sábado, 9 de julho de 2011

Estado, justiça e reconhecimento.

Estado, justiça e reconhecimento**

Este artigo investiga, a partir de uma crítica normativa, a perspectiva liberal e a perspectiva  comunitarista do conceito de justiça, com o objectivo de reflectir sobre o papel do Estado nas democracias contemporâneas. A investigação da perspectiva liberal e da perspectiva comunitarista do conceito de justiça pretende avançar com uma crítica republicana ao processo de despolitização promovido pelo conceito de justiça política e de justiça social. Este artigo defende uma concepção política da justiça baseada na existência de um Estado republicano e na publicidade da origem   de princípios e regras constitucionais.
Palavras-chave: Estado; democracia; justiça; reconhecimento; república.

INTRODUÇÃO
O objectivo deste ensaio é especular sobre as possibilidades e sobre os limites teóricos de uma hipótese sociológica na teoria política contemporânea, tendo como base uma reflexão a respeito do papel do Estado nas democracias. Parto da premissa de que tanto o liberalismo quanto o comunitarismo esvaziam o papel do Estado nas ordens democráticas, de maneira a esvaziar um conteúdo propriamente político da teoria política. Ou seja, a questão da justiça, nas democracias contemporâneas, promove uma despolitização da teoria política, no sentido de vinculá-la à questão económica ou
cultural. A ausência de uma reflexão sobre o Estado implica a ausência de uma reflexão sobre lealdades fundamentais que transcendem a ideia das diferenças culturais.
O ensaio está dividido em quatro secções. Na primeira discuto a ideia de justiça como teoria social, chamando a atenção para os deslocamentos promovidos na teoria democrática contemporânea, tomando como elemento de discussão normativa o debate desencadeado pelo liberalismo político de John Rawls. Na segunda secção discuto a existência da hipótese sociológica na teoria política contemporânea e as suas consequências para a reflexão sobre a democracia, observando a crítica comunitarista ao liberalismo. Na terceira secção discuto os limites da teoria do reconhecimento, mostrando a ausência de uma perspectiva de liberdade política. Na quarta secção discuto as possibilidades de uma sociologia da dominação e do Estado republicano, num sentido normativo, com o objectivo de reflectir sobre as questões atinentes a uma sociologia política contemporânea.
Defendo a hipótese de que o liberalismo e a teoria do reconhecimento não reflectem sobre as alternativas ao problema da dominação e não analisam qual o papel do Estado no contexto das sociedades democráticas contemporâneas. As perspectivas comunitaristas vinculam a questão política à cultura, de maneira a criar uma perspectiva de sectarização social.
O objectivo desta análise crítica é ressaltar a necessidade de se repensar o público enquanto chave de interpretação do Estado republicano e da liberdade política.

OS DESLOCAMENTOS DA DEMOCRACIA E A JUSTIÇA COMO TEORIA SOCIAL
De meados da década de 70 do século XX até ao presente, a democracia tem-se deslocado da esfera da representação parlamentar para a esfera da justiça. Esse deslocamento ocorre, sobretudo, em função da emergência de novos movimentos sociais e devido à luta desses movimentos por direitos e liberdades fundamentais, no sentido de se superarem desigualdades estruturais das sociedades capitalistas. É esse deslocamento o que motiva a ascensão do movimento feminista, do movimento gay, do movimento negro e de tantos outros na esfera política. O que caracteriza esses movimentos é a reivindicação de maior justiça social, colocando-a na agenda das ordens democráticas contemporâneas. Esses pedidos configuram uma luta por direitos, tendo grupos tradicionalmente subjugados como actores centrais desse processo.
Do ponto de vista da teoria política normativa, esse deslocamento da democracia em direcção à justiça abriu novas vias de reflexão a respeito de valores e normas fundamentais, os quais organizam as sociedades democráticas e as suas instituições. Desta forma, o debate da teoria política contemporânea é, por definição, o debate sobre o tema da justiça e o modo pelo qual as instituições podem concretizar esse fim normativo. A justiça, por conseguinte, é o horizonte de possibilidades da reflexão em teoria política, havendo uma aproximação necessária ao tema do direito e à especulação sobre procedimentos básicos para a resolução de conflitos sociais, culturais, políticos e económicos.
Pode-se dizer que a teoria política de John Rawls representa o momento de ruptura com uma teoria que se preocupava apenas com a descrição do comportamento dos actores políticos, no sentido do behaviorismo típico da década de 1950 (Ball, 2004). Rawls reconsiderou e recolocou a discussão normativa, típica da filosofia política, em que o tema da justiça entra como conceito básico numa estrutura de outros conceitos destinados a discutir a democracia. Este deslocamento da democracia da esfera parlamentar para a esfera da justiça ganha corpo a partir da publicação da obra Uma Teoria da Justiça, na esteira da luta por direitos civis na sociedade americana das décadas de 1960 e 1970. A partir da obra de Rawls (2002 [1971]), todo o debate contemporâneo da teoria política passa, necessariamente, pela discussão
do tema da justiça e dos pressupostos básicos para a sua realização. No âmbito destes pressupostos, devemos destacar que a discussão sobre a justiça como construída por Rawls (1993) provoca, do ponto de vista da teoria política, um deslocamento da sociologia em direcção a uma filosofia política formal. Não há, nos pressupostos rawlsianos da justiça, uma perspectiva sociológica para a concretização de uma política das relações de poder. A perspectiva sociológica da teoria política submergiu aos preceitos de uma discussão normativa formal, em que o básico é a realização da justiça
distributiva pela realização das normas constitucionais, em especial os direitos e garantias fundamentais (Rawls, 1993, pp. 13-14).
O deslocamento da teoria democrática da esfera da representação parlamentar para a esfera da justiça implicou, portanto, um deslocamento dos pressupostos metodológicos, em teoria política, da sociologia para a filosofia formal, congregando não a base de evidências empíricas sobre as relações de poder, mas conceitos normativos ancorados numa filosofia da justificação de procedimentos e normas fundamentais, que balizam as instituições políticas.
Isso não elimina, contudo, as possibilidades de uma sociologia política do mundo contemporâneo, já que a obra de Rawls se direcciona para a realização da justiça distributiva no plano da estrutura básica da sociedade, a qual corresponde às instituições sociais fundamentais, como, por exemplo, a família, a vizinhança, os grupos, os clubes e os partidos políticos. No argumento do liberalismo político de Rawls, o objectivo da justiça como equidade é concretizar a ideia de uma sociedade democrática, e não apenas a existência de instituições formais e imparciais no plano do Estado (Rawls, 1993, pp. 15-22).

texto integral aqui:
* Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha, Belo Horizonte, MG, Brasil, CEP 31270-901. e-mail: ffilgueiras@fafich.ufmg.br.
** Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais o apoio logístico e financeiro para a realização deste texto. Também agradeço os comentários e críticas apresentados pelos referees anónimos da Análise Social e pelos professores Marco Aurélio Nogueira (UNESP), Ricardo Silva (UFSC) e Marlise Matos (UFMG).

1 A partir de Uma Teoria da Justiça, de Rawls, pode-se dizer que o debate da teoria política contemporânea é marcado por posições substantivas a respeito do tema da justiça, que reflectem uma concordância com os termos da justiça liberal ou uma posição crítica, a que se atribui normalmente a designação de “comunitarista”. Em 1993, Rawls publicou a obra Liberalismo Político como resposta aos críticos, na qual revê as suas posições. A título de organização do argumento, privilegiarei as posições de Rawls descritas nesta última obra.

Fernando Filgueiras* Análise Social, vol. XLV (194), 2010, 63-90