Jornais e televisões andam desde quinta-feira a repetir um comunicado do
governo segundo o qual os “homossexuais vão poder dar sangue”. Vai-se ver do
que se trata e é exatamente o contrário.
Afinal,
o que a Direção Geral de Saúde decidiu é que a discriminação continua e que
aliás as regras vão ficar piores do que em 2010.
O Governo anuncia que se um
homem tiver tido relações com outro homem nos últimos 6 meses ou no último ano
é “excluído temporariamente” de dador, independentemente de se ter protegido ou
não. A notícia é por isso espantosa: agora os gays podem dar sangue, mas na
condição de serem homossexuais não praticantes.
É
isto que propõe o relatório do grupo de especialistas que o Governo invoca para
a sua decisão? Não se sabe. Desde 2012 que nos falam do grupo de trabalho criado pelo Instituto
Português do Sangue, mas a divulgação dos seus resultados foi sendo sempre
adiada. Ainda em junho deste ano, juntamente com outra deputada, requeri formalmente ao Ministério
que nos facultasse as conclusões do grupo de trabalho. Mesmo sendo
sua obrigação constitucional, até ao momento em que escrevo, nada. Só a Lusa,
pelos vistos, teve direito a conhecê-las.
Curioso
é que este anúncio pomposo sobre um pretenso “recuo na discriminação” de
iniciativa governamental surja ao mesmo tempo em que consultas de rastreio de doenças
sexualmente transmissíveis, dirigidas a homens gay, acabam por falta de verbas:
um centro único no país e considerado exemplar pela Organização Mundial de
Saúde, foi encerrado porque o Ministério da Saúde decidiu deixar de
financiá-lo. Sobre a preocupação com a saúde pública, tantas vezes invocada
neste debate, estamos conversados.
Mas
vale a pena, também por isso, lembrar brevemente a história do sangue.
Nos
questionários feitos aos dadores, perguntava-se o seguinte: “se é homem, teve
relações com outro homem?”. Quem respondesse que sim, era proibido de dar
sangue. Em 2010, o Parlamento aprovou, sem nenhum voto contra, uma resolução do Bloco para
acabar com essa pergunta. Fê-lo por duas razões. Primeiro, porque a
questão não dava nenhuma garantia, uma vez que não perguntava aquilo que
verdadeiramente interessa, que é saber se a pessoa se protegeu ou não. Segundo,
porque esse critério de exclusão constituía um desperdício, já que inibia a
recolha de sangue de quem, dormindo com homens, não tinha comportamentos de
risco.
A
decisão do Parlamento mereceu consenso e o problema parecia estar ultrapassado.
Mas não estava. Houve técnicos de saúde que continuaram a fazer a pergunta
oralmente e a utilizar a orientação sexual para excluir pessoas. Em 2012, o
Ministro decidiu suspender a decisão de acabar com a discriminação e criou um
grupo de trabalho para empatar, cujo mandato de três meses se prolongou por
três anos. Hélder Trindade, o presidente do IPST, expunha no final de abril
deste ano, na comissão de saúde, o pensamento do Governo agora vertido em
despacho: os homossexuais podiam dar
sangue, desde que fossem abstinentes.
Os
argumentos para sustentar esta posição são sempre os mesmos. É assim “lá fora”
e é uma questão “científica”. Acontece que nem um nem outro são verdade. Em
Espanha, por exemplo, esta questão não existe nos questionários. E sobre dados “científicos”,
o raciocínio apresentado é uma pura falácia.
Os estudos sobre prevalência do VIH mostram
que esta é maior entre “homens que têm sexo com homens” do que entre
homens que têm sexo com mulheres, o que se explicaria pela maior
perigosidade do sexo anal desprotegido. Os mesmos estudos indicam que
em Lisboa a incidência de VIH Sida é mais do dobro (31 casos por 100 mil
habitantes) que no Porto (14 por 100 mil). Um e outro dado são estatisticamente
objetivos? São. Concluir daí que “morar em Lisboa” é um fator de
risco e que, portanto, quem mora na capital (ou ali morou no último
ano) deve ser proibido de dar sangue não é científico. É estúpido. O mesmo se
passa com a categoria “homens que têm sexo com homens”. Tal como os
lisboetas não contraem VIH por serem lisboetas, os homens não contraem o vírus
por dormirem com homens. Num caso e noutro, contraem por não se protegerem. Por
isso, é sobre esse comportamento que interessa fazer a pergunta (“Nas relações
sexuais que teve, protegeu-se? De que forma?”). E é essa que continua a não ser
feita.
Mais uma
vez, portanto, se insiste no erro e não nos concentramos na saúde pública. E o
problema é que, quando se sobrepõe o preconceito ao rigor, as vítimas não são
apenas os alvos diretos da discriminação. Somos todos.
Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
22 de Agosto 2015