A sopa envenenada
Como se comportamentos
deste género não fossem o retrato de uma sociedade onde há uma escassa ética
colectiva.
Este artigo não é sobre as “raríssimas”;
ou seja, sobre o caso da associação com esse nome. Este artigo é sobre as
vulgaríssimas; ou seja, sobre aquilo que este caso revela sobre a nossa
sociedade, sobre os nossos comportamentos, sobre o modo como os media e
os seus consumidores estão impregnados da sopa envenenada que é hoje a chamada
“opinião pública”. O caso em si é fácil de descrever: numa instituição de
solidariedade social, com obra reconhecida como meritória (podia não ser), a
sua responsável (e certamente vários dos seus colaboradores, incluindo os “whistleblowers”,
como é costume) abusou da sua situação para obter vantagens materiais, viver à
custa dos dinheiros “solidários”, ter luxos, e empregar a família e amigos. À
sua volta, uma rede de cumplicidades, envolvendo o poder político, e membros do
Governo ou ajudaram a causa, sem cuidados, ou participaram no festim. Nalguns
casos pode ter havido crimes, noutros comportamentos eticamente reprováveis. A
instituição vivia encostada ao Estado (como quase tudo em Portugal) e recebia
apoios da sociedade civil, parece que com alguma eficácia.
Uma reportagem da TVI denunciou o caso,
os abusos e as cumplicidades. Fê-lo com equilíbrio e com matéria probatória
sólida, incluindo depoimentos, emails e alguns filmes, uns feitos às
escondidas, outros às claras. Do ponto de vista da deontologia jornalística, a
única coisa que podia suscitar dúvidas eram os filmes que foram fornecidos juntamente
com as outras denúncias por gente de “dentro”. Não é incomum no jornalismo de
investigação este tipo de técnicas e há doutrina estabelecida sobre as regras a
seguir. Neste caso, no documentário original, tudo o que lá está é mais do que
justificado pelo interesse público da denúncia de um caso de claro abuso desta
natureza. Na sequência deste documentário original seguiram-se as linhas de
investigação e escrutínio, jornalístico e público, obrigatórias: a senhora foi
afastada das suas funções, o membro do Governo envolvido demitiu-se (e se não
se tivesse demitido devia ter sido demitido de imediato) e prossegue o trabalho
de esclarecer se existem outras responsabilidades no Governo, quer por acção
quer por omissão. A realidade tem mostrado que os membros do Governo e os
outros políticos envolvidos não estão a sair-se muito bem das explicações que
têm de dar. Esta parte está ainda em curso e deve ser inteiramente esclarecida,
assim como os inquéritos judiciais e investigações por quem de direito.
Nada disto é incomum, é até muito
vulgar, e consideravelmente consentido quando dentro de portas, e quando ou se
esconde bem a mão, ou quando se distribui alguma coisa do bodo colectivo e
“comem todos”. Até um dia. Nesse dia vai lá tudo deitar pedras, como se não se
soubesse de nada, ou, um pouco por todo o lado, como se comportamentos deste
género não fossem o retrato de uma sociedade onde há uma escassa ética
colectiva, em parte porque somos ainda uma sociedade muito pobre, ou em que
parte das pessoas saiu ainda há pouco tempo da pobreza, onde nunca na
burocracia imperaram critérios de mérito, mas a cunha ou o patrocinato, onde
esquemas de todo o tipo são tão comuns, no Estado, na política, nas empresas,
nos bombeiros, nas casas paroquiais, nas escolas, nos quartéis, nos centros de
saúde, um pouco por todo o lado. Talvez com menos gravidade, nem sendo muitas
vezes crimes mas apenas abusos, mas com tanta trivialidade que não os vemos
como culposos.
Significa isso que os portugueses não
são honrados? Não, significa que são pobres, ou ainda que têm uma memória viva
da pobreza, não sentem a coisa pública como sendo de todos, e sabem que, para
empregar um filho, obter um papel na câmara, evitar pagar o IVA, passar à
frente de uma fila, há um sistema de favores implantado que vive da
complacência de quem se aproveita e da inveja de quem ficou de fora. E isto é
de uma ponta à outra da sociedade. Desde os offshores “legais”
ao planeamento fiscal, às compras para as cantinas, das empresas que fazem
brindes para as campanhas eleitorais, até aos amigos e as empresas que arranjam
sempre ser contratados sem concurso público, até ao autarca que “rouba mas faz”
e a quem os mesmos que exorcizam a corrupção em cada palavra que dizem, afinal,
votam.
Isto é corrupção, mas não só. É o retrato
de uma sociedade disfuncional, muito desigual, onde quem tem acesso ao poder de
gerir, ou de comprar, ou de vender, o faz quase sempre numa rede de amizades e
cumplicidades, com proveito mútuo, e tão habitual que não merece condenação
social. Até um dia, em que a complacência se substitui pela inveja. Nesse dia
entra em cena aquilo a que chamei “a sopa envenenada”. Antes era a mesa de café
onde quem estava à mesa era de uma honestidade férrea (até ao momento em que
saia da mesa) e à volta, a começar pela mesa vizinha, era tudo ladrões,
corruptos e desonestos. Agora a mesa de café é planetária e é nas sarjetas das
redes sociais, onde o mesmo insuportável espírito domina os comentários e as
entradas no Facebook. E é para esse público que hoje está o caso das
“raríssimas”, agora investigado já não pelas regras jornalísticas, mas pelas da
exploração demagógica e populista, pela exibição do pior que há nos seres
humanos, da inveja social, da calúnia, do ressentimento, do bater nos que estão
em baixo, e mesmo outro tipo de comportamentos pouco recomendáveis.
E o assunto está hoje assim nos media formais
e informais: desequilibrado, com um overkill desproporcionado
à gravidade dos factos e com violações sérias da privacidade das pessoas. Se é
relevante que a pessoa A tivesse uma relação íntima com a pessoa B, isso pode
ser dito com a obrigação da proporcionalidade e do respeito pela privacidade.
Para se dar uma informação relevante não é preciso ter um exibicionismo
voyeurista, que é uma coisa de outra natureza. Já para não falar de alguma
elegância — tão bizarra palavra nos nossos dias —, mas também a noção de que
humilhar e amesquinhar as pessoas coloca quem o faz no mesmo plano da senhora
culpada destes abusos.
Acresce que o facto de a principal
culpada dos desmandos ser uma mulher não é irrelevante. Pior ainda é uma mulher
“insuportável”, arrogante, atractiva e muito senhora de si para parecer um
perigo para os homens e para as mulheres que no fundo temem as mulheres deste
tipo, ou pura e simplesmente temem as mulheres como se fossem amazonas. O
sexismo facilitou e muito o incêndio dos comentários e há uma espécie de
exorcismo contra a sedução implícita. Se não querem ouvir as sereias, coloquem
cera nos ouvidos e não fiquem babados a ver a televisão e a vociferar de
inveja, de todas as invejas.
É por isto que quase tudo para além do
caso das “raríssimas” é muito mais triste do que as gambas e o BMW, quer pelo
que está antes e a gente faz de conta que não vê, quer pelo que está depois em
que a gente faz de conta que vê demais.
JPP