“Cremos haver avançado, mas, de facto,
retrocedemos. E cada vez se irá tornando mais absurdo falar de democracia se
persistirmos no equívoco de identificá-la com as suas expressões quantitativas
e mecânicas, essas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem proceder
antes a um exame sério e conclusivo do modo como eles utilizam o voto que os
colocou no lugar que ocupam.
Uma democracia bem entendida, inteira,
redonda, irradiante, como um sol que por igual a todos ilumine, deverá, em nome
da pura lógica, começar por aquilo que temos mais à mão, isto é, o país onde
nascemos, a sociedade em que vivemos, a rua onde moramos. Se esta condição
primária não for observada (e a experiência de todos os dias diz-nos que não o
é), toda a fundamentação teórica e o funcionamento experimental do sistema
estarão, desde o início, viciados e corrompidos.
Os povos não elegeram os seus governos
para que eles os “levassem” ao mercado,
mercado que condiciona por todos os
modos os governos para que lhe “levem” os povos.
Nos tempos modernos, o mercado é o instrumento por excelência
do autêntico, único e insofismável poder realmente digno desse nome que existe
no mundo: o poder económico e financeiro transnacional e pluricontinental,
esse, que não é democrático porque não o elegeu o povo, que não é democrático
porque não é regido pelo povo, que não é democrático porque não visa a
felicidade do povo.”
José Saramago
José Saramago