Anestesiados*
"O
juiz, depois do procurador Rosário Teixeira ter pedido a prisão preventiva,
afirmou que esta medida de coação, a pecar, não era por excesso." DN de
27/1.
Tente
ignorar que esta frase respeita a um processo em que está envolvido José
Sócrates. Faça uma tentativa para esquecer que ele foi o homem que arruinou
Portugal ou o herói que lutou até ao fim contra a intervenção externa. Desta
vez, ponha para trás a sua convicção de que ele foi o melhor político português
desde D. Afonso Henriques. Ou o pior. Pode ser complicado, mas assuma que está
como praticamente toda a gente: não sabe se ele é culpado ou inocente dos
crimes pelos quais está indiciado.
Mais difícil
ainda. Tente pensar que é juiz. Que tem de julgar sem preconceitos, de esquecer
as suas simpatias e antipatias. Que as suas decisões mudam a vida de qualquer
pessoa e que não pode fundar as suas tomadas de posição em "eu cá
acho" ou porque "aquilo daquele processo do Centro Comercial"
foi muito esquisito ou porque aquelas casas eram de mau gosto ou porque "quem
cabritos vende e cabras não tem, dalgum lado lhe vem" ou porque sempre
tinha suspeitado que ali havia coisa.
Olhe para si
como alguém que tem de ser um garante do Estado de direito, que tem de cumprir
escrupulosamente a lei, de ser um bastião dos direitos consagrados na Constituição
da República Portuguesa, um ponto de equilíbrio entre quem acusa e quem
defende. Que sabe que não pode pactuar com julgamentos na praça pública, que
não os pode promover passando ou deixando passar para esgotos a céu aberto,
mascarados de jornais, pedaços de informação que devem permanecer
confidenciais. Que jamais utilizará esses lodaçais para obter na praça pública
as condenações que a lei e os seus procedimentos não permitem. Que não pode
permitir que escutas sejam tornadas públicas, nem as que interessam ao processo
nem as que não têm pingo de interesse para o que quer que seja senão para
achincalhamentos públicos. Mais, que tem de ter um extremo cuidado para que
essas não aconteçam e o mais depressa possível sejam destruídas.
Não se
esqueça, também, que tem de ter uma exata noção da importância de uma decisão
que sujeita a prisão alguém que ainda não foi, de facto, julgado. Alguém que
ainda não pode defender-se de uma forma absolutamente cabal. Já imaginou a
responsabilidade de tirar aquilo que a civilização ocidental considera o mais
precioso bem? É que não há, em qualquer sistema de justiça de uma democracia,
maior pena que a privação da liberdade.
Há, no
entanto, um juiz que considera que tem indícios tão graves, tão graves, que
está tão convicto da culpabilidade de alguém, que não só acha que ele deve
estar preso - cumprindo, claro está, os requisitos da lei, ou melhor, estando
certo de que esses requisitos se aplicam - que até pensa que devia existir uma
medida de coação mais contundente. Dado que no nosso sistema não há nenhuma
mais grave, em que é que o juiz estará a pensar? Chicotadas, tipo sharia? Não
deve ser isso - é que até para aplicar chicotadas os condenados têm de ser
julgados antes.
Aliás,
achando que a prisão preventiva, neste caso, peca por defeito, das duas uma: ou
o juiz pensa que o ex-primeiro-ministro deva ser amarrado e amordaçado para que
não possa fugir, destruir provas ou repetir os crimes pelos quais está
indiciado, ou então olha para essa prisão como uma pena e acha--a até leve.
Qual das duas possibilidades a pior.
Verdade seja
dita, nada se ganha em tentar interpretar aquela frase. Ela fala por si. Basta
que fiquemos com a certeza de que há um juiz que pensa que a prisão preventiva
não é medida de coação suficiente. Convinha, no mínimo, saber se já o tinha
dito para outros casos e qual seria a sua sugestão para algo mais grave que a
privação de liberdade sem julgamento. É que se o juiz Carlos Alexandre só fez
este tipo de comentário no caso Sócrates, parece evidente que tem um
preconceito contra o arguido em causa e que, assim sendo, não está capaz de
cumprir corretamente as suas funções neste processo. Mas se também os fez
noutros processos tem um problema mais grave, digamos assim.
De tudo, o
que mais impressiona é a forma como aquele comentário não causou um tumulto na
comunidade. Um juiz que tem os mais importantes processos deste país, faz um
comentário daquela gravidade e toda a gente encolhe os ombros. Ouvimos uma
ministra da Justiça a dizer que fala para o telefone como se fosse um gravador,
vemos peças processuais em segredo de justiça a aparecer nos jornais, escutas
circulam como se nada fosse, sentenças são lavradas dizendo que se julga
interpretando o sentir da comunidade e tudo é encarado com normalidade: a anormalidade
tornou-se normal. Só isso pode explicar que nem um único político tivesse uma
palavra sobre o assunto, que nem um editorial tivesse sido dedicado a este
assunto, que nem um único representante da justiça se tivesse indignado.
Não, o que
se passa no processo Sócrates está longe, muito longe de ser normal. Mas o mal
é mesmo maior, muito maior.
* Título original deste artigo de PEDRO
MARQUES LOPES
in http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4375059&page=-1