quinta-feira, 27 de agosto de 2015

"Homos sim, sexuais é que não"





Jornais e televisões andam desde quinta-feira a repetir um comunicado do governo segundo o qual os “homossexuais vão poder dar sangue”. Vai-se ver do que se trata e é exatamente o contrário.

Afinal, o que a Direção Geral de Saúde decidiu é que a discriminação continua e que aliás as regras vão ficar piores do que em 2010. 
O Governo anuncia que se um homem tiver tido relações com outro homem nos últimos 6 meses ou no último ano é “excluído temporariamente” de dador, independentemente de se ter protegido ou não. A notícia é por isso espantosa: agora os gays podem dar sangue, mas na condição de serem homossexuais não praticantes.
É isto que propõe o relatório do grupo de especialistas que o Governo invoca para a sua decisão? Não se sabe. Desde 2012 que nos falam do grupo de trabalho criado pelo Instituto Português do Sangue, mas a divulgação dos seus resultados foi sendo sempre adiada. Ainda em junho deste ano, juntamente com outra deputada, requeri formalmente ao Ministério que nos facultasse as conclusões do grupo de trabalho. Mesmo sendo sua obrigação constitucional, até ao momento em que escrevo, nada. Só a Lusa, pelos vistos, teve direito a conhecê-las.
Curioso é que este anúncio pomposo sobre um pretenso “recuo na discriminação” de iniciativa governamental surja ao mesmo tempo em que consultas de rastreio de doenças sexualmente transmissíveis, dirigidas a homens gay, acabam por falta de verbas: um centro único no país e considerado exemplar pela Organização Mundial de Saúde, foi encerrado porque o Ministério da Saúde decidiu deixar de financiá-lo. Sobre a preocupação com a saúde pública, tantas vezes invocada neste debate, estamos conversados.
Mas vale a pena, também por isso, lembrar brevemente a história do sangue.
Nos questionários feitos aos dadores, perguntava-se o seguinte: “se é homem, teve relações com outro homem?”. Quem respondesse que sim, era proibido de dar sangue. Em 2010, o Parlamento aprovou, sem nenhum voto contra, uma resolução do Bloco para acabar com essa pergunta. Fê-lo por duas razões. Primeiro, porque a questão não dava nenhuma garantia, uma vez que não perguntava aquilo que verdadeiramente interessa, que é saber se a pessoa se protegeu ou não. Segundo, porque esse critério de exclusão constituía um desperdício, já que inibia a recolha de sangue de quem, dormindo com homens, não tinha comportamentos de risco.
A decisão do Parlamento mereceu consenso e o problema parecia estar ultrapassado. Mas não estava. Houve técnicos de saúde que continuaram a fazer a pergunta oralmente e a utilizar a orientação sexual para excluir pessoas. Em 2012, o Ministro decidiu suspender a decisão de acabar com a discriminação e criou um grupo de trabalho para empatar, cujo mandato de três meses se prolongou por três anos. Hélder Trindade, o presidente do IPST, expunha no final de abril deste ano, na comissão de saúde, o pensamento do Governo agora vertido em despacho: os homossexuais podiam dar sangue, desde que fossem abstinentes.
Os argumentos para sustentar esta posição são sempre os mesmos. É assim “lá fora” e é uma questão “científica”. Acontece que nem um nem outro são verdade. Em Espanha, por exemplo, esta questão não existe nos questionários. E sobre dados “científicos”, o raciocínio apresentado é uma pura falácia.
Os estudos sobre prevalência do VIH mostram que esta é maior entre “homens que têm sexo com homens” do que entre homens que têm sexo com mulheres, o que se explicaria pela maior perigosidade do sexo anal desprotegido. Os mesmos estudos indicam que em Lisboa a incidência de VIH Sida é mais do dobro (31 casos por 100 mil habitantes) que no Porto (14 por 100 mil). Um e outro dado são estatisticamente objetivos? São. Concluir daí que “morar em Lisboa” é um fator de risco e que, portanto, quem mora na capital (ou ali morou no último ano) deve ser proibido de dar sangue não é científico. É estúpido. O mesmo se passa com a categoria “homens que têm sexo com homens”. Tal como os lisboetas não contraem VIH por serem lisboetas, os homens não contraem o vírus por dormirem com homens. Num caso e noutro, contraem por não se protegerem. Por isso, é sobre esse comportamento que interessa fazer a pergunta (“Nas relações sexuais que teve, protegeu-se? De que forma?”). E é essa que continua a não ser feita.
Mais uma vez, portanto, se insiste no erro e não nos concentramos na saúde pública. E o problema é que, quando se sobrepõe o preconceito ao rigor, as vítimas não são apenas os alvos diretos da discriminação. Somos todos.


Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.


22 de Agosto 2015