sábado, 9 de julho de 2011

Saudades de Salazar?

 

 
O 25 de Abril foi, sem dúvida, o reerguer de Portugal depois de um imobilismo de quase meio século. Foi a reconquista de Portugal pela sua gente. A reconciliação com o mundo.  A força que faltava à luta dos que, sacrificados em tudo e vergados pela prepotência das elites e perversidade de um poder totalizante,  comiam, e mal, o pão amargo de uma vida fermentada no desespero mas também na esperança.
Que cenários de miséria, fome, medo, dor e sofrimento para a grande maioria! Que desigualdades sociais terríveis! Quanta hipocrisia e cinismo na propaganda feroz que este regime fazia, com o seu didactismo demagógico planeado e a sua catequização política institucionalizada!
Prisioneiros das “orientações das almas” e da “política do espírito”, homens e mulheres, rapazes e raparigas, serviam o poder que deles se servia.
Embora criança, atenta, curiosa, vi e senti o fascismo. Vi e senti o fascismo na vida dos meus pais e da minha gente. E percebi a urgência da sua saída de Portugal, exaustos pela luta contra a adversidade e a injustiça, a chantagem e o medo. Um combate enfrentado com dignidade, coragem e resistência, mas que, lentamente, derrubava as suas legítimas aspirações a uma vida sem lágrimas.   
Quando certas pessoas falam saudosamente de Salazar, referindo com a habitual ligeireza histórica argumentos do tipo “tínhamos reservas de ouro”, “tínhamos colónias”, “éramos uma potência”, “havia ordem”, “havia respeito”, “obedecia-se”, esquecem-se que nem liberdade de expressão havia e que o carácter repressivo do regime punia com crueldade todo e qualquer incumprimento atentatório ao “bem da nação” e à ordem estabelecida. 
Também se esquecem de todo um conjunto de normativos jurídico-constitucionais que espartilhavam gentes e mentes, particularmente as mulheres, como podemos observar na Constituição de 1933 – rígida, teórica – no Estatuto do Trabalho Nacional e das Bases Orgânicas da União Nacional, e, ainda, na organização da Mocidade Portuguesa e Legião Portuguesa – organizações ideologicamente manipuladoras e dirigistas num país de fanatismo religioso e inquisitorial.
Financeiramente, as receitas públicas acumulavam-se graças à falsa neutralidade na 2ª grande guerra, situação que facilitou a venda do volfrâmio e o enriquecimento da burguesia salazarista mas que tornou cada vez mais pobre e faminta uma população miseravelmente ruralizada, animada pelos discursos nacionalistas do salvador ou por tributações fiscais habilmente fundamentadas numa lógica patriótica maniqueísta.  
Salazar era esperto, ardiloso e com a humildade enganadora dos “beija-mãos”.
Realmente, as reservas de ouro em Portugal, passaram de 93.000.0000 dólares/1939 para 433.000.000/1946, e a acumulação de lucros subira para 20 milhões de contos, aproximadamente. No entanto, o custo de vida aumentou de tal maneira que, em 1941 atingia o índice de 1929. Só no final da década de 40 se conseguiu travar a subida dos preços, agravada mais tarde com o início da guerra colonial. Em 1968 era já 31% maior do que há dez anos atrás, tendo subido o dobro até 1974.
Nunca se investiu a maior parte das reservas acumuladas no sector produtivo nem das mesmas resultaram mais-valias para um país à espera do verdadeiro progresso industrial, preso que estava à ruralidade que ideológica e intrinsecamente o marcavam e condenavam (entre 1938-1950 o PIB é de 2,8 e entre 1950-1955 de 1,8).
O verdadeiro progresso de um país vê-se pela qualidade de vida do seu povo e pelo seu nível cultural. No fascismo português, nem uma coisa nem outra. 
Só as grandes famílias burguesas, empresariais, porque de mãos dadas com o poder e subservientes, viam realizados os seus objectivos de ascensão política, económica e social, à custa da contenção dos salários dos pobres e à sua exploração, obtendo altos lucros e grande ostentação material.
Atado ao nacionalismo e tradicionalismo de um sistema voltado sobre si próprio, o país era de Salazar e não dos portugueses.
Inabalável na defesa, ainda que hipócrita, dos seus grandes valores - Deus, Pátria, Família -, recorde-se a título de exemplo o que significou a sua neutralidade na guerra e a forma como tratou Aristides de Sousa Mendes, ou as fraudes eleitorais constantes, a manipulação da Lei e dos tribunais e, tão ao jeito das ditaduras, como calava a oposição e instaurava cada vez mais o controlo sobre a educação, as famílias e a sociedade em geral.
E o campo de concentração no Tarrafal? Machava? Moçâmedes? E a censura? E a PIDE por todo o lado? E a obstinada recusa da descolonização durante longos anos apesar da pressão internacional e das disposições da Carta das Nações Unidas? E o isolamento internacional? E a guerra colonial, autêntica sangria dos nossos jovens e das nossas famílias? 
É disto que têm saudades? Realmente, como alguém disse, a ditadura pode parecer bela aos olhos de quem não quer ver.
O 25 de Abril de 1974 levou-nos ao caminho traçado em 5 de Outubro de 1910 e permitiu a construção de uma sociedade democrática, mais justa, “sem muros nem ameias”, com “gente igual por fora” e “gente igual por dentro”, resgatando a dignidade de um povo calado à força.
Uma caminhada nada fácil mas dificultada por aqueles que, numa clara afronta ao exercício de uma cidadania activa e responsável comodamente se instalam no lugar de meros observadores, alheados do dever que a todos diz respeito: a participação política e cívica, fundamental para a solidez de uma verdadeira democracia.
Ninguém está dispensado desta participação, e votar, deveria ser obrigatório! 
Custa dizê-lo, sim, passados que são 37 anos desde a Revolução dos Cravos, olhando para a terrível percentagem de abstenções nas eleições e ouvindo sistematicamente os que tudo e todos criticam mas que nada fazem para a mudança, especialmente os saudosistas de Salazar, cuja acção governativa com boçalidade apregoam de exemplar. 
É triste a leitura que faço desta triste gente. 
Um povo que tendo estado amordaçado 48 anos e a lutar por eleições livres para todos, e em especial para as mulheres, se arreda, agora, levianamente, de um dever crucial - a escolha daqueles que nos irão governar ou não. 
A Política a todos diz respeito e da boa política carecemos. Somos responsáveis pela forma como funcionam as instituições democráticas ou pelo seu não funcionamento.
Não se culpe só o governo, deputados, Presidente da República e tribunais quando as coisas vão mal. Todos temos culpa. Nós e não o 25 de Abril de 1974.
“As metas e ideais que nos movem são gerados pela imaginação mas não são feitos de substâncias imaginárias. São feitos da dura substância do mundo da experiência física e social” (John Dewey, Uma fé comum).
Antes uma democracia com imperfeições mas na qual sou livre para a melhorar, do que uma ditadura perfeita onde sou refém de mim própria.  


Maria Nazaré Oliveira