Agradeço a João Boaventura, frequentador e excelente comentador do De Rerum Natura, a lembrança de Étienne de la Boétie, a propósito de um artigo que aqui publiquei e a referência, em inglês, de uma obra deste autor. A edição de que me servi para escrever este texto encontrei-a na Internet, por simples consulta e parece-me bem traduzida.
A obediência sempre foi apanágio dos seres livres. Mas aquela que me obriga a respeitar os meus princípios, a minha autonomia moral e a lei da cidade. Ou seja, a minha liberdade e a dos outros e a sua condição, e não aqueloutra a que os outros me obrigam.
Ora, a democracia moderna continua cheia de dependências que nos tiram a liberdade, pensando nós que não. Desde o condicionar das opiniões, às meias verdades, aos esquecimentos estratégicos, à manipulação dos factos e aos não factos, à mentira repetida até ser verdade, à demagogia sem corar, etc.
Aliás hoje os líderes desenham-se com régua, esquadro e pós de perlimpimpim: aparições em público - assim, posturas e gestos -, assado - olhares e sorrisos -, frito - palavras e tons de voz -, cozido - dedo e olhar em riste - , guisado - fatiota, de acordo com o ambiente. Quanto a ideias, nada (o mais simples que puder ser é demais para o que nós podemos), quanto a métodos, martelar até entrar, subtilezas, nenhumas. No que diz respeito a explicações, fica para depois, mas, parlapié, quanto for necessário e até mais do que isso.
E os cidadãos, que já vão sabendo disto, desconfiam e afastam-se. Para isso é necessária a tal revolução moral. Mas que poucos querem porque obrigaria a desmontar toda esta arquitectura que serve a muitos. O certo é que se faz dos cidadãos parvos, retirando-lhes capacidade de análise e rigor na apreciação. Mas isto interessará a muitos? Talvez não, e é aqui que está o mal. É fundamental que interesse a todos.
Étienne de la Boétie (1530-1563), médico e amigo de Montaigne, tem um livrinho precioso e esclarecedor: Discurso sobra a servidão voluntária (L.C.C. Publicações Eletrônicas), onde explica, com muitos exemplos, sobretudo antigos, a arte de tirar a liberdade às pessoa, e elas agradecerem.
E como é que, segundo Étienne de la Boétie, se pode ser servo mesmo quando o político (tirano, como ele diz) é eleito? Como se cria (e deixamos que se crie) uma teia para dominar cidadãos ditos livres mantendo as aparências democráticas?
É simples. Diz ele: «Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos, foram sempre esses os que lograram aproximar-se dele ou ser por ele convocados, para serem seus cúmplices … e com ele beneficiários das rapinas». A partir daqui é só desdobrar o esquema: «Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos, que procedem com eles como eles procedem com o tirano».
Abaixo desses seiscentos há seis mil, devidamente ensinados, a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração do dinheiro».
E continua É. De la Boétie:
«Quem queira perder tempo a desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mil ou cem milhões agarrados à corda do tirano».E, para terminar, esta pérola, que nos soa a conhecido: «Dizem os médicos que, havendo no nosso corpo uma parte afetada, é nela que naturalmente se reúnem os humores malignos; da mesma forma, quando um rei se declara tirano, tudo quanto é mau, a escória do reino (não me refiro aos larápios e a outros desorelhados que no conjunto da república não fazem bem ou mal algum) os que são ambiciosos e avarentos, todos se juntam à volta dele para o apoiarem, para participarem do saque e serem outros tantos tiranetes logo abaixo do tirano».
Cria-se assim uma rede de favores e dependências que a todo o custo se tenta manter, porque é uma questão de sobrevivência. Mas, é claro, que pensamento, crítica, juízo moral, liberdade, honestidade, tudo se torna impossível. O medo de perder os privilégios económicos e sociais, obtidos à custa desta servidão, aceite e agradecida, reforçará a dita servidão. A liberdade é, assim, um formalismo. Os próprios estão alienados, mas gostam porque é a própria alienação que os alimenta.
João Boavida, 3 comments Links to this post
Ora, a democracia moderna continua cheia de dependências que nos tiram a liberdade, pensando nós que não. Desde o condicionar das opiniões, às meias verdades, aos esquecimentos estratégicos, à manipulação dos factos e aos não factos, à mentira repetida até ser verdade, à demagogia sem corar, etc.
Aliás hoje os líderes desenham-se com régua, esquadro e pós de perlimpimpim: aparições em público - assim, posturas e gestos -, assado - olhares e sorrisos -, frito - palavras e tons de voz -, cozido - dedo e olhar em riste - , guisado - fatiota, de acordo com o ambiente. Quanto a ideias, nada (o mais simples que puder ser é demais para o que nós podemos), quanto a métodos, martelar até entrar, subtilezas, nenhumas. No que diz respeito a explicações, fica para depois, mas, parlapié, quanto for necessário e até mais do que isso.
E os cidadãos, que já vão sabendo disto, desconfiam e afastam-se. Para isso é necessária a tal revolução moral. Mas que poucos querem porque obrigaria a desmontar toda esta arquitectura que serve a muitos. O certo é que se faz dos cidadãos parvos, retirando-lhes capacidade de análise e rigor na apreciação. Mas isto interessará a muitos? Talvez não, e é aqui que está o mal. É fundamental que interesse a todos.
Étienne de la Boétie (1530-1563), médico e amigo de Montaigne, tem um livrinho precioso e esclarecedor: Discurso sobra a servidão voluntária (L.C.C. Publicações Eletrônicas), onde explica, com muitos exemplos, sobretudo antigos, a arte de tirar a liberdade às pessoa, e elas agradecerem.
E como é que, segundo Étienne de la Boétie, se pode ser servo mesmo quando o político (tirano, como ele diz) é eleito? Como se cria (e deixamos que se crie) uma teia para dominar cidadãos ditos livres mantendo as aparências democráticas?
É simples. Diz ele: «Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos, foram sempre esses os que lograram aproximar-se dele ou ser por ele convocados, para serem seus cúmplices … e com ele beneficiários das rapinas». A partir daqui é só desdobrar o esquema: «Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos, que procedem com eles como eles procedem com o tirano».
Abaixo desses seiscentos há seis mil, devidamente ensinados, a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração do dinheiro».
E continua É. De la Boétie:
«Quem queira perder tempo a desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mil ou cem milhões agarrados à corda do tirano».E, para terminar, esta pérola, que nos soa a conhecido: «Dizem os médicos que, havendo no nosso corpo uma parte afetada, é nela que naturalmente se reúnem os humores malignos; da mesma forma, quando um rei se declara tirano, tudo quanto é mau, a escória do reino (não me refiro aos larápios e a outros desorelhados que no conjunto da república não fazem bem ou mal algum) os que são ambiciosos e avarentos, todos se juntam à volta dele para o apoiarem, para participarem do saque e serem outros tantos tiranetes logo abaixo do tirano».
Cria-se assim uma rede de favores e dependências que a todo o custo se tenta manter, porque é uma questão de sobrevivência. Mas, é claro, que pensamento, crítica, juízo moral, liberdade, honestidade, tudo se torna impossível. O medo de perder os privilégios económicos e sociais, obtidos à custa desta servidão, aceite e agradecida, reforçará a dita servidão. A liberdade é, assim, um formalismo. Os próprios estão alienados, mas gostam porque é a própria alienação que os alimenta.
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