visitar a comadre Joaquina, ia dizendo comigo que a Senhora Sant’Ana fizesse que eu não voltasse para casa com as mãos vazias e trouxesse algum petisco para o meu filho, e pedi mesmo um pastel de galinha, que era o mais certo, porque a comadre Joaquina sempre tem pastéis de galinha. E eu não prometi à Senhora Sant’Ana que tu farias o que a comadre pedisse, porque já te conheço, e não há contar contigo para coisa nenhuma que não seja comer o pastel. E por isso não faz mal que não faças os versos a S. Crispim, porque não foi promessa minha. A comadre é que disse que tu, se quisesses, podias fazer, que toda a gente dizia que eras muito bom dizedor, e que fazias logo os versos que te pediam. E eu respondi que isso seria dantes, porque agora tinhas uma encomenda muito boa, de grande rendimento, do Senhor Rui Dias, que nos fazia a honra de ser teu amigo, de pôr em verso os Salmos del-rei David que Deus haja, e que tu não escrevias nada, e até hoje o criado dele cá estivera a reclamar por causa do pagamento adiantado. Tu estás a dormir, tu não ouves o que eu digo? Come o teu caldo enquanto está quente e depois o pastel que é bem gostoso se for igual ao outro que a comadre tinha. Eu já ceei em casa dela, e estou sem apetite só de ver-te nesse estado, um rapaz tão forte e tão bonito como tu eras, que não havia moça que não se voltasse para te ver, nem homem que não se mordesse de inveja. E, quando o sol dava no teu cabelo, eu dizia comigo que o meu filho era como um rei com a coroa na cabeça, ou, Deus me perdoe, como um grande santo de resplendor dourado em dia de procissão. E ficava a ver-te ir pela rua abaixo, tão vaidoso que nem olhavas para trás, com a mão no punho da espada, e os passos tão firmes, Deus meu, que parecia que a terra era toda tua. Por essas e por outras é que as tuas desgraças começaram, com as arruaças e as brigas, e o mau feito, desgraça maior que todas, de acutilares o homem em Dia de Corpus Christi, aquele patife sem vergonha que te desgraçou e fez ir para a Índia e que merecia morrer em pecado, Deus me perdoe se sou eu quem peca. Está tão escuro já que vou acender a candeia. Mas o lume apagou-se e vou descer à vizinha a pedir-lhe lume. Deus Nosso Senhor tenha piedade de mim, velha e cansada, e com um filho homem, e sou eu quem tem de descer a escada para buscar o fogo que não há na minha casa. Abriu o olhar às trevas e ao silêncio. Conhecia tão bem os cantos da quadra, que era como se estivesse vendo a arca e o oratório com o raminho entalado, os quadrinhos de santos pendurados, a prateleira com os pratos em pé, a enxerga ao canto, onde ele dormia, a porta da alcova de sua mãe e a porta da cozinha. Via tudo com a mesma certeza e a mesma minúcia com que vira as naus do Gama navegando no mar, lá em baixo, vistas do Empíreo, com que vira Vénus abraçada a Júpiter e chorando, com que vira o Adamastor sair da nuvem grossa, com que vira o Veloso correndo pelo monte abaixo. Mas ele acutilara o Borges, porquê? Para que a vida lhe mudasse de rumo, para que ela tomasse um rumo de fatalidade, para que as índias lhe fossem impostas pela sua estrela, para que a sua estrela existisse. Erros meus, má fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente. Perdição. Amor somente. Como a poesia é falsa e verdadeira. Como ela diz não dizendo, e é não dizendo que diz. Como da nossa alma não sabemos nada antes de escrevê-la, e como não é dela que sabemos depois de ter escrito. A perdição procura-se, como um homem se despe para banhar–se no mar, a modos que Leandro atravessando o Helesponto. E o amor somente bastaria, como o momento em que tudo se esquece, tudo desaparece, tudo se evapora, ao calor que abrasa e que só dura um instante mas um instante em que o tempo se suspende, se petrifica num espaço e numa forma, e todo o verdadeiro espaço foge velozmente, correndo pelos tempos fora até que é ele o tempo que se suspendeu. Apenas como isso, porque é uma imagem do supremo amor, aquele que existe além do tempo e do espaço, além das esferas, além daquele poço terrível. Além ou aquém? E se esse amor não fosse mais do que uma imagem, uma essência última da sua própria vida?
Estranhamente, no silêncio e no fluxo dos pensamentos, o poço abriu-se insólito e translúcido na sua profundeza negra, com as pequeninas formas flutuantes, e uma subia, subia, tomando cor e feições de uma medusa terrífica. Mas a porta rangeu, e uma vaga claridade fez emergirem os objectos, como formas planas, sem sombras na luz fraca. Os passinhos soaram leves.
— A vizinha diz que, no intervalo antes de tu chegares, quando eu já tinha saído, veio cá também aquele doutor que te pediu as poesias para aquele senhor que não tem nome cristão, o Senhor D. Leonis. Hoje veio cá todo o mundo, até parece o Dia de Juízo. E ele que vai de viagem ficou com muita pena de não te ver, e disse-lhe que te deixava muitas lembranças e que queria muito que tu melhorasses de saúde, e ela respondeu que tu estavas mesmo muito acabado, e ele disse que tu não acabavas nunca, porque tu eras um grande poeta, um dos maiores que já tinha havido no mundo, assim uma coisa como nem sei quem ele disse. E ela riu-se muito, e disse-lhe que o Senhor Padre Manuel também dizia o mesmo, e que era tudo bondade deles, porque isso de poesias nunca davam nada a ninguém. Só que a ti deram a tença, mas foi por causa do livro impresso e pelos muitos serviços a el-rei que o teu pai prestou em sua pobre vida, e tu também. E ele respondeu que era sempre assim que as coisas aconteciam, que a glória só vinha muito tarde, e que os prémios, quando eram dados, nunca vinham pelo que a gente merecia mais. Eu acho que isto é descrer da infinita bondade de Deus Nosso Senhor, e não é muito respeitoso para com Sua Alteza que te deu a tença. O que é preciso é que tu vás ao Paço reclamar que não te pagam a tempo e horas, que estou cansada de me arrastar até lá, e sempre me perguntam porque tu não vais, e o outro dia o tesoureiro até me disse que era tudo história, que não ias porque tinhas morrido, e eu, se queria receber, tinha de pedir a el-rei a tença em meu nome. E tu não vais porque tens esse pecado de orgulho, e não queres que te vejam de muletas, a pedir que te paguem o que te devem. Eu é que estou cansada, e vou-me deitar que não posso mais comigo. Tem cuidado com a candeia, não gastes muito azeite, que está pela hora da morte, e bem sabes que tenho medo dos fogos e podes adormecer aí na mesa, não era a primeira vez, e a candeia pegar fogo à tua papelada, e à casa, Deus nos acuda e Santa Bárbara nos proteja. Se voltar cá o criado do Senhor Rui Dias, o que é que lhe digo? Nem me respondes, estás a cair de sono em cima da mesa. Tem cuidado com a candeia… Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia fazia, como uma auréola à volta de um centro ardente. Se o criado de Rui Dias lhe aparecesse, ou ele mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e namorado, querido e estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e damas, com que o calor poético se aumentava, e que agora não tinha espírito nem contentamento para nada… Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como uma via sacra da vida, 73 quintilhas como…
Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma tremura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele. Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o abandonara, receosa dos seus olhos de alma penetrantes que viam o fundo das coisas. O poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou a escrever… Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei… Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei…
E ficou escrevendo pela noite adiante.


Araraquara, 27 de Março de 1964.

A democratização dos textos primeiros da cultura portuguesa: O acontecimento editorial do ano



Com a devida vénia transcrevo o artigo de Beja Santos que saiu no programa "Vida Alternativa" da Rádio Zero:


Esperei até meados de Dezembro para avaliar a importância dos projetos editoriais mais relevantes. De tudo quanto apareceu no mercado livreiro nada se aproxima das “Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa”, com direção de José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, edição do Círculo de Leitores, início em 2017, projeto de fôlego, constituído por 80 obras em 30 volumes. O que aqui se dá à estampa são textos e documentos que revelam o pioneirismo em Portugal nos domínios da arte, ciências exatas e ciências humanas, na literatura, na música e noutros domínios do conhecimento. Falamos do mesmo Círculo de Leitores que anos atrás publicou pela primeira vez em Portugal todas as obras do padre António Vieira, empreendimento grandioso que estranhamente nem uma menção ou prémio recebeu. Este projeto envolveu um grande exército, 174 elementos entre investigadores, coordenadores dos volumes, consultores nacionais e internacionais, envolveu universidades nacionais e internacionais, centros de investigação e academias. Um labor sem precedentes e com resultados surpreendentes: os textos de todas as obras foram transcritos, fixados e criteriosamente atualizados a partir das suas versões primeiras.
Trinta volumes com uma seleção dos primeiros textos em português, de história, heráldica edificação moral e crónica biográfica, viagens e descobrimento, ética social e política, geografia e ecologia, e muitíssimo mais. É um registo admirável de 800 anos de história comum, estão aqui os fundamentos que podem permitir uma maior amplitude para o conhecimento da cultura portuguesa, ao alcance do chamado leitor médio., que em circunstância alguma teria acesso a estes textos primigénios. A propósito deste projeto, Carlos Fiolhais esclareceu numa entrevista o que há de transcendente nesta articulação entre a produção cultural e a ciência na história de Portugal: “Os Descobrimentos Portugueses dos séculos XV e XVI constituíram um prelúdio da Revolução Científica, que se deu no século XVII, com Galileu, Newton e outros grandes nomes. No empreendimento marítimo dos portugueses, que pode ser considerado uma primeira globalização, estavam já presentes a observação e a experiência, fundadas na curiosidade, que haveriam de presidir à Revolução Científica. Os portugueses encontraram novas terras, novas espécies minerais, zoológicas e botânicas e novas gentes, com culturas assaz distintas, e souberam reportar o que viram e o que viveram. Alguns instrumentos científicos introduzidos por cientistas seiscentistas, como o telescópio e o relógio mecânico, foram introduzidos na Índia, na China e no Japão pelos navegadores lusos. O mesmo se passou com os conhecimentos matemáticos, astronómicos e físicos do Ocidente, que foram nalguns casos traduzidos para línguas orientais. Mais tardem, no Iluminismo, ocorreu em Portugal uma ressuscitação da Ciência. E foi nessa altura que foram escritos em português os primeiros tratados de anatomia, de física, de química e de engenharia, que não estavam muito desfasados de obras similares que então surgiram noutras línguas nacionais”. O meso investigador dirá mais adiante que “a nossa preocupação foi mesmo oferecer os originais, pedindo a especialistas uma introdução integradora e as notas explicativas necessárias. Cada época histórica tem direito a uma leitura renovada dos textos fundadores da sua cultura e estava na hora de dar aos portugueses e a outros interessados um acesso fácil a esses textos, de modo a que pudessem fazer um juízo atualizado”.
No prefácio ao primeiro livro destas obras pioneiras, e dedicado a cantigas trovadorescas, prosa literária e documentação instrumental, os coordenadores lembram a dificuldade que existe em encontrar nas livrarias edições contemporâneas das obras dos sábios do Renascimento português, que se traduzia numa perda de autoestima cultural, classificado por muitos como o “atraso português”. E esclarece a organização dos 30 volumes, para aguçar o apetite aos leitores. E não se esquecem de anunciar a contingência deste projeto, a seleção não é definitiva nem completa, nele não entraram mais obras das disciplinas aqui representadas, e deixam uma mensagem para um projeto futuro: “Seria interessante fazer uma outra série com obras pioneiras de boa parte dos séculos XIX e XX, de modo a abarcar as áreas do saber que emergiram nessa época, nomeadamente as ciências naturais, a sociologia, a psicologia, a antropologia, a ciências políticas, entre outras”.
Falando dos primeiros textos em português, constata-se a preocupação em enquadrar o leitor quanto à seleção dos textos, situando a lírica, as suas origens, os poetas, as cantigas de diferentes tipos e temas, a prosa literária e os testemunhos escritos que têm a ver com compras-vendas, permutas, doações, testamentos, arrendamentos, e algo mais. O leitor será surpreendido pela beleza das cantigas profanas, pelas cantigas de Santa Maria, pela prosa literária e por um conjunto de documentos que registam a matriz da língua. Lê-se com emoção a cantiga de amigo “Eu, velida, não dormia” onde aparece uma expressão de todo enigmática “Edoi lelia doura”, que Herberto Helder escolheu para título de uma antologia de poesia portuguesa por ele organizada, entende-se que essa expressão era proveniente do árabe e significaria “hoje é a minha vez”. E é bem português o testamento de D. Afonso II, com data de 1214, que assim começa: “Eno nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e salvo, temente o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier reina dona Urraca, e de meus filios, e de meus vassalos e de todo meu reino, fiz mia manda per que, depois mia morte, mia molier e meus filios e meus vassalos e meu reino e todas aquelas cosas que Deus me deu en poder sten en paz e en folgancia”.
Há muitas décadas atrás, havia um recurso para suprir, com seríssimas lacunas, estas obras pioneiras, líamos alguns dos Clássicos da Sá da Costa, de saudosa memória. Este projeto é do maior alento, é um ambicioso grande arco sobre a nossa língua e a vastidão dos nossos conhecimentos.
Para um acontecimento editorial desta grandeza, o nosso agradecimento é coisa menor, um importante é chegar à biblioteca de todos nós.

Beja Santos, December 15th, 2017









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