quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Vaclav Havel e a inesgotável paixão pela liberdade


Agora, que Vaclav Havel, o herói da "revolução de veludo", morreu, celebremos a paixão inesgotável da sua vida - a liberdade1. "Eu estava aqui, no centro de Praga, quando ele foi eleito Presidente a primeira vez. Graças a Vaclav Havel, a minha vida mudou, pude estudar o que queria, viajei, escolhi os meus representantes e exprimi publicamente as minhas opiniões". Esta afirmação foi proferida no domingo à noite por um cidadão checo de 43 anos de idade. Não é possível melhor epitáfio.

Agora, que Vaclav Havel, o herói contemporâneo da "revolução de veludo", morreu, celebremos a paixão inesgotável da sua vida - a liberdade. Antes do Presidente houve o dissidente e, no princípio de tudo, havia um jovem dramaturgo seguidor de Kafka e influenciado por Beckett e Ionesco que inscrevia os seus trabalhos literários na tradição do teatro do absurdo. Havel começou por ser um grande criador da linguagem, e isso viria a ter a maior importância na sua trajectória cívica e política. Oriundo das classes abastadas da capital checoslovaca, e só por isso imediatamente perseguido pelos apparatchik comunistas, esses fanáticos da mediocridade enaltecida como consumação de um igualitarismo infantil, ele rapidamente se impôs, nos meios intelectuais do seu país, pelo poder corrosivo da sua obra dramática. O seu génio aplicava-se à desmistificação de um sistema totalitário fundado na permanente perversão das palavras. Se é verdade que todas as ditaduras recorrem à subversão da linguagem, essa forma especialmente repulsiva do cinismo político, não é menos certo que os regimes comunistas levaram tal procedimento até aos limites do impensável. Nas suas peças teatrais, Havel denunciava esse mundo opressivo e burocrático em que as palavras tinham perdido todo o significado e qualquer relação com a realidade. A contundência da crítica foi percebida pelas autoridades comunistas que reagiram com violência, reprimindo ferozmente aquele que passaram a considerar como "perigoso elemento anti-socialista". Proibiram-no de levar a cabo qualquer actividade artística, perseguiram-no e prenderam-no. Na sua imensa boçalidade, transformaram o intelectual crítico num herói cívico.

O dramaturgo assumiu corajosamente o papel do dissidente. Os tanques de guerra soviéticos que ocuparam as ruas de Praga nessa já distante Primavera de Praga esmagaram pela força a esperança nascente de uma via alternativa e não autoritária de edificação de uma sociedade socialista, mas não destruíram a vontade daqueles que entenderam que cada pessoa podia opor uma forte resistência moral ao sistema autocrático e que da associação de múltiplos actos de insubmissão individual poderia resultar uma grande mudança colectiva. Havel foi um desses homens corajosos que não desistiram. A sua actuação oposicionista intensificou-se. Publicou, com outros resistentes, a famosa carta 77, documento de grande significado histórico no processo de contestação às tiranias do Leste Europeu. Nenhum silêncio autoritariamente imposto asfixiou a sua rebeldia. Na sua luta pela liberdade nunca tergiversou, jamais cedeu. Pouco a pouco, a sua dimensão moral foi-se afirmando como uma referência política fundamental e, não por acaso, na sequência dos acontecimentos revolucionários de 1989, foi consensualmente escolhido para assumir a Presidência da República, na hora do reencontro do seu país com a democracia e com a liberdade. Era o tempo em que multidões delirantes, constituídas sobretudo por jovens, invadiam as ruas geladas de Praga gritando "Havel para o Castelo", em alusão à residência oficial do Presidente da República. Vem aliás a propósito lembrar que nessa altura alguns jovens portugueses imbuídos de um espírito generoso deslocaram-se a Praga na intenção de exprimirem o seu apoio aos estudantes em luta e aí conheceram, em circunstâncias singulares, numa cave onde funcionava um clube de jazz, o próprio Havel, que os recebeu com grande entusiasmo. Recordo-me ainda hoje da emoção com que o meu amigo Álvaro Beleza se referia a esse momento único.

Aclamado pelo seu povo, este intelectual cujo compromisso cívico resultava quase exclusivamente do seu amor pela liberdade, ascendia ao exercício de um poder que verdadeiramente nunca procurou. Como se ele próprio se transformasse numa personagem do teatro do absurdo. Entre a cadeia e o Castelo, o percurso de Havel é a história de uma inteligência intransigente, culta e profundamente livre.

Como Presidente, primeiro da Checoslováquia e depois da República Checa, acabou por seguir o trajecto inevitável dos homens políticos - fez opções, emergiu a via do consenso, dividiu, algumas vezes desiludiu. A sua grande dimensão intelectual e a sua grandeza moral não foram, porém, em nenhuma ocasião postos em causa. E mesmo quando, como no momento da invasão americana do Iraque, que apoiou, adoptou posições mais controversas, estou certo que actuou em obediência à preocupação de promoção da democracia e da liberdade. Há homens que se enganam por razões demasiado nobres para poderem ser alvos da crítica fácil. Era o caso de Havel.

Em 1997, este antigo dissidente anticomunista não hesitou em denunciar o "grande erro que consiste em pretender reduzir o homem a um simples produtor de lucro". A hegemonia de um capitalismo opressivo causava-lhe perturbação e, no fundo, a sua obra também anuncia a crítica do tempo em que vivemos, com o risco de aniquilação de aspectos fundamentais do indivíduo e destruição da dignidade humana. Importa, contudo, não relativizar as coisas - por muito injusta e inquietante que seja a época que presentemente atravessamos no Ocidente, ela não tem nada a ver com esse período de trevas que o comunismo representou em vários países europeus. A facilidade com que hoje, por ignorância ou má-fé, se utiliza a palavra totalitarismo, constitui um verdadeiro insulto àqueles que como Havel enfrentaram os efeitos do totalitarismo soviético dentro dos seus próprios países.

Em 1989, alguém escreveu que a primeira consequência da queda dos regimes de Leste consistia na reunificação da linguagem no espaço cultural europeu. Havel, pelo seu génio e pela sua indomável coragem, contribuiu para que isso acontecesse. A sua vida mudou muitas vidas, o seu percurso tornou muitos outros percursos possíveis, a sua luta pela liberdade alterou radicalmente milhões de existências individuais.

Quando chegou ao Castelo de Parga, investido nas funções presidenciais, ocorreu-lhe proferir uma afirmação simples, mas plena de significado - "o meu poder é o poder dos sem poder". Bem sabemos que as coisas nunca são exactamente assim, mas, sem homens como ele, seriam insuportavelmente piores. Como já foram no passado. Como nada nos garante que não voltem a ser no futuro. E essa também é uma boa razão para homenagearmos e lembrarmos a vida extraordinária de um homem que foi nosso contemporâneo e lutou, com as armas da sua inteligência, da sua cultura e do seu carácter, pela afirmação da liberdade. Esse homem chamava-se Vaclav Havel e projectou-se de Praga para o Mundo.

Francisco Assis -22-12-2011 in PÚBLICO deste dia