terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Hannah Arendt. A passagem por Lisboa a caminho da liberdade

A casa onde viveu, em Lisboa

Hannah Arendt

Sem pátria durante mais de duas décadas, a filósofa alemã refugiou-se em Lisboa, em 1941, até conseguir partir para os Estados Unidos. Os deputados do Livre na assembleia municipal propuseram agora que se assinale a casa onde Hannah Arendt viveu. Para que não se esqueça o passado e se reflicta no presente.

Talvez muitos não saibam da curta estada de Hannah Arendt por Portugal. Fugida da França ocupada pelo nazismo, a filósofa, judia e alemã, chegou a Lisboa, em Janeiro de 1941, acompanhada pela mãe e pelo marido, o poeta Heinrich Blücher. Estatuto: refugiada. 
Os deputados do Livre na assembleia municipal querem que se perpetue a passagem da filósofa por Lisboa. Por isso, na reunião de terça-feira daquele órgão, apresentaram uma recomendação à câmara municipal, que foi aprovada por unanimidade, para que a casa onde Hannah Arendt viveu na capital, entre Janeiro e Maio de 1941, seja identificada com uma placa ou um pequeno monumento. Para que se celebre a obra vasta da filósofa, para quem ser alemã e judia, com um pensamento livre das amarras do regime, se revelou uma combinação perigosa. 
Ainda antes de chegar a Lisboa, em 1933 e com 27 anos, as perseguições aos judeus e o seu envolvimento numa organização sionista obrigaram Arendt a fugir da Alemanha, depois de ter sido presa. Hitler ascendeu ao poder, a filósofa acabou por ir parar a Paris, cidade que havia de ser tomada pelos nazis em 1940. Foi colocada num campo de internamento, uma espécie de campo de refugiados, mas conseguiu fugir.
Como destino tinha os Estados Unidos, para onde havia de conseguir fugir em Maio de 1941 (e onde acabaria por morrer, em 1975). Mas não sem antes passar por Lisboa, como tantos judeus, e se estabelecer numa casa, no número 6 da rua da Sociedade Farmacêutica, hoje na freguesia de Santo António, que desemboca junto à entrada traseira do Hospital de Santa Marta, no coração da cidade.  
Este é hoje um edifício recuperado, de linhas sóbrias, amarelado, e com quatro andares que parece manter-se destinado à habitação. A fachada é rasgada ao centro por varandas balaustradas em ferro. Não fossem os azulejos verdes, na base, o painel de azulejos azuis e brancos no coroamento da casa, e a cabeça de cavalo acima da porta da garagem, e o edifício passaria despercebido entre os outros. 
“É uma questão simbólica porque Hannah Arendt é uma das maiores filósofas do século XX”, refere o deputado do Livre, Paulo Muacho, ao PÚBLICO. “Com o drama dos refugiados que continua bastante presente, e sem resolução à vista, e todos os ataques aos direitos humanos a que temos assistido, consideramos que era importante manter a memória daquilo que se passou no passado e do que esta figura da Hannah Arendt representa”, continuou. 
Também  ela foi apátrida durante mais de duas décadas, quando a Alemanha lhe retirou nacionalidade e a privou, por isso, dos seus direitos fundamentais. O que, para ela, era o “fundamental ”, diz Hermenegildo Borges, professor de Teoria Política na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 
“Andar de terra em terra, sem direitos, sem o direito de cidadania, que para ela é fundamental, essa experiência limite de privação dos direitos, levou-a a perceber que havia a necessidade de refundar o pensamento político”, acredita o professor, perante a “fragilidade da racionalidade ocidental que se pensava livre, democrática”.
Foi essa vulnerabilidade vivida em Lisboa, e em outras cidades da Europa e dos Estados Unidos, que terá inspirado uma das mais relevantes obras da filósofa, o manifesto “Nós, Refugiados”.
“Foi um pensamento reflexivo sobre uma experiência de sofrimento que ela viveu. Não foi uma construção intelectual. Ela viveu a falência do ocidente, [a ascensão] do totalitarismo nazi, do fascismo e do estalinismo, numa altura em que estava em marcha a consolidação da democracia”, Hermenegildo Borges. 
“Acho esta recomendação do Livre extremamente pertinente”, admite o professor. Porque o seu pensamento talvez esteja mais actual agora do que há 60, 70 anos, admite, e porque “muitos dos seus receios se confirmam no momento presente”. 
“O direito a ter direito é o direito de cidadania”
Para o docente, a filósofa deixou-nos o “desafio constante” de estarmos “permanentemente em controlo”, vigilantes, para que não haja desvios de regimes democráticos. Porque os perigos e ameaças continuam, não sob a forma de regimes totalitários, como a história os descreveu, mas sob a forma de “ataques terroristas ou do radicalismo islâmico”, elenca. Assim como a escalada da violência, o renascimento de nacionalismos e do extremismo de direita, os radicalismos a sobreporem-se aos ideais democráticos, a crise dos refugiados. 
“Imagine as pessoas que atravessam o Mediterrâneo e chegam sem documentos à Europa. Elas têm a dignidade da pessoa humana, mas enquanto não adquirem o direito de cidadania andam a ser enjauladas, atrás de muros”, aponta Hermenegildo Borges. “O direito a ter direito é o direito de cidadania. Sem cidadania não posso aspirar a ter direitos humanos”, completa. 
O grande “desafio contemporâneo” que Hannah Arendt nos deixa, atira o professor, é o de “sermos capazes de integrar os que chegam e vivermos em comunidade com diferentes credos, culturas, num espaço que é defendido com fronteiras rígidas”, e ter a consciência de que “a diversidade faz riqueza e que a homogeneidade faz pobreza”. 
“O património comum da humanidade é uma riqueza”
As questões da ecologia e do desenvolvimento sustentável eram já fundamentais no pensamento de Hannah Arendt, nota o professor, e vêm ao encontro das “necessidades contemporâneas”. 
“O homem só habita a Terra se a transformar artificialmente, para seu conforto. O homem não consegue viver na Natureza tal como ela nos foi dada. O homem tem que construir pontes, casas, esgotos, carros, comboios, auto-estradas”, explica. Só que “a vontade do homem de transformar o mundo não deve esgotar os recursos da Terra”. 
É preciso caminhar, portanto, para uma “sociedade qye não provoque o esgotamento dos recursos, que não polua nem destrua pela vontade de criar riqueza”, refere o professor, dando imediatamente o exemplo da decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de retirar o país do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas. “São [acordos] essenciais à sobrevivência do planeta e isso só mostra que Trump ainda não aprendeu com a lição da Hannah Arendt”.
Por isso, a perda de património comum, como “a destruição de estátuas, de monumentos, de coisas antiquíssimas, é uma perda para a humanidade extraordinariamente grande", considera o professor. “Só podemos fruir do ar puro se todos os países do mundo se regerem pelo mesmo princípio da não poluição”, exemplifica. 
Segundo explica Hermenegildo Borges, Hannah Arendt elege como condição humana fundamental a “pluralidade”. “Não é o homem sozinho, branco, que habita o mundo. É uma diversidade de povos de culturas. É o homem no seu plural”, para lá dos temperamentos de cada um. 
Além da identificação da casa, assinalando a passagem da filósofa, o deputado Paulo Muacho admite que o partido gostaria de propor também a criação, naquela zona, de um largo que ficaria o nome da filósofa. Onde, quem sabe, se pudessem discutir estas questões que são globais, começando por nos lembrarmos sempre, remata Hermenegildo Borges, que “de cada vez que cai uma bomba sobre uma biblioteca de Bagdad é a destruição de alguma coisa que é minha, que é de todos nós" que está a acontecer.

https://www.publico.pt/2017/12/23/local/noticia/hannah-arendt-a-passagem-por-lisboa-a-caminho-da-liberdade-1797052