sábado, 15 de abril de 2017

"Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!"


A 15 de Setembro de 2012 ocorreu uma das maiores manifestações no nosso país. Esse protesto não é apropriável por grupos de cidadãos ou partidos, pois pertence a todas as pessoas que nele participaram (…).
Relembramos o texto da convocatória que chamou milhares de pessoas a tomar as ruas.

Que se Lixe a Troika! Queremos as nossas Vidas!

É preciso fazer qualquer coisa de extraordinário. É preciso tomar as ruas e as praças das cidades e os nossos campos. Juntar as vozes, as mãos. Este silêncio mata-nos. O ruído do sistema mediático dominante ecoa no silêncio, reproduz o silêncio, tece redes de mentiras que nos adormecem e aniquilam o desejo. É preciso fazer qualquer coisa contra a submissão e a resignação, contra o afunilamento das ideias, contra a morte da vontade colectiva. É preciso convocar de novo as vozes, os braços e as pernas de todas e todos os que sabem que nas ruas se decide o presente e o futuro. É preciso vencer o medo que habilmente foi disseminado e, de uma vez por todas, perceber que já quase nada temos a perder e que o dia chegará de já tudo termos perdido porque nos calámos e, sós, desistimos.
O saque (empréstimo, ajuda, resgate, nomes que lhe vão dando consoante a mentira que nos querem contar) chegou e com ele a aplicação de medidas políticas devastadoras que implicam o aumento exponencial do desemprego, da precariedade, da pobreza e das desigualdades sociais, a venda da maioria dos activos do Estado, os cortes compulsivos na segurança social, na educação, na saúde (que se pretende privatizar acabando com o SNS), na cultura e em todos os serviços públicos que servem as populações, para que todo o dinheiro seja canalizado para pagar e enriquecer quem especula sobre as dívidas soberanas. Depois de mais um ano de austeridade sob intervenção externa, as nossas perspectivas, as perspectivas da maioria das pessoas que vivem em Portugal, são cada vez piores. 
A austeridade que nos impõem e que nos destrói a dignidade e a vida não funciona e destrói a democracia. Quem se resigna a governar sob o memorando da troika entrega os instrumentos fundamentais para a gestão do país nas mãos dos especuladores e dos tecnocratas, aplicando um modelo económico que se baseia na lei da selva, do mais forte, desprezando os nossos interesses enquanto sociedade, as nossas condições de vida, a nossa dignidade. 
Grécia, Espanha, Itália, Irlanda, Portugal, países reféns da Troika e da especulação financeira, perdem a soberania e empobrecem, assim como todos os países a quem se impõe este regime de austeridade. 
Contra a inevitabilidade desta morte imposta e anunciada é preciso fazer qualquer coisa de extraordinário. 
É necessário construir alternativas, passo a passo, que partam da mobilização das populações destes países e que cidadãs e cidadãos gregos, espanhóis, italianos, irlandeses, portugueses e todas as pessoas se juntem, concertando acções, lutando pelas suas vidas e unindo as suas vozes.
Se nos querem vergar e forçar a aceitar o desemprego, a precariedade e a desigualdade como modo de vida, responderemos com a força da democracia, da liberdade, da mobilização e da luta. Queremos tomar nas nossas mãos as decisões do presente para construir um futuro. 
Este é um apelo de um grupo de cidadãos e cidadãs de várias áreas de intervenção e quadrantes políticos. Dirigimo-nos a todas as pessoas, colectivos, movimentos, associações, organizações não-governamentais, sindicatos, organizações políticas e partidárias. 

Dividiram-nos para nos oprimir. Juntemo-nos para nos libertarmos!


in http://queselixeatroika15setembro.blogspot.pt/

terça-feira, 11 de abril de 2017

Páscoa na aldeia

Fotografia da minha autoria. Clicar para ampliá-la.




PÁSCOA NA ALDEIA

Minha aldeia na Páscoa...
Infância, mês de Abril!
Manhã primaveril!
A velha igreja.
Entre as árvores alveja,
Alegre e rumorosa
De povo, luzes, flores...
E, na penumbra dos altares cor-de-rosa .
Rasgados pelo sol os negros véus.
Parece até sorrir a Virgem-Mãe das Dores.
Ressurreição de Deus! (...)
Em pleno azul, erguida
Entre a verde folhagem das uveiras.
Rebrilha a cruz de prata florescida...
Na igreja antiga a rir seu branco riso de cal.
Ébrias de cor, tremulam as bandeiras...
Vede! Jesus lá vai, ao sol de Portugal!
Ei-lo que entra contente nos casais;
E, com amor, visita as rústicas choupanas.
É ele, esse que trouxe aos míseros mortais
As grandes alegrias sobre-humanas.
Lá vai, lá vai, por íngremes caminhos!
Linda manhã, canções de passarinhos!
A campainha toca: Aleluia! Aleluia! (...)
Velhos trabalhadores, por quem sofreu Jesus.
E mães, acalentando os filhos no regaço.
Esperam o COMPASSO...
E, ajoelhando com séria devoção.
Beijam os pés da Cruz.



Teixeira de Pascoaes



domingo, 9 de abril de 2017

A nossa liberdade corre riscos



Três riscos corre hoje a nossa liberdade:

1.
Primeiro, o risco de perdermos o controlo democrático sobre o nosso país. O risco de que o nosso voto valha menos ou não valha nada. O risco de ter um parlamento que não pode cumprir a sua mais nobre função: decidir sobre o orçamento dos portugueses. O risco de termos também nós, como os colonos americanos no taxation without representation, e fizeram uma revolução por causa disso. O risco de sermos governados de fora, por instituições de dúbio carácter democrático, que decidem sobre matérias de governo, em função de interesses que não são os interesses nacionais, e cujos custos o povo português paga.

2.
Segundo, o risco de que o estado abuse dos seus poderes, como já o faz. Não só o estado tem hoje uma panóplia vastíssima de meios para nos controlar e vigiar, como os usa sem respeito pela autonomia, liberdade, identidade dos cidadãos. 

Há uns anos discutimos muito que dados diversos deveria ou não juntar o Cartão do Cidadão, dados pessoais, de identificação, médicos, número de eleitor, etc.  Limitámos os dados que lá podemos colocar e temos uma entidade que fiscaliza a utilização dos nossos dados pessoais e que é suposto “protegê-los”. Muito bem.
Mas já olharam para as facturas que estão disponíveis no site das Finanças? Já olharam com olhos de ver, a vossa vida diária espelhada em cada acto em que se compra uma coisa, se almoçaram sós ou acompanhados, onde e que tipo de refeição, onde atravessamos um portal da auto-estrada, onde ficamos a dormir, que viagens fizemos?
Em nenhum sítio o estado foi mais longe no escrutínio da nossa vida pessoal do que no fisco. Com a agravante de que nenhuma relação com o estado é hoje mais desigual, onde o cidadão comum tenha os seus direitos tão diminuídos, onde objectivamente se abandonou o princípio do ónus da prova, ou seja, somos todos culpados à partida.

Em nome de quê? De que eficácia? Perguntem aos donos de offshores, aos que tem dinheiro para pagar o segredo e a fuga ao fisco, para esconder o seu património do fisco, se eles se incomodam com o fisco. Incomodar, incomodam, mas podem pagar para deixarem de ser incomodados. Já viram algum offshore de uma cabeleireira, de um feirante, de um mecânico de automóveis, de um pequeno empresário que tem um café ou um restaurante, aqueles sobre os quais o fisco actua exemplarmente como se fossem esses os seus inimigos principais? 

É por isso que se hoje se existisse uma polícia como a PIDE não precisava de mais nada do que de aceder aos bancos de dados do fisco, do Multibanco, das câmaras de vigilância, do tráfego electrónico. Podia reconstituir a nossa vida usando o Google, o Facebook, o Twitter, o Instagram. Podia encontrar demasiadas coisas em linha, até porque uma geração de jovens está a ser mais educada pelas empresas de hardware e software de comunicações, do que pela escola ou pela família. Elas têm à sua disposição múltiplos meios para desenvolveram uma cultura de devassa da privacidade, pondo em causa séculos de luta pelo direito de cada um de ter um espaço íntimo e privado e uma educação do valor da privacidade. 

3.
Terceiro, o risco de que a pobreza impeça o exercício das liberdades. A miséria, a pobreza, a precariedade, o desemprego, são maus companheiros da liberdade. A pobreza ou qualquer forma de privação do mínimo necessário para uma vida com dignidade é uma forma de dar aos poderosos o direito natural à liberdade e a dela privar aos mais fracos.
Sim, porque ser pobre é ser mais fraco. É ter menos educação e menos oportunidades de a usar, é ter empregos piores e salários piores, ou não ter nem uma coisa nem outra. É falar português pior, com menos capacidade expressiva, logo com menos domínio sobre as coisas. É ter uma experiência limitada e menos qualificações. É depender mais dos outros. É não ter outro caminho que não seja o de reproduzir nas novas gerações, nos filhos, o mesmo ciclo de pobreza e exclusão dos pais. E a exclusão reproduz-se mesmo que se tenha telemóvel e Facebook, porque o acesso ao mundo virtual e a devices tecnológicos não significa sair do círculo infernal da pobreza. É apenas “modernizá-lo”.
O agravamento na sociedade portuguesa da desigualdade social, do fosso entre pobres e ricos, é uma ameaça à liberdade  

4.
Há um risco ainda maior do que qualquer destes: o de pensarmos que não podemos fazer nada face as estas ameaças à nossa liberdade e à nossa democracia. O risco de dizermos para nós próprios que haverá sempre pobres e ricos e que a pobreza é um inevitável efeito colateral de por a casa em ordem. Mas que ordem? O risco de pensarmos que não há nada a fazer com a Europa, que eles mandam e que nós temos que obedecer porque nos colocámos a jeito com a dívida. Sim, nós colocamos-nos a jeito, mas somos membros plenos da União, temos poderes próprios, e talvez não nos ficasse mal de vez em quando exercê-los. Para além disso não somos os únicos a pensar que a deriva europeia é perigosa para as democracias nacionais. E, surpresa, muitas das regras a que chamamos “europeias” não estão em nenhum tratado, são apenas maus costumes que se implantaram nos anos da crise.


(Da Sábado e uma adaptação da intervenção feita na sessão solene em Leiria organizada pela Câmara Municipal para comemorar o 25 de Abril.)


in http://abrupto.blogspot.pt/

Vandalismo estudantil em Espanha



O DN de 9 deste mês noticia que 1.000 finalistas portugueses foram expulsos depois de causarem danos de "milhares de euros", segundo a polícia espanhola. 
Destruíram azulejos, atiraram colchões pelas janelas, esvaziaram extintores nos corredores do hotel e largaram uma televisão dentro de uma banheira. Este terá sido o cenário de destruição deixado no hotel Pueblo Camino Real, em Torremolinos, no sul de Espanha, depois da passagem furacão de mil estudantes finalistas portugueses que ali estavam hospedados.

Claro, foram postos fora do país na sexta-feira e no sábado!

Segundo aquele jornal, e nós sabemos que situações destas já ocorreram com estudantes finalistas em Espanha, em 2006 aconteceu um episódio da mesma gravidade numa unidade hoteleira em Palma de Maiorca, tendo os ditos estudantes sido expulsos, imagine-se, no seu segundo dia de estadia!

“Mau comportamento associado ao consumo excessivo de álcool e as incivilidades nas unidades hoteleiras onde estavam alojados terão ultrapassado os limites", adiantou a comissária Cláudia Andrade, da Direção Nacional da PSP.

Imbecilidades, digo eu, falta de educação e de civismo.
A educação começa e dá-se em casa. Desde o berço. Não venham, agora, criticar as escolas e os professores. Uma vergonha!

Fazem passeio de finalistas para isto? Para destruir o que vêem, para se embriagarem e fazerem o que lhes dá na cabeça, para desrespeitarem as regras, para se armarem em valentões ou valentonas de caca? Uma vergonha! 

Não têm educação, não têm princípios, não sabem comportar-se como deve ser e, muitos deles, seguramente, nem na sala de aula nem aqui! Uma vergonha!

Punição rápida e pesada para a canalhada que isto fez, a aplicar tanto pelas autoridades judiciais como pelas escolas nas quais estes vândalos estão matriculados. 


Nazaré Oliveira

quinta-feira, 30 de março de 2017

Resposta de um tripeiro às afirmações do líder do Eurogrupo Jeroen Dijsselbloem



CARTA ABERTA AO JEROEN DIJLESBOING (ou lá como é...)

Caro Sinhor, sou um cidadom europeu, do Puorto, o tal que foi eleito "Béste Déstineixion 2016", mas in antes tamvém já tinhamos o mesmo galardom em 2012 e 2014... portantanto nada de nobo! Mas diga lá uma coisa: bocê já cá beio???

Já sei: num pode bir porque estaba a fazer o Mestrado ... a...quele que disseram que bai-se a ber e afinal num tinha! Mas benha, carago! Bocês in antes de dizer essas tangas debeis bir cá e fazer tipo uma rota das tascas e da noite! Era a mêma coisa que dizer "ai e tal os países do centro da europa que até alguns diz que bibe abaixol do níbel do mar, num pode gastar o guito em tulipas, batatas fritas e festibais da canção e depois aumentar os juros dos empréstimos dos países que têm a melhor pomada e as gaijas mais boas (digo-lhe, meu amigo, que bocê armou um giga do carago em Ermesinde...)!
Quer, dezer nós aqui no sul (mas cuidado... se bocê bier ó Puorto num diga que somos do sul... senão leba um enxerto que até lhe introduzem um doutoramento na mona em 3 tempos...).
Bocê sabe o que é o presunto da "Badalhoca"? ... atençom: num tamos a falar de ninguém do centro da europa! É o nome duma tasca!
Bocê já bebeu um tinto do Douro, num bou falar do Barca Belha pra num fazer puvlicidade... ou até uma Super Bock?
Bocê sabe o são Tripas á moda do Puorto??
Num seja murcom, carago! Benha cá!!! Bocê já biu o nosso mulherio todo produzido na noite??? Já as biu ó sol na Foz??? Aton cale-se, carago!
Cum a milhor comida do mundo e as mulheres mais jeitosas, querem que o pobo gaste em quê??? Produtos tóxicos dos Bancos que faliram e que bocês num fizeram a ponta dum corno pra ebitar? Certicados de aforro que num bale um carago?
Deixe-se de tangas!!! Benha cá que depois de ir ber a náite bocê apanha uma cardina e isso passa-lhe!!! Eu até acho cajente gasta pouco nisso!
Já agora: o que é para si gastar o guito em mulheres??? Bocê conhece o Bloco de Isquerda num conhece? Para já: eles bão-se passar! Aton e a malta que é abstémica e num gosta de mulheres??? Esses som poupados por natureza? É desses que bocês gostam? A díbida de Portugal num conta coeles???
Antes de avrir essa boca, carago, veja com quem fala!!! Nós num somos os ingleses que se põem a bulir mal cheira a granel!!! Ponha-se fino, murcom do carago!!!!"


 TEXTO de PEDRO NUNO COSTA SAMPAIO (ESCRITO COM O ACORDO ORTOGRÁFICO DO PORTO)

quinta-feira, 16 de março de 2017

A Europa parece incapaz de resolver os seus próprios problemas


A Europa será capaz de aprender?

(Boaventura de Sousa Santos, in Blog OutrasPalavras, 63/03/2017)


Arrogância colonial cegou Velho Continente para inovações que se produziam no Sul Global. Agora, esgotados e incapazes de criar, europeus abrirão os olhos?
Um sentimento de exaustão histórica e política assombra a Europa e o Norte Global em geral. Após cinco séculos a impor soluções ao mundo, a Europa parece incapaz de resolver os seus próprios problemas, e entrega a sua resolução às empresas multinacionais por via de tratados de livre comércio, cujo objectivo é eliminar os últimos resquícios da coesão social e da consciência ambiental obtidas depois da segunda guerra mundial.
Nos EUA, Donald Trump é mais consequência que causa da desagregação de um sistema político altamente corrupto, disfuncional e anti-democrático, em que o candidato mais votado em eleições nacionais pode ser derrotado pelo candidato que obteve menos três milhões de votos dos cidadãos. Domina a convicção de que não há alternativas ao estado crítico a que se chegou. Os líderes mundiais, reunidos recentemente no Fórum Econômico de Davos, reconheceram que os 8 homens mais ricos do mundo têm tanta riqueza quanto a da metade mais pobre da população mundial, mas nem por isso lhes passou pela cabeça apoiar políticas que contribuam para redistribuir a riqueza. Pelo contrário, exortaram os desgraçados do mundo a melhorarem o seu desempenho para amanhã também serem ricos.
Entretanto, os instrumentos de análise e de comunicação social global de que dispomos impedem-nos de ver que fora da Europa e do Norte Global há muita inovação social e política que poderia servir de estímulo a procurar novas soluções globais que garantam um futuro politicamente mais democrático, socialmente mais solidário e ecologicamente mais sustentável. Curiosamente, algumas dessas soluções têm partido de ideias e experiências europeias (entretanto abandonadas pela Europa) reinterpretadas e reconfiguradas à luz dos diferentes contextos concretos e libertadas de dogmas e ortodoxias. Ao mesmo tempo, a Europa parece encolher, enquanto o mundo não-europeu se expande. O futuro do mundo será muito menos europeu do que foi o seu passado.
Seria lógico pensar que a Europa teria todo o interesse em conhecer melhor o que de inovador vai emergindo no mundo. Mas, para tal, a Europa devia dispor-se a interrogar o modo como ao longo da era moderna se viu como professora do mundo e imaginar-se como aluna do mundo, como co-aprendiz do futuro junto de outras regiões e culturas do mundo. Acontece que a Europa tem uma extrema dificuldade em aprender com as experiências não-europeias, em particular quando têm origem no Sul Global, devido a um persistente preconceito colonial. Afinal, como poderia a Europa beneficiar de experiências de “regiões e culturas mais atrasadas”, soluções que, além do mais, remetem para problemas que a Europa alegadamente solucionou há muito?
Como vencer este preconceito e criar uma nova disponibilidade para aprendizagens mútuas à escala global? Para responder precisamos de recuar no tempo. O período alto da Europa como poder global e imperial terminou em 1945. Quando os países periféricos do Sul Global, muitos dos quais antigas colnias europeias, se tornaram independentes e tentaram traçar a sua história num mundo pós-europeu, a jornada foi acidentada, com a Europa e os EUA a questionarem qualquer tentativa de desvinculação do sistema capitalista e a União Soviética a recusar qualquer alternativa que não a sua. O movimento dos não-alinhados, iniciado em 1955 com a Conferência de Bandung — convocada pelos presidentes Nehru (Índia), Sukarno (Indonésia), Nasser (Egipto), Nkrumah (Gana) e Tito (Jugoslávia) –, foi a primeira manifestação da intenção histórica de desenhar um caminho que fosse além da visão bipolar e contraditória que a Europa oferecia ao mundo, ora liberal e capitalista, ora marxista e socialista, dois sistemas pouco sensíveis às realidades extra-europeias, e ambos exigindo lealdade incondicional. Esta dicotomização nos assuntos mundiais, dramaticamente ilustrada pela Guerra Fria, colocou dilemas políticos irresolúveis às novas elites políticas do Sul Global, mesmo às mais distanciadas da cultura ocidental capitalista e comunista, que viam em ambos os sistemas armadilhas gémeas assentes na supremacia do “homem branco”.
O movimento dos não alinhados foi entretanto neutralizado pelo neoliberalismo global e pela queda do Muro de Berlim, e o chamado Terceiro Mundo diversificou-se ao ponto de perder conteúdo. Mas isto não impediu que novas soluções continuassem a ser pensadas e executadas. Sempre que puseram em causa o domínio do Norte Global e, em particular, do imperialismo norte-americano, tais soluções foram violentamente combatidas: do embargo a Cuba, à destruição do Iraque, da Líbia e da Síria; da Nova Ordem Econômica Mundial à neutralização dos BRICS (a cooperação entre os chamados países emergentes: Brasil, Rússia, China e África do Sul). A verdade é que, apesar disso, a tenacidade com que os povos do mundo vão procurando soluções de libertação e autonomia continua a surpreender os analistas. Não se trata de romantizar tal tenacidade ou de aceitar acriticamente as soluções que dela resultam. Trata-se apenas de iniciar uma conversa do mundo que não se esgote na discussão das soluções que uma pequena parte, a eurocêntrica, legitimou no passado. Essas soluções foram, sucessiva ou simultaneamente, o colonialismo, a evangelização, o neocolonialismo, o imperialismo, o desenvolvimento, a globalização, a ajuda externa, os direitos humanos, a assistência humanitária. Dependente destas soluções, o mundo não-europeu acabou quase sempre por adotá-las, voluntária ou compulsoriamente, residindo aí a sua subalternidade relativamente à Europa e aos EUA. Mas nunca deixou de pensar fora da caixa eurocêntrica. Neste tempo de aparente eliminação das alternativas, esse pensamento pode hoje ser precioso para lançar a possibilidade de novas aprendizagens globais como alternativa à estagnação e à guerra.
Por parte da Europa, são duas as condições principais para essa aprendizagem e nenhuma delas se coaduna como soluções rápidas. Ambas implicam a construção de uma nova visão da Europa. A primeira consiste em submeter a um debate profundo o próprio conceito de Europa. Devemos começar por ter presente que não existe uma definição oficial de “europeu”, pelo menos em termos de políticas culturais. Quantas Europas existem? Quantos são os países europeus? O que significa ser europeu? A desintegração da União Soviética, a reunificação da Alemanha e o movimento em grande escala de migrantes, trabalhadores e refugiados por toda a Europa criaram uma nova complexidade, tanto no domínio das identidades como no das fronteiras. Por esta razão, muitos autores defendem que o discurso da “identidade da Europa” é prematuro. Tal como não existe “uma Europa”, mas antes uma pluralidade de definições históricas específicas e concorrentes entre si, existem “identidades europeias” contrastantes e rivais, dependentes do desenho das fronteiras e da percepção da natureza da “Europeidade”. Os serviços de imigração e de fronteiras vão desenvolvendo as suas próprias ideias sobre a Europa e a identidade europeia, mas sem qualquer conexão com outros níveis de discussão.
A segunda condição, intimamente relacionada com a primeira, diz respeito ao que se entende por Sul Global enquanto mundo não-europeu. O Sul que confronta a Europa como “o outro” existe tanto dentro como fora da Europa. Nas primeiras décadas do século XIX, o estadista austríaco Metternich escrevia que “Asien beginnt an der Landstrasse”, ou seja, a Ásia começa numa rua da periferia de Viena, a rua onde viviam imigrantes provenientes dos Balcãs. Então, como agora, a distinção entre os Balcãs e a Europa parece clara, como se os primeiros não pertencessem à Europa. Hoje, o Sul dentro da Europa são os imigrantes; os ciganos; os filhos de imigrantes, alguns dos quais nascidos nesta mesma Europa há várias gerações, portadores de passaportes europeus, sem, no entanto, serem tidos como “europeus como os outros”. E ainda há um outro Sul dentro da Europa que particularmente nos interessa, o Sul que, sendo periférico em sentido geográfico, é-o em muitos outros sentidos. Refiro-me a Portugal, Espanha, Sul da Itália e Grécia. Historicamente sempre houve duas europas, a do centro e a da periferia, e a primeira nunca imaginou que pudesse aprender algo de positivo com a experiência da segunda.
O Sul fora da Europa tem sido entendido desde o século XV de uma forma grosseiramente reducionista. São os países fornecedores de matéria-prima e, mais tarde, mercados de consumo a explorar; países cujas catástrofes naturais tornam necessária a ajuda humanitária europeia; países incapazes de sustentar a sua população, dando origem ao problema da imigração que “aflige” a Europa; países que criam terroristas contra os quais é necessário lutar com o máximo de inclemência. Esta visão do Sul Global continua dominada pela empresa colonial. Esta estipulava que as populações e nações sujeitas à governação europeia, independentemente da diversidade do seu passado, estavam condenadas a um só futuro: o futuro ditado pela Europa. O futuro da Europa ficou assim refém dos limites que impunha ao mundo não-europeu. Quantas ideias e projetos foram descartados, desacreditados, abandonados, demonizados dentro da Europa por simplesmente não servirem o projeto colonial?
A Europa tem de voltar à escola do mundo e da sua diversidade infinita. Para aprender, tem de estar disposta a desaprender muitas das concepções sobre si própria e sobre o mundo não-europeu que a trouxeram até aqui, a este momento de grau zero da inovação social e política em que se encontra.

domingo, 12 de março de 2017