Animais:
com que direito lhes negamos direitos?
Isto de
ser humano
Sabia que
existe uma declaração universal dos direitos dos animais? Sabia que há leis
para definir as fórmulas correctas, éticas e “humanas” para criar, transportar
e matar vitelos, porcos, galinhas e todos os outros animais usados na alimentação?
Sabe distinguir a crueldade “necessária” da “desnecessária”? E o sofrimento
“útil” do “inútil”? Já ouviu falar do “bem-estar animal”? Não? Então é provável
que não faça a mais pequena ideia do que é o veganismo e que nunca tenha
colocado em questão o supremo direito do Homem sobre os outros seres da Terra
ou o seu lugar como centro do mundo, rei incontestado de tudo o que existe. É
possível que nada o faça desistir de comer carne ou peixe, que ache
perfeitamente admissíveis as experiências em animais, que não se incomode com o
uso de peles ou com a caça, aplauda as touradas, não pestaneje com o tiro aos
pombos, se entusiasme com as lutas de galos, adore levar as crianças ao Zoo e
considere as feras o melhor do circo. É possível que encare algumas destas
coisas como normais e necessárias e outras não e ache mal misturar tudo. É até
possível que determine toda esta conversa como absolutamente ridícula. Em todo
o caso, não tem nada a perder: pense nisso.
É difícil
escolher por onde começar. Mas podia ser em números. Por exemplo, quantos
animais morreram, morrem e morrerão, em média, para que um de nós, carnívoro,
omnívoro, apreciador de calçado de pele genuína, cintos de couro, casacos de
cabedal e abafos de pêlo, utilizador de cremes, perfumes e desodorizantes,
antibióticos, antiestamínicos, antialérgicos e outras drogas corriqueiras,
sujeito a uma ou outra cirurgia, transportado em automóveis, motos e demais
veículos, alérgico a ratos, baratas, moscas e outras pragas, viva a sua vida
normal? Milhões? Biliões? Triliões?
Entre vacas,
ovelhas, cabras, porcos, galinhas, patos, perus, coelhos, perdizes, lebres,
javalis, veados, peixes de todas as descrições, moluscos de variados calibres,
crustáceos, crocodilos, avestruzes e tudo o que ocorra degustar, incluindo, se
calhar em viagem ou em proveniência, macacos, cobras, cães, gatos, antílopes,
tartarugas, golfinhos, gafanhotos, toupeiras e o que mais se use comer por esse
mundo fora, uma hecatombe.
Só nos Estados
Unidos, em cada ano, são 100 milhões de mamíferos e cinco biliões de aves. No
mesmo espaço de tempo, a Grã-Bretanha consome 850 milhões de animais. Em média,
um milhão e meio por pessoa.
Um oceano de
cadáveres a perder de vista, esfaqueados, decapitados, electrocutados,
asfixiados, baleados, armadilhados, arpoados, esmagados, espancados, sangrados,
cozinhados vivos. Em agonia óbvia ou incerta, rápida ou lenta, necessária ou
desnecessária. Quase sempre secreta, invisível na assepsia das prateleiras do
supermercado, indeterminável no prato, mastigada com deleite, digerida com
negligência. Quem é que já somou as vidas todas que vale, as vidas de que é
feito? Quem é que já mediu as agonias, as dores, os sacrifícios que reclama?
Quem é que vive com isso? E, deve também perguntar-se, quem é que pode viver
sem isso?
É muito
diferente quando se vê. Talvez, com o tempo, o hábito apague a náusea das
imagens e dos sons e dos cheiros. É possível acreditar que é esta distância
entre a vida nas cidades, longe dos ritmos essenciais do nascimento, do
crescimento e da morte, longe do que se apelida de natural, que impede a
convivência descontraída com o sangue e a carne e os ossos, com aquilo que se
chama a inevitabilidade das coisas.
Marcar
animais com um ferro em brasa configura um sofrimento útil ou inútil?
Mas essa
ligação tão óbvia entre o lombo, a costeleta e o bife e a carnificina
industrial que estremece os matadouros, essa relação de causa e efeito que
conduz dos estábulos e das pocilgas e dos aviários estes cortejos de animais
comprimidos em gaiolas, em camionetas e vagões, quilómetros de animais em
quilómetros de estrada, o espaço útil preenchido ao limite, a utilidade como
critério, o sacrifício como razão, essa imanente verdade é um prodígio de
negação. É um suave milagre que a consciência dos homens os salve daquilo que
não vêem e apenas sabem e mais milagre é ainda que os salve daquilo que vêem e
ouvem e cheiram. E fazem, claro. Nos matadouros como nas criações, nas
produções de leite como de ovos, nos laboratórios como nos biotérios.
Um passeio,
chamemos-lhe assim, pelos arquivos audiovisuais das organizações que pugnam
pelos direitos dos animais revela-se um desafio à infinita capacidade de
obliteração da memória.
A começar,
por exemplo, pelo espectáculo das descargas de gado nos centros de abate,
efectuado à paulada, ao pontapé, com guindastes (usados para descarregar vacas
vivas, suspensas por uma pata, de um navio para o cais), passando pelas
pecuárias intensivas onde cada animal é imobilizado num espaço ínfimo, sem luz
do dia, manjedoura à frente, entregue à tarefa única de engordar o mais
depressa possível para dar lugar a outro.
Pelas
produções de leite onde as vacas são mantidas em maternidade constante,
retirando-se-lhes os vitelos mal nascem, úberes ulcerados, deformados, o tempo
de vida estreitado na margem dos quatro anos mais lucrativos, despachadas para
o matadouro mal o fluxo enfraquece; percorrendo as fábricas de ovos onde as
poedeiras, às quatro dentro de uma estreita gaiola, se esgotam na vertigem de
verter claras e gemas em sequência contínua, o espeto e o fricassé como recompensa
final.
Atravessando
os longos corredores dos pomposamente denominados biotérios onde em milhares de
pequenas gaiolas, sob luzes fluorescentes, em ambiente rigorosamente asséptico,
se criam os hamsteres e os ratos e os coelhos e os gatos e os macacos que nos
laboratórios desenvolvem todas as doenças, experimentam todos os vírus,
bactérias e vacinas, pomadas, gotas, comprimidos, cremes de beleza,
desodorizantes, perfumes.
Quanto tempo
leva um champô a destruir o globo ocular? Estes coelhos vão descobrir.
É preciso
não esquecer, lembram os gratos cientistas, que é pelo holocausto destes
animais e de todos os que os antecederam que tantos medicamentos foram lançados
no mercado, tantas doenças incuráveis deixaram de o ser. É graças à morte atroz
de milhares de cães, por exemplo, e é só um dos muitos exemplos possíveis, que
os diabéticos dispõem hoje da insulina. Se não fossem os animais de
laboratório, onde treinariam os cirurgiões as novas técnicas de cirurgia? Que
seria dos transplantes? E, já agora, que seria da segurança automóvel não fora
a insistência nos “crash-tests” com animais vivos?
Que seria do
conhecimento dos danos cerebrais humanos se não fosse possível infligir, em
circunstâncias rigorosamente controladas, pancadas brutais, com máquinas,
martelos ou outros instrumentos menos sofisticados, na cabeça de babuínos
supostamente anestesiados que, entre cada golpe, procuram fugir das amarras que
os prendem?
Como se
avançaria na psicologia humana e no estudo do autismo e outros fenómenos
misteriosos da psique caso não fosse possível manter chimpanzés (animais muito
inteligentes e sensíveis, tão parecidos connosco) em absoluta solidão, do
nascimento à morte, para ver que tipo de loucura desenvolvem?
No fim da
experiência, terminada a utilidade do sofrimento, este gato deverá ser morto.
De forma humana, claro.
Depois, há
outras necessidades, talvez menos vitais mas nem por isso menos evidentes. A
utilização de produtos de origem animal no vestuário, quer implicando a morte
dos animais quer não – é o caso da lã –, é tão antiga como o Homem. Como é
antigo o uso de armadilhas, cada vez mais sofisticadas à medida que a
tecnologia progride, cada vez mais perfeitas no seu cuidado de não danificar
nenhuma parte relevante do animal.
Fotografias
e filmes, mais uma vez, atestam a forma como as mandíbulas de aço das
armadilhas modernas aprisionam os animais – raposas, arminhos, texugos – sem os
matar, numa agonia de horas, dias, até que o caçador apareça para o golpe de
misericórdia. Ou como nas quintas de criação de animais para aproveitamento de
peles se electrocutam, gaseiam ou asfixiam os visons, chinchilas, etc, de modo
a não arruinar nem um pêlo da preciosa mercadoria, a mesmíssima preocupação que
obriga os caçadores de focas bebés a espancá-las até à morte. Podia pensar-se
que o fazem por prazer; pois não, é mesmo necessário.
Mas, é
claro, há também o divertimento. Os espectáculos com animais, da tradicional
tourada ao tradicional circo, passando pelas tradicionais corridas de cavalos,
cães, etc. Para não falar da luta de galos, dos duelos de cães, ou de certos
costumes pouco compreendidos no Ocidente que consistem em torneios de
cavaleiros a disputar um cabra, por exemplo, ou a ver qual é que consegue,
passando a galope, arrancar a cabeça a um galo pendurado pelos pés. O espantoso
arquivo das organizações internacionais de defesa dos animais não deixa nada em
claro.
Eis a
incursão nos bastidores do circo, por exemplo, para descobrir, do outro lado
das habilidades demonstradas em palco, os imprescindíveis treinos à base de
chicote, paulada e aguilhões. Mas como será que, a bem, se ensina um elefante a
caminhar nas patas traseiras? Ou um tigre a saltar um arco em chamas? Com muito
amor? Decerto. O mesmo amor aos animais que leva toda a gente a adorar uma ida
ao Zoo, onde animais habituados a percorrer dezenas de quilómetros num dia se
vêem confinados a algumas dezenas de metros (se tiverem sorte) ou a uma jaula
de três por quatro, chão de cimento, paredes de azulejo, talvez mesmo sem luz
natural.
Notícias Magazine, 12.Abril.1998 (excertos adaptados)
Texto de Fernanda Câncio
In https://respeitaranimais.wordpress.com/2007/11/07/animais-com-que-direito-lhes-negamos-direitos-3/