A consagração dos mortos pela hipocrisia dos vivos
O festival de
hipocrisia que avassala Portugal sempre que morre um consagrado “consensual”
revela as nossas enormes fragilidades no espaço público.
Não
há tão bom revelador do que é a elite portuguesa do que a maneira como trata os
mortos que entende serem “seus”. O festival de hipocrisia que avassala Portugal
sempre que morre um consagrado “consensual” revela as nossas enormes
fragilidades no espaço público, e uma mistura de reverência oca, de ignorância,
de imenso provincianismo e de uma ritualização pobre e subdesenvolvida. E aqui
os media e o poder político vivem em simbiose total.
Merecem Eusébio,
Herberto Helder, Manoel de Oliveira, José Silva Lopes, as homenagens dos
portugueses? Merecem sem dúvida, mesmo do “país” se o houvesse. Só que não
merecem estas “homenagens” político-mediáticas que tornam cada uma destas
figuras peças de cera de um museu morto, que se empacotam numa prateleira logo
que termina a exploração da sua morte e venha o esquecimento.
Deixemos Eusébio que
tem características especiais, uma das quais ser, nesta lista, o único
conhecido pelo povo e o mais “sentido” pelo povo, em Portugal, mas
principalmente em Moçambique. Aceitem esta simples dicotomia povo-elites que
uso apenas por comodidade de expressão e para não pesar sobre a economia do
texto.
Todos os outros são
praticamente desconhecidos pela maioria dos portugueses, e se formosa
falar da sua obra, então são tão remotos ao comum do povo como Xenófanes
de Cólofon. Só que o povo não se põe a falar destes homens como se os
conhecesse de intimidade, tivesse estudado a sua obra e por isso pudesse fazer
juízo de valor. Essa presunção não tem.
Herberto Helder é um
completo desconhecido, pelo povo e pela maioria das nossas elites, que agora
aparecem todas como íntimas de um poeta singular e difícil, que nunca leram e
sobre o qual disseram não só as maiores banalidades, como enormidades. Manoel
de Oliveira, que chegava ao povo mais por ter 106 anos do que pela sua obra,
era “conhecido” por ser autor de filmes intragáveis, que ninguém via até o fim,
ou sequer até ao principio, e gozado por filmar horas de filme em que nada
acontecia ou por fazer fotografia e não cinema. Fazia parte de um certo
anedotário que servia para mostrar desprezo pela cultura e pelos intelectuais,
ou então, no extremo oposto, como um génio intocável, que em tudo o que mexia
produzia arte intangível na sua grandeza absoluta. Estas duas atitudes são
aliás mais próximas do que se imagina, porque criam um ecrã sobre a obra que
dificulta um julgamento equilibrado e o exercício crítico.
A ignorância sobre
Herberto Helder manifestou-se também por este mesmo desequilíbrio, reduzindo a
história da poesia portuguesa do século XX a dois “génios”, Pessoa e Helder.
Pelo caminho, já esquecidas, estão idênticas apreciações sobre, por exemplo,
Eugénio de Andrade, Sophia e outros.
Por ironia destas
coisas, o menos comemorado, em parte porque todas as televisões, rádios e
jornais já tinham há muito preparado as peças necrológicas para Manoel de
Oliveira, e de Helder não havia muitas imagens, foi José Silva Lopes, o único
que as nossas elites políticas conheciam, tal como os espectadores habituais do
cabo, porque já não tinha mérito para ocupar os preciosos minutos da televisão
generalista. Silva Lopes também teve até agora a singularidade de não ter tido
internacionalmente as necrologias habituais, mas um pequeno artigo de opinião
no New York Times online, nem mais nem menos do que do Nobel da
Economia Paul Krugman. Por isso, está tudo trocado, e uma coisa é a repercussão
pública oficial, com direito a mensagem televisionada do Presidente no caso de
Oliveira, e vários dias de luto nacional, outra é a realidade da relação entre
estas personalidades e a consciência colectiva portuguesa, quer a do povo, quer
a das elites.
Tudo isto se passa
num dos momentos em que a nossa elite política no poder mais afastada está de
qualquer preocupação intelectual e, com algumas raras excepções, com elevados
níveis de ignorância sobre qualquer matéria desta natureza. Por isso é que se
agarram ao discurso pomposo da comemoração necrológica, que lhes dá uma espécie
de álibi cultural que, de outra maneira, não poderiam ter. Quanto mais
ignorantes, mais comemorativos, podia ser um axioma dos nossos dias.
O problema não está
apenas na parte do dinheiro que vai para a “cultura”, questão que nunca
considerei ser uma questão de cultura mas de “política de espírito”, ou seja, a
propaganda moderna que os Estados e os governos fazem usando a intangibilidade
das artes e da literatura para se promoverem ou aos seus chefes. O melhor
exemplo é a longa continuidade da política de Malraux, depois de Lang, e no
nosso caso de Manuel Maria Carrilho. Entre os seus cultores nacionais estão
políticos como Santana Lopes, que aliás mereceu elogios de muita gente que hoje
quer certamente esquecer-se de que foi “santanista” na altura útil. Aliás,
muita gente que se proclama liberal e de direita é francamente a favor da
subsidiação dos “criadores” e das “bolsas de escritores” e outras
perversidades.
Mas, pelo contrário,
entendo que o melhor que se pode fazer é tratar da cultura como uma questão
patrimonial, de educação, e mesmo de “indústria”, e aí há muita coisa a fazer
que os nossos homens do poder não fazem, e não querem fazer. Temos muito
património a esboroar-se, muito património a vender-se mais ou menos às claras
no estrangeiro, muita educação para as artes, quando existe, no mesmo estado
degradado do Conservatório, e mesmo uma “indústria cultural” muito para além da
Joana Vasconcelos, que se “vende” bem.
Se se quer ajudar as
pessoas a compreender o valor de Oliveira ou Herberto Helder, ou melhor ainda,
a serem “tocados” pelas suas obras, naquilo em que a criação nos muda, troco
dias de mensagens, votos de pesar, funerais nacionais (e agora até a obrigação
de colocar os corpos no Panteão...) e luto oficial, por medidas minimalistas
que ajudem a que se conheça a poesia portuguesa ou o cinema nacional.
Seja fazer com que
nas livrarias e nas bibliotecas das escolas haja os clássicos portugueses em
edições límpidas e seguras, baratas e agradáveis (experimentem procurar o Crisfal
ou a Menina e Moça), que nas escolas os professores possam fazer clubes
de recitação, haja concursos nacionais de recitação (com o “serviço público de
televisão” ao lado); se forneça material de vídeo e se ensine a filmar, a
montar um filme, a ir para além dos vídeos do YouTube, depois de se saber fazer
vídeos para o YouTube; se forneçam os laboratórios das escolas para se poderem
fazer experiências de física e química; se ensine a “ler” um quadro ou uma
escultura, e, acima de tudo, que se ajude a curiosidade, mais do que as
abstractas “metas” das disciplinas escolares.
Estas atiram alunos,
que nunca leram um livro, para os Maias do Eça, cujo vocabulário,
metáforas, histórias mitológicas ou bíblicas desconhecem de todo, ou a aprender
nomenclaturas gramaticais que são decoradas e esquecidas no dia seguinte, ou a
atirar estudantes para Descartes e Kant (imaginem!) sem qualquer cultura geral
seja do que for.
Querem comemorar os
nossos mortos consagrados? Ajudem os vivos a percebê-los e não a colocá-los
numa prateleira, receando que o que haja de subversivo na sua criação saia de
lá e chegue à rua. O poder precisa de múmias e não de arte ou cultura, e,
nestes dias, a indústria de mumificação está em pleno.
04/04/2015 - 01:45
José Pacheco
Pereira, Historiador,
in PÚBLICO