sábado, 6 de junho de 2015

Balada para a Ilha de Moçambique





BALADA PARA A VELHA ILHA

«Horas mortas, quando o luar passeia,
As brancas tranças desfeitas, pela areia,
Há sombras do passado a deslizar
Por entre os muros, no cimo dos portais,
Nas rochas e nas pedras carcomidas,
Contando histórias velhas, já perdidas
Na distância e na bruma do não-mais.
Tinem ferros, há vozes e canções,
Soluços e murmúrios de orações
(Há quem afirme e teime que é o mar... )
Subindo em espirais feitas de mistério
Ao encontro dos passos de quem passa.

Ecos dispersos de um longínquo império,
roçar de sedas nos salões desertos
dos seculares palácios sem vivalma.
E dizem que de túmulos abertos
Surgem guerreiros, bispos e donzelas

Que vão depois seguindo, à luz da lua,
Tacteando as paredes, rua em rua,
Até que a aurora venha e se debruce
Em rubores de menina, pelas janelas.

E dizem mais... e contam... e afirmam...
(Bem sei que é lenda. É lenda e fantasia
— Mas que seria a vida sem o sonho
E que seria duma velha ilha
Sem o perfume, a estranha maravilha,
Da lenda a envolvê-la em poesia? )»



Guilherme de Melo

quarta-feira, 3 de junho de 2015

"As Farpas" de Ramalho Ortigão





OS NOSSOS FILHOS, EM CASA, NA RUA, NO PASSEIO, NO LICEU, NO COLÉGIO
Outubro, 1871.
Leitor! Leitora! – falemos dos vossos filhos. Levantemos a mão das fraquezas, dos ridículos, das misérias do nosso tempo, e consagremos esta página aos mais puros e aos mais vitais dos nossos interesses.
Conhecemo-los – os vossos filhos. Temo-los visto, ao voltar do colégio, com os babeiros brancos, os chapéus mais velhos, o cabelo despenteado e o dedo sujo de tinta, esfarpando de encontro às pedras os bicos dos sapatos, enquanto o vosso criado, com os compêndios do Sr. João Félix presos por uma correia debaixo do braço, os segue pausadamente conversando em coisas líricas com a criada da vossa vizinha.
Vimo-los no liceu, no dia do primeiro exame, pálidos de concentração e de susto, imóveis, extáticos, com os olhos pasmados na espessura dos seus juízes, lembrando-se um pouco mais das orações que vós rezastes por eles, ó mães, do que das lições que vós lhes destes, 6 mestres!
Tínhamo-los também visto no Passeio Público, em noites de concerto, dançando ao pé do quiosque, eles fingindo-se grosseiros para se darem o chique de velhos colegiais, elas sérias e graves, voltando o rosto por cima do ombro para contemplarem como pequenas senhoras a cauda hipotética dos seus vestidos.
Elas e eles são pálidos, têm as gengivas esbranquiçadas, os dentes baços, as pestanas longas, as pálpebras oftálmicas, os cantos da boca levemente feridos, o sorriso triste, os movimentos indecisos e fracos, o olhar quebrado.
Precisam de tomar banhos frios, de comer carne ao almoço, de beber uma colher de óleo de fígados de bacalhau todos os dias, de fazer ginástica, e de que se lhes corte o cabelo.
Além do cabelo extremamente longo – o que equivale perante a química e perante a fisiologia a um dispêndio de ferro com que não podem as constituições anémicas dos vossos pequenos – notamos ainda excessos de toilette cuja voga dá o seguinte resultado: Em parte alguma do mundo se encontram crianças tão mal vestidas como em Lisboa.
A gente rica veste os seus filhos de veludo, com meias de seda e plumas no chapéu. Há tipos calabreses, escoceses, marinheiros, boleeiros... A gente pobre, que não pode adoptar integralmente os modelos consagrados na mascarada das crianças burguesas, veste os seus pequenos de cães sábios. – O que é de uma iniquidade verdadeiramente horrível, porque, enfim, ninguém pode evitar que os nossos filhos sejam os herdeiros forçados das nossas enfermidades e das irregularidades das nossas feições, mas é demais abusar dos direitos da paternidade até ao ponto de converter uma criaturinha graciosa e simpática no cabide irrisório das depravações artísticas do nosso gosto!
Ide ver as crianças, como nós as temos visto, aos domingos de tarde no passeio da Estrela ou em S. Pedro de Alcântara. Lá encontrareis os meninos vestidos de colegiais franceses, de guardas-marinhas ou de empregados do caminho de ferro, de postilhões, de huguenotes, de puritanos, e, sobre isto, as compósitas das toilettes de capricho, em que o hediondo toma profundidades de expressão prodigiosamente alucinantes: as botas cor de pulga com atacadores encarnados e biqueiras de verniz, chapéu de palha atado por baixo da barba com um laço de fita, vestido verde e paletó encarnado, coisas medonhamente semelhantes ao trajo de um macaco que dança ao som de um realejo.
Desafiamos-te, leitor, a que entre todos esses pequenos nos mostres duas crianças vestidas simplesmente – de crianças: com sapatos rasos, largos e grossos, e um fato cómodo, lógico, sensato, de linho no verão e de lã no inverno, que permita ao rapaz que o tem usar livremente de todos os seus movimentos e de toda a sua força, sem vontade de olhar para a sombra que vão fazendo nos muros, nem de se considerar perpetuamente tutelado pelo verniz das suas botas ou pelo delicado estofo da sua túnica.
Conversai por um momento com esses pobres forçados à grilheta do aparato, e vereis com que ideias a primeira educação das amas e das criadas enche a imensa capacidade que tem a memória desde os dois anos até aos seis! Eles estão convencidos de que o judeu que lhes vendeu tâmaras à porta do jardim tem uma cauda no fim das costas; que o mundo foi feito pelo Jesus; que as doenças, os desastres e os aleijões são castigos dados pelo Jesus; que as trovoadas são o Jesus que ralha com a gente. De sorte que para eles o doce mártir da dedicação e do amor da humanidade que suas mães adoram de joelhos, fica reduzido ao chaveiro de todos os males ao despenseiro de todas as desgraças, ao pasteleiro de todos os desgostos! Não conhecem tão antipático, tão monstruoso tão terrível como Jesus, senão um ente que existe em casa de cada um deles, escondido nos quartos escuros, à espera que os meninos passem para os devorar. É o papão. O pai é uma espécie de flagelo intermediário dos dois referidos, um ministro da polícia enviado extraordinário e representante efectivo dos verdugos invisíveis e místicos. Quando o Jesus não ralha porque não há electricidade atmosférica, e o papão se não manifesta porque estão luzes em todos os quartos, diz-se-lhes: Esperem que ali vem o papá ! quer dizer, o emissário de Jesus, que substitui os trovões pelos puxões de orelhas, e o substituto do papão, que espanca os meninos feios enquanto o papão se não resolve definitivamente a mastigá-los.
A única instrução séria que se lhes deu na primeira infância foi o catecismo. O Padre Nosso caiu-lhes na memória como a toada sonolenta e monótona de uma melopeia maquinal, de cuja intenção e de cujo sentido – mesmo literal eles não têm a mínima ideia. Outro tanto lhes sucede com os mandamentos da lei de Deus e com os pecados mortais. Nada mais edificante, sobre a falsa educação religiosa que nós cuidamos dar a nossos filhos, do que ouvirmos as suas respostas quando lhes perguntamos o que entendem por esta palavra que os obrigamos a repetir duas ou três vezes por dia – Luxúria – ou a sua interpretação para esta frase que igualmente nos esforçamos por lhes fazer decorar: Não invejar a mulher do teu próximo! Uma pequenina nossa amiga entende que a luxúria é o pecado do demasiado luxo, e que guardar castidade consiste em não murmurar contra os castigos.
Tais são as coisas que nossos filhos aprendem em nossas casas até à idade dos seis anos!
Chega finalmente a época de entrarem no colégio.
O colégio é uma casa triste, sombria, impregnada daquele cheiro abafante que deixa no ar a aglomeração das crianças. O colégio tem um guarda-portão de aspecto duro, homem habituado a pagar-se nas lágrimas dos colegiais pequenos das diabruras que os grandes lhe fazem. As paredes têm riscos e letras a lápis; no chão escuro há pedaços de papéis rasgados; a disposição das camas, o aspecto seco dos prefeitos, as maneiras dos criados dão aos dormitórios um ar de hospital. As aulas, sujas pela lama que trazem as botas dos externos, os bancos lustrados pelo uso, as carteiras de pinho pintadas de preto, os transparentes das janelas manchados pela chuva, a lousa negra polvilhada de giz a um canto da casa, o rodapé da banca do professor de baeta lagrimejada de tinta, infundem uma tristeza lúgubre. Tudo quanto pode converter o trabalho num objecto de repulsão e de horror acha-se felizmente reunido na maior parte dos colégios portugueses. As mulheres, que a experiência tem provado possuírem muito mais aptidão para o ensino do que os homens, são geralmente excluídas do professorado nos colégios de alunos do sexo masculino. O ensino é ordinariamente feito por sábios de pouco preço, para os quais os âmbitos da ciência bem como os da sociedade são igualmente cheios das trevas mais augustas e mais impenetráveis. Por via de regra, literato falido, escritor malogrado, crítico inédito, o magister tem a pedanteria das pequenas letras e as severidades da alta magistratura, envoltas num exterior intonso, com maneiras de uma gravidade suspeita e de um exemplo contestável. No entanto como no tocante às maneiras do aluno tudo quanto se exige é que ele seja aprovado no seu exame de civilidade, lá estão para suprir tudo os compêndios do Sr. João Félix, vigoroso freio para que o estudante nunca escarre na cara das pessoas de respeito nem arrote com repreensível estampido quando jantar na alta sociedade. Poupa o trabalho de dar exemplos a comodidade de possuir um livro assim, que permite ao preceptor dizer simplesmente o seguinte a um homem que vai entrar no mundo: «Releia o seu João Félix, e conserve-se sempre de sobreaviso sobre as expectorações e sobre os gases».
O mesmo que sucede com a civilidade é exactamente o que se dá com todos os demais capítulos em que se divide a educação da infância.
A preocupação única e exclusiva dos preceptores é que os seus alunos estejam quietos no colégio e sejam no fim do ano lectivo aprovados no Liceu Nacional. Para conseguir a aprovação dos estudantes nos exames que eles façam, o preceptor emprega todos os esforços e todos os meios, excepto talvez um único -, que é o de lhes ensinar o objecto sobre que tem de versar o exame.
Para se ajuizar dos outros meios que dão em resultado a aprovação dos alunos, cumpre saber-se que o júri dos exames é composto de professores do liceu. Estes senhores têm organizado o programa das suas perguntas e feitos os pontos que no fim do ano serão tirados à sorte para indicar a passagem sobre que tem de passar-se exame. Ora neste caso o modo mais simples e mais lógico de conseguir a aprovação seria haver o programa das perguntas e a colecção dos pontos. Assim quinze dias bastariam para que o aluno decorasse os textos sobre que tinha de tirar o ponto, e o êxito do exame não poderia ser, depois disso, duvidoso. Sucede porém que os lentes do liceu insistem em não vender os pontos pela razão um tanto frívola de que isto seria a mais sórdida das veniagas e o mais abjecto dos subornos. Aqui principiam os trabalhos memoráveis a que se dá o preceptor para assegurar o futuro científico e literário do seu aluno.
– Homem! deixe-me levar os pontos aos rapazes!
– Não! isso não! leve-lhes tudo quanto quiser, menos os pontos! Quer uma coisa?... Leve-me a mim – por vinte mil réis por mês – mas os pontos não! nunca!
– Bem! basta! Não falemos mais nos pontos, e venha daí você!
Assim é que os professores públicos do Liceu Nacional, vogais do júri dos exames no mesmo liceu, não vendem os pontos aos colégios particulares mas exercem neles o magistério. Há professor no liceu de Lisboa que ensina particularmente a disciplina de que é examinador em oito diferentes colégios de educação de rapazes! Não há nisto sombra de corrupção nem desaire de espécie alguma. Somente acontece – e isto é um facto extremamente secundário! – que de cada cem alunos que concorrem a exame no liceu podemos afoitamente computar em noventa o número dos que ignoram as disciplinas em que são julgados aptos. Se os ilustres professores nos quiserem honrar com o seu desmentido, requeremos uma sindicância às escolas e provaremos com factos que de cem alunos aprovados em latinidade no ano de 1870 não haverá seis que em 1871 traduzam correctamente meia página de qualquer autor latino à nossa escolha.
São enormes, são pavorosos os males que resultam dos simples factos que acabamos de indicar.
Em primeiro lugar os alunos habituam-se desde a infância, nos primeiros actos da sua vida civil, a descrerem do mérito, do trabalho e do estudo, e a contarem para todo o êxito com a falseação das provas, com a mercancia da justiça e com a omnipotência do compadrio – perfeita iniciação para uma existência de intriga, de indolência e de desonra.
Os pais, quites para com as suas consciências dos encargos da educação que devem a seus filhos pelo facto de haverem delegado noutros esses encargos, contentam-se em participar aos parentes que o menino continua a ser aprovado nos seus exames, até que, aos dezasseis ou dezassete anos, o colégio devolve à família plenamente aprovado em todos os seus estudos o menino que a família lhe confiara, e o pai encontra-se então, frente a frente, no seu campo, na sua loja, na sua oficina ou no seu lar doméstico, com um mancebo aproximadamente inútil para toda a espécie de emprego. Todas as faculdades desse pequeno homem, em que a barba principia a repontar com as paixões ardentes da puberdade, estão inertes, enervadas ou corrompidas.
Enquanto à educação do espírito sabe pouco e mal o que lhe ensinaram, não sabe quase nada o que devia saber.
Pelo que respeita ao corpo, se vem de um bom colégio, sabe de ginástica o suficiente para fazer dele um mau arlequim, mas nunca empregou a sua força nos exercícios verdadeiramente úteis a um homem. Não está habituado à fadiga das marchas, não sabe defender-se se o esbofetearem, não sabe nadar, desconhece os princípios mais rudimentares da higiene.
No que toca às suas faculdades de coração, nunca amou ninguém. Partido o afecto instintivo que o rendia à família, viveu no baixo egoísmo dos reclusos. Desconhece o doce prazer de se sacrificar. Nunca teve a sua parte nos interesses delicados da família, nunca subiu de corrida uma ladeira para chamar um médico para seu pai; nunca se bateu aos murros por alguma grosseria da rua dirigida aos bibes das suas pequenas irmãs, que ele estivesse encarregado de acompanhar à escola; nunca defendeu, nem consolou, nem acariciou sua mãe. A única mulher que deixou na breve existência dete uma lembrança secreta, ardente, devoradora, foi talvez uma, de longas saias engomadas e ruidosas que, passando na rua, lhe sorriu para a janela do colégio, de um modo estranho, em certo dia em que ele fizera exame de retórica...
Na Escola Politécnica, na Universidade, num escritório comercial ou na casa paterna esse rapaz deixará correr descuidadamente a sua existência pelo declive fácil em que o puseram, sem estímulos afectuosos, sem vontade, sem energia, sem força, sem consciência e sem carácter.
E esta será a bitola dos futuros cidadãos portugueses!
Nós mesmos fomos já educados assim. Vede o que estamos sendo! Vede os homens que deitámos! Vede o país que fizemos e a sociedade que constituímos!
Principiamos por desconhecer a nossa missão na humanidade. A família enfraquece por toda a parte. O hospício dos expostos em Lisboa contava no primeiro dia do corrente mês de Outubro 15099 crianças repudiadas por seus pais. A roda dos expostos joga com outra roda na administração do país – a roda da lotaria. A lotaria sustenta a Misericórdia. O jogo protege a prostituição. A tavolagem adopta o bordel. E a mancebia abjecta da batota e do prostíbulo abençoada pelo Estado e acarinhada pelo país.
E nós vivemos nisto, nesta repulsiva podridão, complacentes, descuidados, felizes, dando a todo o mundo moral o espectáculo da maior degradação e da maior baixeza em que poder cair uma sociedade.
Na ciência, na literatura e na arte estamos estacados, imitando servilmente as obras de nossos pais, atestando a ignorância mais flagrante, esterilizados nas nossas faculdades inventivas, narcotizados pelo tabaco de que abusamos como nenhum outro país da Europa, sem uma ideia elevada, sem um pensamento generoso, sem uma voz, sem um grito, sem um gesto que penetre, esclareça e vibre este velho mundo devasso e tonto.
Na política a nossa história actual é a abdicação por inépcia de todos os foros e de todas as franquias de liberdade conquistadas pela geração que nos precedeu. Vede a representação nacional. 0 nosso parlamento tem muitos defeitos, mas todos eles procedem de um vício capital, irremediável, sem cura – a incapacidade intelectual para compreender o maquinismo do mundo moderno, perceber a lei das novas evoluções sociais, e debater com perfeito conhecimento do sistema da universalidade moral que nos governa os altos interesses do tempo a que pertencemos. Com menos eloquência, com menos ardor, com menos fé que em 1836 os actuais deputados da nação vivem ainda a equilibrar as velhas dúvidas pulverulentas e desengonçadas do estabelecimento do sistema parlamentar. No entanto no resto do mundo os acontecimentos científicos, sociais e políticos precipitam-se vertiginosamente , criando transformações que os antigos tempos não viam senão de uma gestação de séculos. Dentro de poucos anos a Itália unifica-se; a coroa de Roma cai da fronte do Papa; os Bourbons são expulsos da Espanha; os Bonapartes fogem da França; constitui-se o império alemão; a América emancipa os seus escravos; a Europa perfura o Monte Cenis e abre o canal de Suez; em Paris estala a revolução social que no primeiro dos seus relâmpagos abre um abismo de sangue; a classe operária agita-se por toda a parte, e o murmúrio, profundo como o do Oceano, que ela está fazendo na sombra, abala a confiança que tinha em si a propriedade e o capital, e obriga as classes médias, em cujo poder jaziam desde a revolução francesa os destinos da civilização, a lembrarem-se de que a realeza, o clero e a aristocracia tiveram sobre o mundo antigo, assim como a burguesia sobre o mundo moderno, o seu tempo de domínio; que uma lei histórica lhes arrancou o poder num momento, e que a hora do presente regime pode soar amanhã, assim como sucessivamente soou, irrevogável e fatal, a de cada um dos domínios que têm senhoreado a humanidade. Isto pondera-se, medita-se, discute-se em todos os parlamentos. Em Portugal sana-se a questão apagando as luzes e fechando à chave a sala das conferências democráticas. Têm os políticos portugueses alguma leve notícia do que se está passando no mundo? Ignoramo-lo. Os partidos avançados o que querem? Novas liberdades em uma Carta reformada e a máxima descentralização nos diferentes ramos da administração pública. Ora enquanto à liberdade está-se provando em cada dia que nem da que possuímos temos aprendido a usar. Enquanto à descentralização a civilização portuguesa pararia no dia em que a votassem. Quereis uma prova? Há distritos em que o número das escolas tem duplicado nos últimos anos; pois bem: o número dos alunos é igual ao do tempo em que as escolas eram de metade!
A verdade é que a civilização, bem como a liberdade, se não decreta. Só há um único meio de a alcançar: é merecê-la.
Há muito tempo que os governos portugueses, todos bem intencionados e honestos, longe de resistências, não encontram senão dedicações no espírito público; e não obstante vão caindo todos sucessiva e rapidamente. Sabeis por que caem? Caem simplesmente pela ignorância. E câmaras e câmaras sucessivas, tiradas de todas as condições e de todas as hierarquias sociais, não dão de si um grupo de homens com a capacidade intelectual precisa para firmar o poder.
Possam os nossos filhos reclamar a felicidade a que seus pais não têm direito, apresentando-se ao futuro com merecimentos que nós não podemos invocar! Suspensão de veemências e de ironias! Trata-se da infância. Não nos dirigimos aos políticos. Conversamos honrada e sinceramente contigo, leitor amigo, e contigo, leitora honesta; descansamos por uns momentos no chão as nossas armas para vos estendermos a mão.
Pesa sobre vós uma responsabilidade tremenda. No estado em que se acha a sociedade portuguesa a família é um duplo refúgio – do coração e do espírito.
A família é dos pouquíssimos meios pelos quais ainda é lícito em Portugal a um homem honrado influir para o bem no destino do seu século.
Querido leitor! o modo mais eficaz de seres útil à tua pátria é educares teu filho. Consagra-te a ele. A educação pública é uma burla atrozmente vergonhosa. Não lhe entregues a criança que o destino te confiou. Educa-o tu. Se não souberes mais, procura pelo menos torná-lo forte, ensina-lhe a ler e a escrever, dá-lhe um ofício e fá-lo um homem de bem; ele de si mesmo se fará um sábio, se tiver de o ser. A ignorância tem isso de bom: que se desfaz aprendendo. A falsa instrução tem esta perfídia: não dá o ensino e inibe de o tomar.


As Farpas, Tomo VIII (extractos)

 
in http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/ortigao.htm

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Rochas, conchas, areia, mar

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Duarte Marques e Pedro Cosme Vieira: perigosa e ameaçadoramente racistas


Como uma curta citação que um deputado do PSD fez de Pedro Cosme Vieira tornou este professor de Economia, assumidamente racista, num dos nomes mais citados nas redes sociais e na blogosfera. Na maior parte dos casos, com duras críticas e sarcasmo à mistura.


Duarte Marques, ilustre deputado do PSD, escreve no Expresso sobre as propostas do PS. Critica, como seria de esperar. Mas tem uma arma secreta, uma invocação de autoridade: “Tal como lembra o Professor Pedro Cosme Vieira da Faculdade de Economia do Porto”… e ficamos lembrados de que existe e que escreve o Professor Pedro Cosme Vieira da Faculdade de Economia do Porto.

Ora, o que opina tão distinto analista? Pois escreve que as medidas do PS para a segurança social “não são medidas, são sonhos”. Talvez. Mas porquê? Ele explica: “Para aumentar o número de contribuintes é preciso desviar os barcos com pretalhada que atravessam o Mediterrâneo para o Algarve. Para diminuir o número de pensionistas é preciso matá-las (sic). Isto é que seriam medidas não era dizer o resultado que queríamos que acontecesse”.
Parece um pouco ligeiro, o nosso engenheiro. “Desviar os barcos com pretalhada” e matar os pensionistas? Aqui está uma ideia que só pode ocorrer a mente brilhante.

Fui então estudar o pensamento de Cosme Vieira. E encontrei uma discussão filosófica elevada sobre a vida: sobre a sua mãe (“a minha mãe, totalmente caquéctica (sic) da cabeça”), sobre a política (o “fardo de palha que o Portas escreveu sobre a “Reforma do Estado”) e, notável contributo original, sobre as possíveis soluções para o problema do Mediterrâneo, o tal mar cheio de “barcos com pretalhada”, e é essa que quero partilhar com os leitores, pois vale a pena transcrever estes momentos definidores de um pensamento refundador de Portugal, o que inspira aquele seu discípulo venerando, que o cita e recita.

A primeira solução é uma ponte aérea para trazer toda a gente de África para a Europa. Cosme Vieira não gosta nada disso, vive aterrorizado com esta ideia. Mas veja agora a “Estratégia 2 — Afundar os barcos e matar toda a gente”, que seria uma alternativa:
“Em vez de tentar salvar as pessoas que vêm nos barcos precários, ‘salva-los’ atropelando-os com navios portugueses e, depois, todos os que consigam nadar, meter um tiro em cada um. Nos primeiros dias vão morrer algumas pessoas, talvez 1000 ou 2000 podendo mesmo chegar aos 5000 ou aos 10000 mas, depois, deixará de haver candidatos à tentativa de atravessar o Mediterraneo de barco. Antecipando aos (sic) pessoas que não vale a pena tentar chegar à Europa desenvoivida (sic), desitem (sic)”.

Percebeu? Cosme Vieira explica mais graficamente: “Será que alguém morre afogado a tentar ir do Bangladesh para a Birmânia? No passado também havia muitos naufrágios de pessoas que fugiam da miséria do Bangladesh para a Birmânea (sic) mas há já vários anos que isso acabou. É que, se alguém chegar a terra, matam-no, queimam-no vivo.
Ainda há uma terceira estratégia mas é preciso deixar essa hipocrisia esquerdista de que quem chegar ao lado de cá é um cidadão de pleno directo (sic), com igualdade de direitos face a nós que cá nascemos, mas quem não chegar ficando do lado de lá é um bicho.
Digamos que há ‘falta de vontade política’ seja para afundar os barcos ou para considerar quem chega cá com exactamente os mesmos directos (sic) de quem não chega cá.”

O distinto engenheiro é como uma enciclopédia, trata todos os assuntos. Ei-lo na sua melhor forma:
A SIDA é uma doença sem cura e mortal que apenas se transmite de umas pessoas para outras de forma, em certa percentagem, culposa. Actualmente há cerca de 35 milhões de infectados e morrem cerca de 2 milhões de pessoas por ano. Então, se, tal como fazemos com os animais, se fizesse o abate sanitário de todos os infectados (0.5% da população mundial), a doença desapareceria da face da Terra recuperando-se em apenas 15 anos os 35 milhões de pessoas abatidas. Agora imaginemos que a SIDA se propagava de forma inexorável e que ia levar à extinção da raça humana. Será que votaria a favor do abate sanitário dos infectados?

Só posso agradecer a Duarte Marques ter-me conduzido a esta autoridade que o inspira e conforta, o Professor Cosme Vieira, o homem que se pergunta sobre o abate dos doentes de Sida ou sobre o bombardeamento aos barcos da pretalhada e “meter um tiro em cada um”. Estou certo de que Duarte Marques o vai continuar a citar. Afinal, ele é um poço inesgotável de sabedoria e logo sobre tantos assuntos. É a autoridade de que o deputado do PSD bem precisa para criticar o plano económico do PS. Duarte Marques dá-nos sempre uma certeza, inspira-se nos amigos e na ciência certa. Nestes tempos difíceis em que vivemos, que falta que isso faz.



artigo de Francisco Louçã



Que a Justiça atue, imediatamente!

Está tudo maluco?