O manifesto Não TAP Os Olhos é porventura o mais amplo manifesto em termos de espectro político português alguma vez assinado em Portugal.
No início da década de 90, operou-se uma série de privatizações de
empresas públicas. A história, quase sem excepções, foi esta: banca, seguros,
telecomunicações, estivadores, Lisnave e outras empresas metalomecânicas, etc.,
mandaram para casa, em situação de pré-reforma, dezenas de milhares de
trabalhadores, que, com 42, 50, 55 anos, foram declarados doentes – mentais,
físicos ou hipocondríacos, todas as mazelas e achaques foram aceites.
Veio depois a
energia, os transportes... Operou-se então a substituição destes por
trabalhadores em situação de precariedade ou com contratos débeis. No país
cresceram como cogumelos “empresas” em nome individual, já não a empresa da
pequena família, mas umas “empresas” excêntricas, em que os ex-trabalhadores
são “empresários”, mas o capital não se acumula nessa pequena empresa, só
circula – acumulam-se dívidas e baixos salários. Preços, produção, timings,
é tudo controlado na casa-mãe, na grande empresa, de que as pequenas são meras
subsidiárias. Na casa-mãe, os lucros acumulam-se a níveis inéditos, justamente
porque a grande empresa deixou de suportar a maior fatia de salários e
prestações sociais e esta pequena empresa suporta todos os custos. Em média,
numa empresa grande, o peso das contribuições para a Segurança Social, por
exemplo, pode ser de 3% a 5%, e numa pequena isso representa 25% ou mais.
A PT, por exemplo, criou milhares de “heterónimos” e tem hoje 16.000
trabalhadores em subcontratações assumidas e em condições de trabalho
inadmissíveis para padrões de produção do século XXI. Na EDP, o trabalhador
electricista sofreu uma metamorfose em pequeno empresário, que presta, por
exemplo, serviços de manutenção. Na EDP também, milhares de trabalhadores
perderam as poupanças de uma vida comprando acções da própria empresa.
A isto juntou-se o trabalho precário mais móvel, um verdadeiro
“exército industrial de reserva” oitocentista, os recibos verdes, jovens que
ganham 500 euros e que, para não regredirem (ir viver para um subúrbio,
alimentar-se mal, etc.), se mantiveram em casa dos pais até aos 25, 30, 35, 40
anos, pagando com isso o preço de uma infantilização histórica de toda uma
geração que desconhece a palavra independência – os filhos da geração que fez a
revolução contra a ditadura e o Estado social não têm liberdade sequer para
sair de casa dos pais. Não têm asas. Tudo isto tem como auge, decadente, a
destruição da Segurança Social, porque não há força de trabalho suficiente a
ganhar e descontar.
A privatização da TAP exige uma reflexão não contingente. A
TAP SGPS, SA emprega um total de 12.856 pessoas. Os gastos com pessoal são
na ordem dos 571.855 milhões de euros, um valor normal para uma empresa que
presta um serviço fulcral – o transporte de pessoas e mercadorias. A TAP é
essencial na ligação de uma diáspora de cinco milhões de pessoas e assegura
serviços que uma companhia privada não asseguraria por não ter uma taxa de
rentabilidade média desejada.
O manifesto Não TAP Os Olhos é porventura o mais amplo
manifesto em termos de espectro político português alguma vez assinado em
Portugal. Este dado é de grande relevância porque mostra o isolamento total do
Governo nesta opção.
Há três sindicatos na TAP que representam 60% dos trabalhadores que
têm até aqui recusado a privatização. Mas nove dos 12 sindicatos assinaram um
acordo com o Governo, em que aceitam a privatização a troco de miríficas
promessas, demonstrando que o problema do país está longe de ser meramente
governativo. A maioria das estruturas dos trabalhadores, anquilosadas, reféns
de interesses corporativos ou agendas partidárias eleitorais, não contribui nem
para a defesa dos seus associados, nem do país. Talvez seja por isso também que
as taxas de sindicalização caem a pique, não ultrapassando hoje, nas empresas
privadas, uns optimistas – e quanto a mim inflacionados – 9% e, nas públicas,
18%... A TAP está ameaçada de uma privatização que, na literatura de estudos do
Estado, classificamos de clássica ou não clássica, mas o que vai acontecer no
futuro está já em grande parte escrito no passado. Em todas as empresas que
citei, da banca aos estivadores, as estruturas sindicais aceitaram, na década
de 90, pré-reformas. Pensando talvez, como Keynes, que “no futuro estaremos
todos mortos”. Ora, hoje estão vivos, com cortes nas reformas e a cuidar de
filhos adultos como se de crianças se tratasse.
Só há duas hipóteses no horizonte. A TAP mantém-se pública e tem de
ser bem gerida, e serve o transporte de pessoas e mercadorias de forma
exemplar. Isso não pode estar dependente do Governo de turno – tem de haver um
controlo público sobre a sua gestão, ético e irrepreensível; ou a TAP é
privatizada e, na forma clássica ou não clássica, isso vai representar uma
destruição da empresa ou do orçamento público, ou de ambos.
O memorando assinado por nove sindicatos aceita a privatização da
TAP, mantendo os direitos laborais dos trabalhadores. Se não for cumprido, é
mau; se for, é péssimo. Se o acordo entre os sindicatos e o Governo não for
mantido, é mau e é porventura o mais provável, a empresa é privatizada,
desmantelada, rotas canceladas, trabalhadores precarizados. Quem acredita num
acordo sem força jurídica assinado por 10 anos por um Governo que deixa este
ano funções?
Se for cumprido, ainda é pior. A TAP passa a ser privada, a sua
medida não são rotas, serviços, condições laborais mas a alta remuneração dos
seus accionistas, remuneração que depende dos cortes salariais. Daí o absurdo
da proposta dos pilotos de pedirem 20% de acções – para manter o valor alto
dessas acções, ou vão cortar nos seus salários ou nos dos seus colegas; ganham
os pilotos, “queimam-se” os engenheiros? Ganham os dois e despedem-se os
comissários de bordo? Quem vai pagar a factura da remuneração das acções? A
única forma de uma TAP privada manter os direitos laborais e rotas não
lucrativas é injectar quantidades massivas de dinheiro público numa empresa
privada, é, no fundo, uma parceria público-privada, que se for paga é
asfixiando fiscalmente o país ou destruindo o Estado social. Ou os dois em
simultâneo. Numa metáfora firme: para que os pilotos tenham acções, o Estado
despedirá médicos e professores. A história repete-se ad nauseam nesta
gestão sem critério e imoral do orçamento público, e não é de hoje – temos
décadas de erros acumulados. Era altura de não os repetir.
As sociedades não têm resolvido os seus desafios históricos com uma
visão tacticista de curto prazo, que evita conflitos hoje para colher
tempestades amanhã. Adiar problemas não os evita, agiganta-os. Um dia
ensinou-me um piloto da TAP que um avião descola e aterra sempre… contra o
vento.
Raquel Varela
Historiadora, Universidade Nova de
Lisboa e IISH (Amesterdão)
(…) O ladrão que furta para comer, não vai,
nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros
ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera. (...) os ladrões que mais
própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam
os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das
cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. - Os
outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam
debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são
enforcados: estes furtam e enforcam. (…)
Já agora, aqui fica o Sermão do Bom Ladrão, do Pe.
António Vieira, completo e com notas bastante esclarecedoras (texto escrito em
Português do Brasil):
O Sermão do Bom Ladrão, foi escrito em 1655, pelo Padre Antônio
Vieira. Ele proferiu este sermão na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição
Velha), perante D. João IV e sua corte. Lá também estavam os maiores
dignitários do reino, juízes, ministros e conselheiros.
Observa-se que num lance profético que mostra o seu profundo entendimento
sobre os problemas do Brasil – ele ataca e critica aqueles que se valiam da
máquina pública para enriquecer ilicitamente. Denuncia escândalos no governo,
riquezas ilícitas, venalidades de gestões fraudulentas e, indignado, a
desproporcionalidade das punições, com a exceção óbvia dos mandatários do
século 17.
Vieira usou o púlpito como arauto das aspirações públicas, à guisa de uma
imprensa ou de uma tribuna política. Embora estivesse na Igreja da
Misericórdia, disse ser a Capela Real e não aquela Igreja o local que mais se
ajustava a seu discurso, porque iria falar de assuntos pertinentes à sua
Majestade e não à piedade.
O padre adverte aos reis quanto ao pecado da corrupção passiva/ativa, pela
cumplicidade do silêncio permissivo. O sermão apresenta uma visão crítica sobre
o comportamento imoral da nobreza, da época.
Eis alguns fragmentos: Levarem os reis consigo ao paraíso os ladrões, não só não é companhia
indecente, mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e
provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o
título de rei. Mas o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis
levaram consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os
reis ao inferno.
Esta pequena introdução serviu para que Vieira manejasse os seus dardos
contra aquele auditório repleto pela nobreza. E continuou enfático: A salvação não pode entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se
perdoa sem se restituir o roubado: Non dimittitur peccatum nisi restituatur
ablatum.
Suposta esta primeira verdade, certa e infalível; a segunda verdade é a restituição
do alheio sob pena de salvação, não só obrigando aos súditos e particulares,
senão também aos cetros e as coroas. Cuidam ou deveriam cuidar alguns
príncipes, que assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo; e
é engano. A lei da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei natural
obriga aos reis, porque a natureza fez iguais a todos; enquanto lei divina
também os obriga; porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior que
eles.
Estribado no pensamento filosófico de Santo Tomás de Aquino, de que os
príncipes são obrigados a devolver o que tiram de seus súditos, sem ser para a
preservação do bem da coletividade, lembrou Vieira terem sido punidos com o
cativeiro dos assírios e dos babilônios os reinos de Israel e Judá, porquanto
os seus príncipes, em vez de tomarem conta do povo como pastores roubavam o
povo como lobos: "Principes ejus in medio illius, quasi lupi rapientes
praedam” (Ezech. XXII, 27).
Invocando o pensamento de Santo Agostinho, mostrou a diferença entre os
reinos, onde se comprovam opressões e injustiças, e as covas dos ladrões:
naqueles os latrocínios ou as ladroeiras são enormes; nestes os covis dos
ladrões representam-se por reinos pequenos, e comprova essa afirmação narrando
de uma passagem histórica com Alexandre Magno: Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar
a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava
roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau
ofício: porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta,
senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em
uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é
grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os
Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as
significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco ponem
latronem, et piratam quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o rei de
Macedônia, ou de qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão,
o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome. Quando li isto em Sêneca não me admirei tanto de que um estóico se
atrevesse uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero. O que mais me admirou e
quase envergonhou, foi que os nosso oradores evangélicos em tempo de príncipes
católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma
doutrina.
Prosseguindo ainda nessas considerações, lança verrinas contra os poderosos:
O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não
só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de
mais alta esfera; os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento
distingue muito bem São Basílio Magno. Não só são ladrões, diz o santo, os que
cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os
ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os
reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias, ou a
administração das cidades, os quais já com mancha, já com forças roubam cidades
e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os
outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes que tudo via com mais aguda vista que os outros homens viu que uma
grande tropa de varas e ministros da justiça levava a enforcar uns ladrões e
começou a bradar: lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos... Quantas
vezes se viu em Roma a enforcar o ladrão por ter roubado um carneiro, e no
mesmo dia ser levado em triunfo, um cônsul, ou ditador por ter roubado uma província?
De Seronato disse com discreta contraposição Sidônio Apolinário: Nom cessat
simul furta, vel punire, vel facere. Seronato está sempre ocupado em duas
coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão
inveja. Queria tirar os ladrões do mundo para roubar ele só! Declarando assim
por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e
autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse, e digo levam
consigo os reis ao inferno.
Novamente Vieira vai invocar as palavras de Santo Tomás de Aquino: (...) aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se o não
impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que por
sua culpa deixaram crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto
as rendas com que os povos os servem e assistem são como estipêndios
instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e
mantenham com justiça.
Imprimindo uma faceta satírica e anedótica, Vieira comenta o seguinte
episódio: Dom Fulano (diz a piedade bem intencionada) é um fidalgo pobre,
dê-se-lhe um governo. E quantas impiedades, ou advertidas ou não, se contêm
nesta piedade? Se é pobre, dê-lhe uma esmola honesta com o nome de tença, e
tenha com que viver. Mas, porque é pobre, um governo, para que vá desempobrecer
à custa dos que governar; e para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar
muito rico?!
Numa outra parte, ao comentar as investidas portuguesas na Índia, fala sobre
a informação de São Francisco Xavier a D. João III, quando aquele santo
denunciava que naquela região, bem assim em outras, os responsáveis pela
administração pública conjugavam o verbo rapio em dos os modos.
Escreveu Vieira: O que eu posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do
Cabo da Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém, se usa igualmente
a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio, não falando em
outros novos e esquisitos, que não conhecem Donato nem Despautério (a). Tanto
que lá chegam começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira
informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por
onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o misto
e mero império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam
pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem
todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque
desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas
por cortesia, sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque
ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que
ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância. Furtam pelo
modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as
permissões. Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do
governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes
mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é
a sua, as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm
indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque o
presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem
no presente o pretérito e o futuro, de pretérito desenterram crimes, de que
vendem perdões e dívidas esquecidas, de que as pagam inteiramente; e do futuro
empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído
lhes vem a cair nas mãos. Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os
imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam,
furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em
suma, o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo
verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz
ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se
tiveram feito grandes serviços, tornam carregados e ricos: e elas ficam
roubadas e consumidas... Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da
Angola, duzentos, do Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que
vale todo ele.
Com coragem e convicção, aponta o seu verbo ao rei de corpo presente: Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se
laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro,
chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se
corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por
teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías
diz dos príncipes de Jerusalém: Principes tui socii rurum: os teus príncipes
são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque
os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são
companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros
dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros,
porque os acompanham e hão-de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os
levam consigo. Onde encontrar, a não ser num Santo Ambrósio, num São Bernardino de Sena ou
num Savanarola, outra voz que terrivelmente assim bradasse perante el-rei
conivente de algum modo com as malversações de seus súditos, registrando o
pregador, noutro sermão, não se haver sem motivo observado que enquanto os
magnetes atraem o ferro, os magnatas atraem o ouro? O que costumam furtar nestes ofícios e governos os ladrões de que falamos
ou é a fazenda real ou a dos particulares; e uma e outra têm obrigação de
restituir depois de roubada, não só os ladrões que a roubaram, senão também os
reis; ou seja, porque dissimularam e consentiram os furtos, quando se faziam,
ou somente (que isso basta) por serem sabedores deles depois de feitos. E aqui
se deve advertir uma notável diferença (em que se não repara) entre a fazenda
dos reis a e dos particulares. Os particulares, se lhes roubam a sua fazenda,
não só não são obrigados a restituição, antes terão nisso grande merecimento se
o levarem com paciência; e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são
de muito pior condição nesta parte: porque, depois de roubados têm eles
obrigação de restituir a própria fazenda roubada, nem a podem demitir, ou
perdoar aos que roubaram. A razão da diferença é, porque a fazenda do
particular é sua; a do rei não é sua, senão da república. E assim como o
depositário, ou tutor, não pode deixar alienar a fazenda que lhe está
encomendada e teria obrigação de a restituir, assim tem a mesma obrigação o rei
que é tutor e como depositário dos bens e erário da república; a qual seria
obrigado a gravar com novos tributos, se deixasse alienar ou perder as suas
rendas ordinárias. Rei dos reis e Senhor dos senhores, que morreste entre dois ladrões para
pagar o furto do primeiro ladrão; e o primeiro a quem prometeste o paraíso foi
outro ladrão; para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com vosso
exemplo e inspirai com vossa graça a todos os reis, que não elegendo, nem dissimulando,
nem consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impeçam os furtos
futuros e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem
consigo, como levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao paraíso, como
vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in paradiso.
Neste sermão nos vemos diante de um diagnóstico que parece mesmo atemporal,
desnudando os desmandos e a mistura dos interesses públicos e privados que
infestam a administração pública brasileira desde o início da colonização,
contexto em que os Sermões são escritos, até os dias que correm. Note: O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não
só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de
mais alta esfera. (...) os ladrões que mais própria e dignamente merecem este
título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o
governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha,
já com força, roubam e despojam os povos. - Os outros ladrões roubam um homem:
estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem
temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e
enforcam.
Ele acusa os colonos e os governantes do Brasil de roubarem escandalosamente:
Grande lástima será naquele dia, senhores, ver como os ladrões levam
consigo muitos reis ao Inferno: e para esta sorte se troque em uns e outros,
vejamos agora como os mesmos reis, se quiserem, podem levar consigo os ladrões
ao Paraíso. Parecerá a alguém, pelo que fica dito, que será cousa muito
dificultosa, e que se não pode conseguir sem grandes despesas; mas eu vos
afirmo e mostrarei brevemente que é cousa muito fácil e que sem nenhuma despesa
de sua fazenda, antes com muitos aumentos dela, o podem fazer os reis. E de que
modo? Com uma palavra; mas a palavra de rei. Mandando que os mesmos ladrões, os
quais não costumam restituir, restituam efetivamente tudo o que roubaram.
Vieira foi um autor barroco e pode-se encontrar em suas obra as características
desse movimento, tais como o uso de contínuas antíteses, comparações,
hipérboles etc. Seu texto é essencialmente persuasivo e, enquanto tal, os jogos
de palavras obedecem a uma finalidade prática, isto é, a retórica em função de
seu discurso crítico. Vieira colocou-se contra o uso da palavra num sentido
apenas lúdico, para provocar prazer estético.
Percebe-se que o autor preocupava-se com temas de caráter social e de
dimensão política. Neste sermão, ele aproxima e compara a figura de Alexandre
Magno, grande conquistador do mundo antigo, com a do pirata saqueador,
evidenciando assim sua crítica aos valores morais e sua visão ideológica.
A persuasão em Vieira alcança o raio da alegoria — de resto, um recurso
típico da tradição medieval — como reforço à grandeza dos padrões sociais e
éticos. Consubstanciada pelo modelo do pregador, alimenta-se também da ironia,
da sátira, do ataque (sutil ou explícito) contra vícios morais e
administrativos dos representantes do rei na Colônia do Brasil, como citado. O
suporte alegórico do bom ladrão é a demonstração pouco corrente, escolhida pelo
pregador para testemunhar melhor dos erros de sua época, dos crimes de
superiores e nobres e de colonizadores reles, distantes da justiça reinol e
divina.
Em seus sermões Vieira mostrava certa independência nas palavras, atitude
completamente contrária ao dogma fundamental da Companhia de Jesus, que era o
da obediência cega às ordens superiores. Ele trabalhava por conta própria, e
pensava mesmo em introduzir reformas na Companhia, coisa que os mais antigos
viam com muito maus olhos. Daí resultou que seus superiores lhe ordenassem
positivamente que partisse para as missões do Maranhão.
in http://www.passeiweb.com/estudos/livros/sermao_do_bom_ladrao
O inferno de uma doente com
cancro deixada na escadaria de uma igreja
Foi longa
a espera de Rosa. Doente de cancro, com graves problemas de mobilidade, esta
mulher de 46 anos teve nesta segunda-feira alta do Hospital Joaquim Urbano,
onde lhe trataram mais uma infeção respiratória e a deixaram sair, mesmo
sabendo que, naquele dia, ela não tinha uma casa para onde ir.
Metida
sozinha num táxi, foi parar, desamparada, às escadas da igreja do Carvalhido,
na rua onde o marido arruma carros. Aguentou-se ali, deitada, umas cinco horas,
até ser transportada pela polícia para um quarto numa pensão de Cedofeita,
arranjado pela mesma Segurança Social que lhes cortara o rendimento social de
inserção, deixando-os sem capacidade de pagar uma renda.
Felizmente
está sol, reparava Paulo Natividade. É o amigo. O amigo que Armindo tem tido
desde que a droga, o desemprego e a espiral descendente, contra a qual vai
lutando, fizeram dele o arrumador de carros “oficial” da Rua da Prelada. E o
amigo que não calou a indignação pela forma como naquela segunda-feira o
Hospital Joaquim Urbano deu alta a uma mulher que não tinha, sabiam disso, para
onde ir. Armindo tinha-os avisado de manhã. “Fiquei sem casa. Aguentem-na aí
até eu resolver o problema”, pediu ao telefone a um médico, à frente de Paulo.
Às 14h, quando lá chegou, já ela não estava. Saíra num táxi. Pago, por “pena
dela”, pelo director de Serviço de Pneumologia, explicou ao PÚBLICO o assessor
de imprensa do Centro Hospitalar do Porto.
“Ela
queria sair. O médico avisou-a do problema da casa, mas a senhora disse que
tinha familiares no Carvalhido e deixaram-na sair”, insistiu a mesma fonte,
garantindo que, neste caso, não poderiam forçar a intervenção da Segurança
Social. Não era a primeira vez que Rosa entrava e saía daquele hospital. Soma
outros problemas de saúde ao cancro que, segundo a família, lhe deixa pouca
esperança de vida, e “não é uma doente fácil”. Mas Armindo não entende porque
cederam e não esperaram que chegasse, tendo em conta a sua condição física
débil e as dores que a obrigam a tomar morfina, entre vários outros
medicamentos cujo custo não conseguem suportar. Foi deixada por um taxista nas
escadas da igreja do Carvalhido às “portas do céu”, como se lê numa parede, e
foi um irmão dele, Joaquim, que a descobriu assim, desamparada.
Armindo
estava ainda no hospital, quando o irmão lhe telefonou. Pediu ajuda ao seu
outro “irmão” Paulo Natividade, que trabalha naquela mesma rua e que acabou por
passar a tarde ali, com eles. Pessoas foram chegando, incluindo o pároco
responsável pela igreja cuja entrada ostenta uma imagem de Cristo e um mapa da
Europa, mostrando a distância entre o Porto e Jerusalém, a Terra Prometida.
Segundo o amigo, o sacerdote disse-lhes que procurassem apoio na junta de
freguesia e, perante os apelos de quem ali estava, pediu ao sacristão que lhes
arranjasse um cobertor. Depois, celebrou-se missa, e os fiéis foram saindo,
indiferentes, a maioria deles, ao que ali se passava – deixando ainda mais
indignadas duas funcionárias do lar de Monte dos Burgos, Maria Nogueira e Ana
Sousa que, ainda de farda, amparando Rosa, quase davam àquele escadório um ar
de hospital em hora de visitas. Houvesse conforto…
Ainda
assim, alguns paroquianos aproximaram-se, perguntaram, ajudaram. Um euro, dois.
Um paliativo para aquela família, com um filho dependente, de 16 anos, que
perdeu o rendimento social de inserção, no valor de 408 euros. O rapaz deixou a
escola, “para cuidar da mãe”, mas Armindo não sabia explicar se fora esse o
motivo do corte. Conhecia, isso sim, as consequências dele. O senhorio do
“apartamento” onde dormiam, na Rua Álvares Cabral, fechou-lhes a porta da casa.
Trabalha com dinheiro à vista, sem recibos. “Só me deixa entrar se eu lhe pagar
400 euros”, queixava-se o antigo motorista, que, ao mesmo tempo que luta para
se afastar da droga que lhe “estragou a vida”, convivia, naquela casa
partilhada por outros inquilinos, “com um “ambiente pesado, tentador” para um
ex-toxicodependente.
Os
haveres deles ainda estavam, nesta terça-feira, todos lá dentro. Nas escadas,
na segunda-feira, Rosa vestia a roupa com que saíra do hospital e aguentava,
mal, a espera. Dois agentes da polícia, chamados ao local, já tinham há muito
pedido ajuda, ligando para o número de emergência social, quando, passavam das
19h, receberam a indicação de que havia para a família um quarto numa
pensão, em Cedofeita. E foi deitada nos bancos traseiros do carro patrulha da
PSP que esta mulher, a quem foi detectado há um ano um cancro no pulmão, foi
levada. O cobertor que lhe arranjaram nas escadas da igreja foi útil para
conseguirem levá-la, de novo escadas acima, até um segundo andar, onde esta
terça-feira foi já visitada por uma assistente social – que ficou de ver o
que se passou com o processo do rendimento social de inserção e de procurar uma
solução de habitação para esta família que, durante uma tarde, deixou, às
portas do céu, um exemplo vivo de como a vida pode ser um inferno.
Continuam à solta, os vampiros
sobre os quais Zeca Afonso nos alertou, os comedores sobre os quais não resta a
menor dúvida, e que andam por aí, umas vezes disfarçados, outras vezes
descarados, rasgando a alma e os dias da gente ao som do vil metal que em seus
bolsos nojentos tilinta e de morte nos atormenta.
O dinheiro é nosso. Foi-nos
roubado.
Desapareceu dos cofres dos
Bancos para se alojar promiscuamente, corruptamente, nas mãos dos banqueiros
ou num qualquer paraíso fiscal, claro!
Banco de Portugal. Que Banco de Portugal?
Antro de malfeitorias, gente sem vergonha que isto vai consentindo,
conscientemente, enquanto se ouve o clamor de um povo com fome e sede de
justiça mas que tarda em fazê-la.
Salvam-se banqueiros mas não se
salvam os trabalhadores deste país.
Salvam-se os bancos mas não as
instituições democráticas.
Salvaguardam-se os interesses das
elites financeiras mas não se salvaguardam os
interesses do povo.
Salvaguardam-se os interesses de meia dúzia
com o sacrifício de todo um povo sistematicamente humilhado, roubado e espoliado
dos seus mais elementares direitos sociais e políticos.
Estou farta de gentalha e de
oportunistas. Estou farta de merdosos, lambe-botas, gente sem moral e sem
vergonha, gente que tresanda a hipocrisia e a corrupção, gente falsa, sorrisos falsos, falsos apertos de mão, ladrões engravatados, mulheres-bibelot, mulheres-fantoche, homens-fantoche,
gente sem princípios e de artimanhas, gente que vai sempre ao beija-mão, no Governo, na União Europeia, no Parlamento, nas escolas, nas empresas, nas autarquias, nos Tribunais, rindo e
cantando, "cantando e rindo ao som das velhas trombetas".
O pior de tudo isto não é só a raiva
de os querer combater e não conseguir.
O pior de tudo isto não é só a raiva
de os ver à solta, pedantes, arrogantes, prepotentes.
O pior de tudo isto é vê-los do
alto da sua mediocridade social, política e intelectual, arrotando sobre nós,
com os olhos esbugalhados pela ganância e pelos pequenos poderes que criaram,
como uma seita perigosa, muito perigosa, que subverte e manipula os mais
incautos para irremediavelmente os prender nas suas garras afiadas de maléficas intenções.
O pior de tudo isto é eu continuar
à espera do dia em que da revolta Justiça venha e igualdade também.
Porque eu sou aquilo que escrevo
mas muito mais aquilo que penso.