E se falarmos de soluções?
Porque
é que o Governo anunciou a reabertura de negociações com os sindicatos da
enfermagem e do ensino para logo a seguir as Finanças dizerem que não há
dinheiro?
Francisco Louçã - Artigo publicado no jornal “Expresso” a 2 de março de 2019
É para mim um
mistério o que quer o Governo com os conflitos na educação e na saúde. E,
sobretudo, o que queria com a descompressão da semana passada, ao anunciar a
reabertura em simultâneo de negociações com os sindicatos da enfermagem e do
ensino, para logo vir fonte autorizada de Mário Centeno arrumar o assunto,
envergonhar os seus colegas e comunicar via declaração ao Expresso que aquilo
não era para ser levado a sério.
Podia ser força musculada
Tantos sinais contraditórios mostram pelo menos que nestas
reuniões não se negociará. Mas porque é que o Governo atua assim, isso já pode
ser interpretado de várias formas. A primeira seria que o Governo quer agravar
os conflitos para correr tudo a eito com requisições civis, mostrar força,
exibir algum quebra-sindicalismo, acenar a sectores moderados e disputar
eleições com o maioria-absoluta-ou-morte. Essa interpretação tem credibilidade,
ouviram-se ministros nesse tom e já me pareceu a mais sensata na análise desse
comportamento insensato. Mas, se fosse assim, para quê tanta incerteza na
gestão da requisição, logo confortada com um pedido de parecer a um Conselho
Consultivo da Procuradoria? E para quê então esta operação de reabrir
negociações? Ainda por cima, com professores e enfermeiros ao mesmo tempo, como
se houvesse vontade de juntar todos na mesma agenda?
A segunda interpretação seria que o Governo se deu conta da
impopularidade da arrogância, que é o seu ponto mais fraco para as eleições de
2019 e, ainda, que teria percebido que este rapapé de associações patronais e
banqueiros a recomendarem a maioria absoluta do PS só pode estimular a fome
partidária ao mesmo tempo que agrava a desconfiança, alargando o fosso entre o
triunfalismo governista e o receio dos seus próprios eleitores. E que, então,
mais valeria procurar paz nas escolas e nos hospitais. Mas, assim, para quê
começar a falar com os professores para lhes explicar que não muda nem uma
vírgula e que só conversa se os sindicatos aceitarem que o Governo lhes dite os
termos da rendição?
E se for só tudo ao molho e fé em Deus?
O que há de comum em ambas as interpretações é que se baseiam em
alguma forma de racionalidade e cálculo político ou eleitoral. Ora, resta a
pergunta mais difícil: e se não houver nenhuma racionalidade? Se for unicamente
um jogo flutuante em que cada ministro se limita a fingir? Esta é a hipótese
mais assustadora. E com alguma consistência, dado que o Governo abre
negociações e poucas horas depois a fonte de Centeno arruma o assunto com o
“não há dinheiro”. É para ser notada a marcação do terreno, nada acontece por
acaso. E logo o ministro da Educação diz na negociação que não há nada para
negociar e a ministra da Saúde anuncia, essa mesmo antes da negociação que vai
reabrir, que afinal não é para tratar de salários e carreiras porque a solução
é ficar tudo como está.
Naturalmente, comparada com as duas hipóteses anteriores, a
tremendista e a negocial, a do fingimento é a pior de todas. É sempre uma má
política, porque a artimanha, como a frescura de uma rosa, só dura um dia, e
porque deixa uma cultura de desconfiança em futuras negociações com estes
ministros. A ministra da Saúde tem em mãos o dossiê sensível da Lei de Bases. O
recado para o outro lado da mesa é que faz proposta se houver incêndio, mas que
a proposta não é para ser considerada? É ainda uma política errada, porque não
traz satisfação a ninguém: nem a quem quer conflito nem a quem quer paz. Nem o
Governo se mostra forte, porque isto é fraqueza, nem se mostra capaz de
resolver problemas, porque isto é o simples poder de recusar. E facilita a vida
a quem se põe no lugar da negociação, sejam os sindicatos, sejam os partidos
que queiram soluções. Mostrar duplicidade não é boa estratégia.
Ainda por cima, há soluções
O Governo já cedeu numa questão-chave, a do reconhecimento da
especialidade em enfermagem, que nunca devia ter sido desgraduada. Há
enfermeiras e enfermeiros que têm mesmo formação de especialista e são
indispensáveis por isso mesmo. Assim, o Governo devia partir desse acordo
tardio para criar agora uma plataforma de entendimento. E montar ao longo dos
próximos anos os ajustamentos de carreira que aproximassem todas as profissões
qualificadas na saúde, dado que as discriminações são incompreensíveis. Tem com
quem falar e tem com quem fazer esse acordo. Mais ainda, o SNS precisa disso,
ou algum ministro pensa que vai aguentar a contestação permanente de um dos
pilares mais importantes do serviço?
Nos professores, os sindicatos não exigiram retroativos. Mas não
aceitam que os nove anos sejam apagados das vidas das pessoas. Por isso,
sugeriram dois caminhos: a recuperação do seu direito legal de contagem do
tempo de serviço ao longo de sete anos e a sua ponderação na reforma. Não se
tratou da combinação das duas mas até nem é difícil de adivinhar por onde se
poderia ir. Seria sempre um acordo difícil mas não se pode dizer que seja
impossível.
Restam dois problemas. O primeiro é que compete ao Governo dar o
passo para uma solução. Se é para fingir, está a fazer tudo certo. Mas, se é
para resolver, então uma ideiazinha seria interessante. O segundo é que isto
custa dinheiro, só que ao longo de um tempo que o Governo diz que terá que ser
o da melhoria do nível dos serviços públicos. E se também pusesse em cima da
mesa propostas nesse sentido?
Artigo publicado no jornal
“Expresso” a 2 de março de 2019
Francisco Louçã
Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.