Estas datas são o claro-escuro de um tempo histórico que merece um pouco da nossa reflexão.
A 12 de Dezembro de 1948, ”considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (…) a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações”.
Esta Declaração solene, filha do pesadelo de uma situação que confrontou a consciência dos povos com os abismos mais profundos de uma indústria do extermínio, erigida em desígnio colectivo, foi um marco decisivo para o reconhecimento dos direitos humanos e para a sua protecção, desde 1948, face à dimensão dos crimes nazis.
Foi também o início de um longo caminho que veio a aprofundar e a reconhecer, como consta da Resolução da Assembleia Geral 32/130, de Dezembro de 1977, ”que todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes e que deve ser dada igual atenção e consideração urgente à implementação, promoção e protecção tanto dos direitos cívicos e políticos, como também dos económicos, sociais e culturais”.
Preocupação bem patente na posterior “ Declaração do Millenium”, que estabeleceu objectivos em matéria de direitos humanos e fixou prazo até 2015 para que sejam cumpridos. Ela veio aprofundar uma viragem para os problemas concretos, ao tratar nomeadamente da erradicação da fome e da miséria, promover a educação básica para todos, promover a igualdade entre os sexos, reduzir a mortalidade infantil, combater as doenças crónicas, garantir a qualidade de vida e o respeito pelo ambiente, trabalhar pelo desenvolvimento, questões que são tratadas em emblemáticos capítulos como “ Desenvolvimento e Erradicação da Pobreza”, “ Protecção do Ambiente Comum”, “Direitos Humanos, Democracia e Bom Governo”, “Protecção dos Vulneráveis”.
O espírito desta Declaração significa que o debate dos direitos humanos não pode restringir-se ao campo da teoria, à sua proclamação ou contemplação, mas que é necessário mobilizar todos para que, no seu dia a dia, cumpram o seu dever activo de cidadania de por eles lutar.
À hegemonia do neo-liberalismo económico da globalização que hoje impera, há que opor e saber construir uma globalização alternativa baseada numa ordem mundial mais livre e igualitária, mais justa e equitativa, que inverta as desigualdades estruturais e proteja a diversidade cultural. O que está em causa é um projecto de justiça global alicerçado numa universalização do princípio da reciprocidade igualitária que se traduza num dever universal de promover o bem-estar da humanidade na sua globalidade, nomeadamente os segmentos mais vulneráveis da população mundial (mulheres, pobres, perseguidos, grupos etno-culturais, etc.).
Se o Século XX foi marcado pelos esforços de implementar os direitos políticos e civis, no nosso século o grande desafio é dar garantia a esses direitos no plano económico, social e cultural.
Portugal só veio a reconhecer a Declaração Universal dos Direitos do Homem com a chegada do 25 de Abril, que proclamou o juramento constitucional do seu efectivo respeito e realização e as conquistas em praticamente em todos os domínios em que se exprimem os direitos humanos e se actualiza o processo histórico. Até esta data, os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos eram letra morta e viveu-se durante longos anos uma noite negra do seu aviltamento e supressão.
Se a vitória da democracia sobre o nacional fascismo levou à sua proclamação da DUDH, em 10 de Dezembro de 1948, em Portugal assistiu-se a uma reorganização do aparelho repressivo do Estado, com a criação, em Outubro 1945, dos Tribunais Plenários e da PIDE, a quem, mais tarde, o Decreto-lei nº 39.749 atribuiu os poderes e funções que a lei conferia à Polícia Judiciária.
É este diploma que em 9 de Agosto de 1954 confere àquela polícia política a celerada competência para vigiar os suspeitos de actividades contra a segurança exterior e interior do Estado, instruir os processos respeitantes a estes crimes, proceder à captura dos cidadãos arguidos de crimes cuja instrução lhe era confiada e, finalmente, propor a aplicação das medidas de segurança aos presos políticos, que, por sua vez, viriam a ser decididas e prorrogadas pelo Tribunal Plenário.
Estava assim criado o quadro legal que veio permitir uma persistente e dura repressão a todos os opositores ao Estado Novo e que só viria a terminar com a alvorada do 25 de Abril, que fez prevalecer os valores da liberdade aos do terror e da dominação e criou o espaço e o tempo da Democracia.
Pertenço a uma geração de advogados que pleiteou intensamente no Tribunal Plenário e de que, cerca de trinta, ainda estão vivos. Outros companheiros de jornada já não estão connosco e para eles vai a nossa indizível saudade, lembrando os seus nomes, com o risco de faltar algum: Francisco Salgado Zenha, Fernando Abranches Ferrão, João Palma Carlos, Victor Wengorovius, Duarte Vidal, Nuno Rodrigues dos Santos, Adelino Palma Carlos, Francisco Marcelo Curto, Eduardo Figueiredo, Acácio Gouveia, Heleodoro Caldeira, Cal Brandão, António Macedo, Cunha Leal, Vasco da Gama Fernandes, José Maria Martins Soares, Roque Laia, Alberto Vilaça, Alexandre Babo.
Há uma parte da vida destes advogados que permanece indissoluvelmente ligada à memória do horror deste tribunal e não existe qualquer passadismo ou nostalgia nesta evocação. Ela não procura fazer recuar os ponteiros do tempo e o tempo da história. A presença dos advogados no tribunal plenário foi assumida por uma geração com orgulho de ter lutado por ideais nobres nesses tempos de tempestuosas incertezas.
Para esses advogados foi urgente combater e resistir, lutar sempre, sempre pela liberdade, empreender a aventura de possibilitar a impossível. Para eles isso foi uma questão de honra. A honra alimenta-se desta fonte.
E se o Tribunal Plenário representa um espaço de horror e drama, ele é também um lugar simbólico da maior importância e significado, que integra uma memória e uma história exaltantes de luta pela justiça e pela liberdade, ao mesmo tempo que celebra e partilha a magia de momentos de comunhão que enobreceram os advogados com um tempo glorioso da hegemonia do bem.
E seria uma grande injustiça não lembrar que a memória do Tribunal Plenário é também a memória da dor e da humilhação indescritíveis dos homens e das mulheres cambaleantes nas salas dos interrogatórios, sonâmbulas pela tortura do sono e pelas alucinações; a memória das horas e dos dias intermináveis de medo e de ansiedade nas celas de isolamento; a memória da impotência das famílias dos presos, com as casas assaltadas pelas buscas policiais pela calada da noite; enfim, a memória, como disse um dia Fernando Rosas, da perplexidade dos filhos, então meninos, que tiveram como primeiras festas de aniversário uma visita nos parlatórios de Caxias ou Peniche.
E desses parlatórios guardo em mim, enquanto advogado e nas entrevistas que tinha com os presos, a memória dolorosa de um ambiente cheio de sofrimento e angústia, a lembrança dos olhos vermelhos que não choram e que me fizeram compreender que há dores que secam as próprias lágrimas.
Foram muitos os combates aí travados – a que um dia voltarei – salientando, por agora, um dos aspectos mais importantes e sensíveis desses confrontos: a sistemática denúncia das medidas de segurança, que podiam eternizar as penas de prisão.
Foram sempre persistentes e intensos os protestos no sentido da sua abolição, quer por parte dos advogados e dos seus órgãos representativos, quer da parte de amplos sectores da opinião pública. Da parte desta, refira-se, a título de exemplo, o ”Programa para a Democratização da República”, subscrito em 31 de Janeiro de 1961 e o comunicado dos candidatos da C.E.U.D., para as eleições de 1969. É de assinalar, neste domínio, a acção persistente e organizada da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos.
Esta mesma posição veio a constar das conclusões do “ Instituto da Conferência da Ordem dos Advogados,”de 17 de Março de 1958, documento assinado pelos prestigiados advogados que então constituíam a sua Direcção: Drs. Azeredo Perdigão, Tito Arantes, Domingos Pinto Coelho, Carlos Mourisca e Almeida Ribeiro e, ainda, da exposição, aprovada por unanimidade pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados e remetida ao Ministro da Justiça, em 19 de Fevereiro de 1965.
Que eu saiba e tanto quanto pude investigar, existem somente dois recursos para o Supremo Tribunal de Justiça sobre as medidas de segurança: um recurso de Salgado Zenha e outro da minha autoria e de Manuel Macaísta Malheiros.
Zenha, em determinado passo das suas alegações, dizia: ”…quando, ainda por cima, a medida de segurança se refira a inocentes de qualquer crime, culpados apenas de serem incómodos para a ideologia vigente, é manifesto o conteúdo inconstitucional de tal fórmula. Chame-se-lhe medida de segurança ou o que se quiser. Dentro de tal rótulo, encontraremos a realidade: uma pena de mera polícia de ideias e suspeições persecutórias”.
Nas alegações de recurso que apresentei no STJ, afirmava, designadamente, que ”a aplicação sistemática das medidas de segurança aos arguidos por crimes contra a segurança do estado, apontam-na como um instrumento de coacção política e administrativa, unicamente determinada pela estratégia de assegurar o predomínio social e político, cultural e económico do Governo. Ela degrada o direito em mero instrumento técnico, como meio de legitimar formalmente a arbitrária exclusão da comunidade nacional de parte dos seus membros”.
O STJ acabou neste caso por afirmar o carácter não automático da prorrogação das medidas de segurança, que na prática acontecia. A notícia, perante o espanto de todos passou na censura e saiu a toda a largura da primeira página da edição do “Diário de Lisboa”, de 6 de Janeiro de 1971, graças à cumplicidade de José Carlos de Vasconcelos, à data jornalista daquele vespertino.
O palco da vida do Tribunal Plenário foi sempre muito difícil e cheio de tormentas, quer para os presos políticos, quer para os advogados que os defendiam. Foi preciso aguentar as tempestades, remar sempre, sempre, mesmo com os remos partidos. Naquele palco, nunca foi cedo para continuar a lutar. Nunca é cedo para não ceder.
Este texto, é uma versão adaptada do que escrevi e devia ter lido, enquanto Presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, na cerimónia solene das comemorações do 60 aniversário da DUDH, realizada em 10 de Dezembro de 2008, no salão nobre da OA., e onde devia ter sido atribuído o Prémio Ângelo Almeida Ribeiro a todos os advogados que pleitearam no Tribunal Plenário, prémio deliberado por unanimidade por aquela Comissão, mas que veio a ser recusado pelo Conselho Geral da O.A., presidido pelo Bastonário, António Marinho e Pinto.

(*) Biografia de José Augusto Rocha
(**) 2009
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