Simone Veil
(1927-2017), a sobrevivente que fez história pelas mulheres
Foi protagonista da lei que em
1974 despenalizou o aborto, europeísta convicta, magistrada e uma das figuras
políticas mais amadas de França. Antes de tudo isso, sobreviveu ao inferno dos
campos de concentração.
Foi a 26 de Novembro de 1974 que Simone
Veil subiu à tribuna da Assembleia Nacional francesa para falar em nome das 300
mil mulheres que todos os anos abortavam clandestinamente no país. “Não podemos
continuar a fechar os olhos”, disse a então ministra da Saúde, num discurso que
seria repetido por muitas outras depois dela e que a França voltou a recordar
no dia em que chorou a morte de uma das suas personalidades políticas mais
amadas.
Há muitas dimensões nos 89 anos de vida
de Veil, a jovem judia deportada para os campos de concentração nazi que
sobreviveu para se tornar magistrada e ministra, a combatente pelos direitos
reprodutivos das mulheres, a primeira Presidente do Parlamento Europeu eleito
por sufrágio universal, a constitucionalista e voz empenhada em todas as causas
em que acreditava.
“Possa o seu exemplo inspirar os nossos
compatriotas, que nele encontrarão o melhor de França”, reagiu o Presidente
Emmanuel Macron, logo depois de a família ter anunciado a sua morte. “Que a sua
vida exemplar permaneça uma referência para todos os jovens de hoje. Era uma
mulher excepcional que conheceu as maiores felicidades e as maiores tragédias
na vida”, escreveu o antigo Presidente Valéry Giscard d'Estaing, que em 1974
lhe entregou a pasta da Saúde e a tarefa – então quase suicida, sobretudo para
um Governo de direita – de fazer aprovar a despenalização da interrupção
voluntária da gravidez com que ele se comprometera na campanha.
Ela não o desiludiu, mesmo que já no
final da vida tivesse confessado que acreditava que “não iria durar mais de
umas semanas” no cargo, o tempo necessário “para cometer alguma asneira”.
Mas em vez de insegurança, mostrou
convicção, mesmo perante os piores insultos. “Nenhuma mulher recorre de ânimo
leve ao aborto. Ele continuará a ser sempre um drama”, afirmou a jovem
ministra, perante um hemiciclo onde apenas nove dos 490 lugares eram ocupados
por mulheres. O debate demorou três dias, mas a lei – que assumiria o seu nome
– acabou por ser aprovada por 284 votos a favor, fazendo de França o primeiro
país de maioria católica a despenalizar a IVG. “Se sinto orgulho? Não, mas
sinto uma grande satisfação porque isto era muito importante para as mulheres,
porque era um problema que me era caro há muito tempo”, responderia anos mais
tarde.
Sobrevivente
O carácter que a definiria – “uma
rocha”, na descrição do Libération – atribuiu-o ela própria à
sua infância e, sobretudo, à experiência inimaginável do Holocausto, que foi a
sua companhia permanente. “Tenho a convicção que no dia em que morrer, será na
Shoah que pensarei”, disse ao Le Monde em 2009.
Simone nasceu em 1927, a mais nova de
quatro filhos de uma família judia burguesa – o pai um arquitecto premiado, a
mãe forçada pelas regras da sociedade a abandonar os estudos de Química para
cuidar da família. Uma infância feliz brutalmente interrompida pela II Guerra e
a invasão nazi. A família foi presa e deportada em Março de 1944, o pai e o
irmão num comboio com destino à Lituânia, onde acabariam por morrer em
circunstâncias nunca apuradas; ela, a mãe e uma das irmãs enviadas para
Auschwitz-Birkenau. Sobreviveu aos trabalhos forçados – contou que foi
protegida por uma guarda prisional que lhe disse que “era demasiado bonita para
morrer ali” – aos quilómetros da fuga forçada através da neve que terminou no
campo de Bergen-Belsen, onde a mãe, doente com tifo, morreria dias antes da
libertação.
Com o número de prisioneira – 78651 –
para sempre tatuado no braço, Simone regressou a França, matriculou-se na
Sciences Po, onde conheceu Antoine Veil, seu marido em pouco tempo. Tiveram
três filhos e foi então que, após duras discussões conjugais, convenceu Antoine
de que não iria ficar em casa. Ele aceitou na condição que ela fosse magistrada
e sua ascensão foi imparável: em 1969 foi nomeada conselheira do então ministro
da Justiça, no ano seguinte tornou-se a primeira mulher secretária-geral do
Conselho Superior da Magistratura. Em 1974 chegaria o convite que marcou a sua
carreira política.
Europeísta convicta
Alguns sobreviventes do Holocausto
“ficaram para sempre esmagados pela imensa catástrofe. Outros demonstraram uma
energia incrível, como se o facto de terem filhos ou dedicarem-se a uma
profissão constituísse uma espécie de vitória sobre o nazismo, como se
quisessem que os seus pais desaparecidos tivessem orgulho neles. Simone Veil
pertencia sem dúvida a estes últimos”, escreveu Serge Klarsfeld, amigo e
presidente da Associação de Filhos e Filhas dos Judeus Deportados de França,
citado pelo Le Monde.
Mas a experiência do Holocausto tornou
também Simone Veil numa europeísta convicta. “A Europa arrastou por duas vezes
o mundo inteiro para a guerra. Ela deve encarnar agora a paz”, era uma das suas
favoritas, recorda o Libération. A pedido de Giscard d'Estaing
concorre às primeiras eleições europeias e acaba por assumir a presidência do
Parlamento Europeu. Jacques Delors, futuro presidente da Comissão Europeia,
recorda que entre o entusiasmo desses dias iniciais da integração europeia
Simone Veil “demonstrou ter uma qualidade rara, a do discernimento”,
sublinhando sempre as dificuldades do caminho.
Regressaria ao Governo francês em 1993,
mas seria no Conselho Constitucional, a mais alta instância judicial, que
passaria a última década da sua vida activa. Acumulou distinções – a Legião de
Honra, a Academia Francesa, a presidência da Fundação para a Memória da Shoah.
Nos últimos anos, a idade e a doença foram-na afastando da vida pública, mas
não do imaginário dos franceses, que continuavam a considerá-la uma das figuras
políticas mais populares.
“Continuo a acreditar que vale sempre a
pena batermo-nos por qualquer coisa. Digam o que disserem, a humanidade está
hoje mais suportável do que no passado”, afirmou há alguns anos ao Libération.
“Acusam-me de ser autoritária. Mas só me arrependo de não me ter batido por
esta ou aquela questão”.