Com a devida vénia, um excelente artigo do Sr. Dr. Guilherme d`Oliveira Martins, publicado no blogue do Centro Nacional de Cultura no dia 3.10.2011.
«Liberdade– Ensaio sobre um novo compromisso social pela Educação» de Joaquim Azevedo (Fundação Manuel Leão, 2011) é um conjunto de reflexões sobre a educação e a aprendizagem de alguém que conhece bem esse mundo e que nos propõe, com seriedade, pistas de ação, para além dos lugares comuns e das simplificações que tantas vezes são ouvidas quando se trata destes temas.
DIGNIDADE E AUTORIA
Começo por referir um amigo comum, que nos deixou não há muito e que Joaquim Azevedo cita no início deste seu livro – falo de Joaquim Pinto Machado, cidadão exemplar, homem bom, que ao longo da vida nunca se poupou na tarefa de pôr a dignidade e a liberdade no primeiro lugar das preocupações da sociedade portuguesa. Disse ele, um dia, «a dignidade do ser humano é ser autor». Esta referência é fundamental e está ligada à ideia de «autoridade moral», já que etimologicamente vem da autoria, da criatividade, da responsabilidade, da afirmação prática da dignidade. Ao longo da vida, ouvi sempre Joaquim Pinto Machado a falar dos valores éticos enraizados na vida, ligados ao facto de a pessoa humana ter de ser colocada no centro da história e da sociedade. E quando falamos de educação é essa centralidade que tem de ser afirmada (como no-lo ensinou, por exemplo, Henri Marrou). Tenho encontrado, porém, uma grande dificuldade em debater seriamente os temas da educação, há demasiados preconceitos e grandes resistências a pôr na mesa o que realmente está em causa. Há muitas pessoas convencidas de que têm soluções, mas assentam em pressupostos tantas vezes errados que prejudicam seriamente a apresentação de pistas viáveis no sentido de melhorar a educação e a aprendizagem e de as tornar um fator de exigência e de qualidade. Este livro de Joaquim Azevedo é um contributo sereno para o debate. Contém uma análise correta, fundamentada e recusa a demagogia simplificadora.
UM CAMINHO DE PROGRESSOS
Ao falarmos de Educação temos de começar por dizer, como faz o autor desta obra, que vivemos em Portugal nos últimos quarenta anos um caminho longo de progressos, mas também de perplexidades, de avanços e recuos. Em 1974, havia vinte cinco por cento de analfabetos, que era a taxa mais elevada da Europa, a grande distância dos demais Estados. Apesar dos esforços efetivos, sobretudo depois do final dos anos sessenta, em razão da internacionalização e do fim da autarcia, a democratização ocorreu como consequência direta da nova ordem constitucional iniciada em 1974, consolidada a partir de 1976 e 1982, e que deu lugar à Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986. No entanto, houve desde o início hesitações e erros com consequências irreversíveis, em especial a prevalência de uma via única no ensino secundário, ao invés da diversidade prevista na reforma não concretizada de Veiga Simão. E importa reconhecer que desde muito cedo o autor deste livro teve a exata compreensão do papel crucial que o ensino secundário desempenha – como resultou da sua ação no âmbito das escolas profissionais, experiência fundamental para romper a velha inércia da indiferenciação de vias. De facto, como nos diz Joaquim Azevedo: «não podemos oferecer o mesmo tipo de formação a todos, pensando que estamos a oferecer o melhor percurso a cada um» (p.55). E o certo é que «o sistema escolar continua muito ineficaz e ineficiente, sobretudo nas transições entre ciclos de estudo e no ensino secundário» (id.). Impõe-se, assim, inscrever a educação no espaço público. Se o «santuário ruiu» (porque o saber deixou de ser administrado isoladamente do mundo, acessível a poucos, passando a apontar-se para uma escola de qualidade para todos) é fundamental empenharmo-nos em superar os bloqueamentos perante os quais estamos: a educação não é um problema técnico, mas político e de cidadania; exige o apoio às famílias; a diferenciação das aprendizagens; a mobilização dos professores para as tarefas que lhes cabem; o estabelecimento de um clima de confiança com as escolas, de modo a favorecer a autonomia; o primado da responsabilização; a superação da dicotomia Estado / mercado; e a recusa do populismo, do cinismo e da demagogia. Em vez da desconfiança e da irresponsabilidade, do que se trata é de pôr a autonomia como ideia e prática no centro do funcionamento das escolas.
LEMBRAR CELESTIANO…
O velho Celestiano, de Mia Couto, acusa a facilidade quando diz «onde é sempre meio-dia, tudo é noturno». De facto, a facilidade na escola, a festa e a tentação de deixar tudo pela rama, tem consequências dramáticas. O que distingue o progresso do atraso é a capacidade de aprender. Não basta investir em Educação, importa traduzir as apostas em qualidade, exigência, avaliação e prestação de contas (no sentido da responsabilidade cidadã). E quando se discute se o objetivo da educação é a preparação para o mercado trabalho – temos de contrapor, com coragem e determinação, que formamos pessoas, que queremos criar cidadãos livres e responsáveis – os bons profissionais virão por acréscimo. Daí que a autonomia seja pedagogicamente ativa – exerce-se em nome da cidadania responsável, por contraponto à irresponsabilidade. Por isso a autonomia assenta: na pessoa humana, no centro da escola, na solidariedade como método de entreajuda e cooperação e na subsidiariedade, resolvendo os problemas o mais próximo possível das pessoas. Mas exercer a autonomia, tornando a escola central e não periférica, obriga ao gradualismo, ao aperfeiçoamento permanente, e ao exercício das tarefas cometidas a cada um. O triângulo escola / família / comunidade tem de ser levado a sério. Os pais devem participar na escola, mas não confundir o seu papel com o dos professores - têm de interagir com a escola. Infelizmente, ou chegam tarde demais ou invadem territórios dos profissionais. O equilíbrio é fundamental – nem tarde demais nem para além do desejável.
O SERVIÇO PÚBLICO DE EDUCAÇÃO
Como defendi com Eduardo Marçal Grilo, o serviço público de educação não pode resumir-se à iniciativa estatal. Estamos perante a necessária complementaridade de iniciativas, uma rede de escolas com estatutos diferentes, exercendo cada vez mais a sua autonomia, com um objetivo comum. E a verdade é que as escolas devem ser mais autónomas e ativas, como lugares de trabalho, de liberdade e de democracia. Eis por que razão concordo com Joaquim Azevedo sobre a necessidade de uma visão antimonopolística, policêntrica, com uma autêntica regulação responsabilizadora nas escolas. Assim, a interação entre a pessoa e a comunidade, a vivência da laicidade (por contraponto ao laicismo), a sociedade providência e a solidariedade voluntária (ou a importância crescente da responsabilidade social) tornam a rede escolar como ponto de encontro de diversas iniciativas, que tem de valorizar a aprendizagem. A ideia de compromisso surge, assim, com naturalidade: a partir do empenhamento pessoal e cívico (engagement), do exercício da autonomia, do acordo e da cooperação em nome do bem comum e de uma auto-avaliação praticada por escolas que aprendem. «Escolham o que escolherem fazer com a vossa vida, garanto-vos que não será possível a não ser que estudem» (Obama). Trabalho, disciplina, profissionalismo – eis o que tem de estar presente quando falamos de educação de qualidade para todos. E em nome da esperança e do aperfeiçoamento gradual, melhor educação terá de significar: ensinar a pensar, favorecer a responsabilidade pública, ter amor à aprendizagem e ao sentido crítico, garantir oportunidades para todos, incentivar a qualidade, a confiança, a inclusão e a cooperação. No fundo, «a educação é essa “arte” de promover o desenvolvimento humano de cada pessoa, que só se des-envolve verdadeiramente na medida em que é acolhida pelo outro, que lhe dá em si um lugar; o outro des-oculta-me solidariamente, convocando toda a comunidade indizível que me habita» (p.124). Jorge de Sena diria: «uma pequena luz bruxuleante / brilhando incerta mas brilhando».
Guilherme d'Oliveira Martins
«Liberdade– Ensaio sobre um novo compromisso social pela Educação» de Joaquim Azevedo (Fundação Manuel Leão, 2011) é um conjunto de reflexões sobre a educação e a aprendizagem de alguém que conhece bem esse mundo e que nos propõe, com seriedade, pistas de ação, para além dos lugares comuns e das simplificações que tantas vezes são ouvidas quando se trata destes temas.
DIGNIDADE E AUTORIA
Começo por referir um amigo comum, que nos deixou não há muito e que Joaquim Azevedo cita no início deste seu livro – falo de Joaquim Pinto Machado, cidadão exemplar, homem bom, que ao longo da vida nunca se poupou na tarefa de pôr a dignidade e a liberdade no primeiro lugar das preocupações da sociedade portuguesa. Disse ele, um dia, «a dignidade do ser humano é ser autor». Esta referência é fundamental e está ligada à ideia de «autoridade moral», já que etimologicamente vem da autoria, da criatividade, da responsabilidade, da afirmação prática da dignidade. Ao longo da vida, ouvi sempre Joaquim Pinto Machado a falar dos valores éticos enraizados na vida, ligados ao facto de a pessoa humana ter de ser colocada no centro da história e da sociedade. E quando falamos de educação é essa centralidade que tem de ser afirmada (como no-lo ensinou, por exemplo, Henri Marrou). Tenho encontrado, porém, uma grande dificuldade em debater seriamente os temas da educação, há demasiados preconceitos e grandes resistências a pôr na mesa o que realmente está em causa. Há muitas pessoas convencidas de que têm soluções, mas assentam em pressupostos tantas vezes errados que prejudicam seriamente a apresentação de pistas viáveis no sentido de melhorar a educação e a aprendizagem e de as tornar um fator de exigência e de qualidade. Este livro de Joaquim Azevedo é um contributo sereno para o debate. Contém uma análise correta, fundamentada e recusa a demagogia simplificadora.
UM CAMINHO DE PROGRESSOS
Ao falarmos de Educação temos de começar por dizer, como faz o autor desta obra, que vivemos em Portugal nos últimos quarenta anos um caminho longo de progressos, mas também de perplexidades, de avanços e recuos. Em 1974, havia vinte cinco por cento de analfabetos, que era a taxa mais elevada da Europa, a grande distância dos demais Estados. Apesar dos esforços efetivos, sobretudo depois do final dos anos sessenta, em razão da internacionalização e do fim da autarcia, a democratização ocorreu como consequência direta da nova ordem constitucional iniciada em 1974, consolidada a partir de 1976 e 1982, e que deu lugar à Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986. No entanto, houve desde o início hesitações e erros com consequências irreversíveis, em especial a prevalência de uma via única no ensino secundário, ao invés da diversidade prevista na reforma não concretizada de Veiga Simão. E importa reconhecer que desde muito cedo o autor deste livro teve a exata compreensão do papel crucial que o ensino secundário desempenha – como resultou da sua ação no âmbito das escolas profissionais, experiência fundamental para romper a velha inércia da indiferenciação de vias. De facto, como nos diz Joaquim Azevedo: «não podemos oferecer o mesmo tipo de formação a todos, pensando que estamos a oferecer o melhor percurso a cada um» (p.55). E o certo é que «o sistema escolar continua muito ineficaz e ineficiente, sobretudo nas transições entre ciclos de estudo e no ensino secundário» (id.). Impõe-se, assim, inscrever a educação no espaço público. Se o «santuário ruiu» (porque o saber deixou de ser administrado isoladamente do mundo, acessível a poucos, passando a apontar-se para uma escola de qualidade para todos) é fundamental empenharmo-nos em superar os bloqueamentos perante os quais estamos: a educação não é um problema técnico, mas político e de cidadania; exige o apoio às famílias; a diferenciação das aprendizagens; a mobilização dos professores para as tarefas que lhes cabem; o estabelecimento de um clima de confiança com as escolas, de modo a favorecer a autonomia; o primado da responsabilização; a superação da dicotomia Estado / mercado; e a recusa do populismo, do cinismo e da demagogia. Em vez da desconfiança e da irresponsabilidade, do que se trata é de pôr a autonomia como ideia e prática no centro do funcionamento das escolas.
LEMBRAR CELESTIANO…
O velho Celestiano, de Mia Couto, acusa a facilidade quando diz «onde é sempre meio-dia, tudo é noturno». De facto, a facilidade na escola, a festa e a tentação de deixar tudo pela rama, tem consequências dramáticas. O que distingue o progresso do atraso é a capacidade de aprender. Não basta investir em Educação, importa traduzir as apostas em qualidade, exigência, avaliação e prestação de contas (no sentido da responsabilidade cidadã). E quando se discute se o objetivo da educação é a preparação para o mercado trabalho – temos de contrapor, com coragem e determinação, que formamos pessoas, que queremos criar cidadãos livres e responsáveis – os bons profissionais virão por acréscimo. Daí que a autonomia seja pedagogicamente ativa – exerce-se em nome da cidadania responsável, por contraponto à irresponsabilidade. Por isso a autonomia assenta: na pessoa humana, no centro da escola, na solidariedade como método de entreajuda e cooperação e na subsidiariedade, resolvendo os problemas o mais próximo possível das pessoas. Mas exercer a autonomia, tornando a escola central e não periférica, obriga ao gradualismo, ao aperfeiçoamento permanente, e ao exercício das tarefas cometidas a cada um. O triângulo escola / família / comunidade tem de ser levado a sério. Os pais devem participar na escola, mas não confundir o seu papel com o dos professores - têm de interagir com a escola. Infelizmente, ou chegam tarde demais ou invadem territórios dos profissionais. O equilíbrio é fundamental – nem tarde demais nem para além do desejável.
O SERVIÇO PÚBLICO DE EDUCAÇÃO
Como defendi com Eduardo Marçal Grilo, o serviço público de educação não pode resumir-se à iniciativa estatal. Estamos perante a necessária complementaridade de iniciativas, uma rede de escolas com estatutos diferentes, exercendo cada vez mais a sua autonomia, com um objetivo comum. E a verdade é que as escolas devem ser mais autónomas e ativas, como lugares de trabalho, de liberdade e de democracia. Eis por que razão concordo com Joaquim Azevedo sobre a necessidade de uma visão antimonopolística, policêntrica, com uma autêntica regulação responsabilizadora nas escolas. Assim, a interação entre a pessoa e a comunidade, a vivência da laicidade (por contraponto ao laicismo), a sociedade providência e a solidariedade voluntária (ou a importância crescente da responsabilidade social) tornam a rede escolar como ponto de encontro de diversas iniciativas, que tem de valorizar a aprendizagem. A ideia de compromisso surge, assim, com naturalidade: a partir do empenhamento pessoal e cívico (engagement), do exercício da autonomia, do acordo e da cooperação em nome do bem comum e de uma auto-avaliação praticada por escolas que aprendem. «Escolham o que escolherem fazer com a vossa vida, garanto-vos que não será possível a não ser que estudem» (Obama). Trabalho, disciplina, profissionalismo – eis o que tem de estar presente quando falamos de educação de qualidade para todos. E em nome da esperança e do aperfeiçoamento gradual, melhor educação terá de significar: ensinar a pensar, favorecer a responsabilidade pública, ter amor à aprendizagem e ao sentido crítico, garantir oportunidades para todos, incentivar a qualidade, a confiança, a inclusão e a cooperação. No fundo, «a educação é essa “arte” de promover o desenvolvimento humano de cada pessoa, que só se des-envolve verdadeiramente na medida em que é acolhida pelo outro, que lhe dá em si um lugar; o outro des-oculta-me solidariamente, convocando toda a comunidade indizível que me habita» (p.124). Jorge de Sena diria: «uma pequena luz bruxuleante / brilhando incerta mas brilhando».
Guilherme d'Oliveira Martins