Três riscos corre hoje a
nossa liberdade:
1.
Primeiro, o risco de perdermos o
controlo democrático sobre o nosso país. O risco de que o nosso voto valha
menos ou não valha nada. O risco de ter um parlamento que não pode cumprir a
sua mais nobre função: decidir sobre o orçamento dos portugueses. O risco de
termos também nós, como os colonos americanos no taxation without
representation, e fizeram uma revolução por causa disso. O risco de
sermos governados de fora, por instituições de dúbio carácter democrático, que
decidem sobre matérias de governo, em função de interesses que não são os
interesses nacionais, e cujos custos o povo português paga.
2.
Segundo, o risco de que o
estado abuse dos seus poderes, como já o faz. Não só o estado tem hoje uma
panóplia vastíssima de meios para nos controlar e vigiar, como os usa sem
respeito pela autonomia, liberdade, identidade dos cidadãos.
Há uns anos discutimos
muito que dados diversos deveria ou não juntar o Cartão do Cidadão, dados
pessoais, de identificação, médicos, número de eleitor, etc. Limitámos os
dados que lá podemos colocar e temos uma entidade que fiscaliza a utilização
dos nossos dados pessoais e que é suposto “protegê-los”. Muito bem.
Mas já olharam para as
facturas que estão disponíveis no sitedas Finanças? Já olharam com
olhos de ver, a vossa vida diária espelhada em cada acto em que se compra uma
coisa, se almoçaram sós ou acompanhados, onde e que tipo de refeição, onde
atravessamos um portal da auto-estrada, onde ficamos a dormir, que viagens
fizemos?
Em nenhum sítio o estado foi mais longe no
escrutínio da nossa vida pessoal do que no fisco. Com a agravante de que
nenhuma relação com o estado é hoje mais desigual, onde o cidadão comum tenha
os seus direitos tão diminuídos, onde objectivamente se abandonou o princípio
do ónus da prova, ou seja, somos todos culpados à partida.
Em nome de quê? De que eficácia? Perguntem
aos donos de offshores, aos que tem dinheiro para pagar o segredo e
a fuga ao fisco, para esconder o seu património do fisco, se eles se incomodam
com o fisco. Incomodar, incomodam, mas podem pagar para deixarem de ser
incomodados. Já viram algum offshore de uma cabeleireira, de
um feirante, de um mecânico de automóveis, de um pequeno empresário que tem um
café ou um restaurante, aqueles sobre os quais o fisco actua exemplarmente como
se fossem esses os seus inimigos principais?
É por isso que se hoje se existisse uma
polícia como a PIDE não precisava de mais nada do que de aceder aos bancos de
dados do fisco, do Multibanco, das câmaras de vigilância, do tráfego
electrónico. Podia reconstituir a nossa vida usando o Google, o Facebook, o
Twitter, o Instagram. Podia encontrar demasiadas coisas em linha, até porque
uma geração de jovens está a ser mais educada pelas empresas de hardware e software de
comunicações, do que pela escola ou pela família. Elas têm à sua disposição
múltiplos meios para desenvolveram uma cultura de devassa da privacidade, pondo
em causa séculos de luta pelo direito de cada um de ter um espaço íntimo e
privado e uma educação do valor da privacidade.
3.
Terceiro, o risco de que a pobreza impeça o exercício das liberdades. A miséria, a
pobreza, a precariedade, o desemprego, são maus companheiros da liberdade. A
pobreza ou qualquer forma de privação do mínimo necessário para uma vida com
dignidade é uma forma de dar aos poderosos o direito natural à liberdade e a
dela privar aos mais fracos.
Sim, porque ser pobre é
ser mais fraco. É ter menos educação e menos oportunidades de a usar, é ter
empregos piores e salários piores, ou não ter nem uma coisa nem outra. É falar
português pior, com menos capacidade expressiva, logo com menos domínio sobre
as coisas. É ter uma experiência limitada e menos qualificações. É depender
mais dos outros. É não ter outro caminho que não seja o de reproduzir nas novas
gerações, nos filhos, o mesmo ciclo de pobreza e exclusão dos pais. E a
exclusão reproduz-se mesmo que se tenha telemóvel e Facebook, porque o acesso
ao mundo virtual e a devicestecnológicos não significa sair do
círculo infernal da pobreza. É apenas “modernizá-lo”.
O agravamento na sociedade portuguesa da
desigualdade social, do fosso entre pobres e ricos, é uma ameaça à
liberdade
4.
Há um risco ainda maior
do que qualquer destes: o de pensarmos que não podemos fazer nada face as estas
ameaças à nossa liberdade e à nossa democracia. O risco de dizermos para nós
próprios que haverá sempre pobres e ricos e que a pobreza é um inevitável efeito
colateral de por a casa em ordem. Mas que ordem? O risco de pensarmos que
não há nada a fazer com a Europa, que eles mandam e que nós temos que obedecer
porque nos colocámos a jeito com a dívida. Sim, nós colocamos-nos a jeito,
mas somos membros plenos da União, temos poderes próprios, e talvez não
nos ficasse mal de vez em quando exercê-los. Para além disso não somos os
únicos a pensar que a deriva europeia é perigosa para as democracias nacionais.
E, surpresa, muitas das regras a que chamamos “europeias” não estão em nenhum
tratado, são apenas maus costumes que se implantaram nos anos da crise.
(Da Sábado e uma
adaptação da intervenção feita na sessão solene em Leiria organizada pela
Câmara Municipal para comemorar o 25 de Abril.)
JPP in http://abrupto.blogspot.pt/2016/05/riscos-para-as-nossas-liberdades-tres.html