Talvez muitos não saibam da curta estada de Hannah
Arendt por Portugal. Fugida da França ocupada pelo nazismo, a filósofa, judia e
alemã, chegou a Lisboa, em Janeiro de 1941, acompanhada pela mãe e pelo marido,
o poeta Heinrich Blücher. Estatuto: refugiada.
Os deputados do Livre na assembleia municipal querem
que se perpetue a passagem da filósofa por Lisboa. Por isso, na reunião de
terça-feira daquele órgão, apresentaram uma recomendação à câmara municipal,
que foi aprovada por unanimidade, para que a casa onde Hannah Arendt viveu na
capital, entre Janeiro e Maio de 1941, seja identificada com uma placa ou um
pequeno monumento. Para que se celebre a obra vasta da filósofa, para quem ser
alemã e judia, com um pensamento livre das amarras do regime, se revelou uma
combinação perigosa.
Ainda antes de chegar a Lisboa, em 1933 e com 27 anos,
as perseguições aos judeus e o seu envolvimento numa organização sionista
obrigaram Arendt a fugir da Alemanha, depois de ter sido presa. Hitler ascendeu
ao poder, a filósofa acabou por ir parar a Paris, cidade que havia de ser
tomada pelos nazis em 1940. Foi colocada num campo de internamento, uma espécie
de campo de refugiados, mas conseguiu fugir.
Como destino tinha os Estados Unidos, para onde havia
de conseguir fugir em Maio de 1941 (e onde acabaria por morrer, em 1975). Mas
não sem antes passar por Lisboa, como tantos judeus, e se estabelecer numa
casa, no número 6 da rua da Sociedade Farmacêutica, hoje na freguesia de Santo
António, que desemboca junto à entrada traseira do Hospital de Santa Marta, no
coração da cidade.
Este é hoje um edifício recuperado, de linhas sóbrias,
amarelado, e com quatro andares que parece manter-se destinado à habitação. A
fachada é rasgada ao centro por varandas balaustradas em ferro. Não fossem os
azulejos verdes, na base, o painel de azulejos azuis e brancos no coroamento da
casa, e a cabeça de cavalo acima da porta da garagem, e o edifício passaria
despercebido entre os outros.
“É uma questão simbólica porque Hannah Arendt é uma
das maiores filósofas do século XX”, refere o deputado do Livre, Paulo Muacho,
ao PÚBLICO. “Com o drama dos refugiados que continua bastante presente, e sem
resolução à vista, e todos os ataques aos direitos humanos a que temos
assistido, consideramos que era importante manter a memória daquilo que se
passou no passado e do que esta figura da Hannah Arendt representa”,
continuou.
Também ela foi apátrida durante mais de duas
décadas, quando a Alemanha lhe retirou nacionalidade e a privou, por isso, dos
seus direitos fundamentais. O que, para ela, era o “fundamental ”, diz
Hermenegildo Borges, professor de Teoria Política na Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
“Andar de terra em terra, sem direitos, sem o direito
de cidadania, que para ela é fundamental, essa experiência limite de privação
dos direitos, levou-a a perceber que havia a necessidade de refundar o
pensamento político”, acredita o professor, perante a “fragilidade da
racionalidade ocidental que se pensava livre, democrática”.
Foi essa vulnerabilidade vivida em Lisboa, e em outras
cidades da Europa e dos Estados Unidos, que terá inspirado uma das mais
relevantes obras da filósofa, o manifesto “Nós, Refugiados”.
“Foi um pensamento reflexivo sobre uma experiência de
sofrimento que ela viveu. Não foi uma construção intelectual. Ela viveu a
falência do ocidente, [a ascensão] do totalitarismo nazi, do fascismo e do
estalinismo, numa altura em que estava em marcha a consolidação da democracia”,
Hermenegildo Borges.
“Acho esta recomendação do Livre extremamente
pertinente”, admite o professor. Porque o seu pensamento talvez esteja mais
actual agora do que há 60, 70 anos, admite, e porque “muitos dos seus receios
se confirmam no momento presente”.
“O direito a ter direito é o direito de
cidadania”
Para o docente, a filósofa deixou-nos o “desafio
constante” de estarmos “permanentemente em controlo”, vigilantes, para que não
haja desvios de regimes democráticos. Porque os perigos e ameaças continuam,
não sob a forma de regimes totalitários, como a história os descreveu, mas sob
a forma de “ataques terroristas ou do radicalismo islâmico”, elenca. Assim como
a escalada da violência, o renascimento de nacionalismos e do extremismo de
direita, os radicalismos a sobreporem-se aos ideais democráticos, a crise dos
refugiados.
“Imagine as pessoas que atravessam o Mediterrâneo e
chegam sem documentos à Europa. Elas têm a dignidade da pessoa humana, mas
enquanto não adquirem o direito de cidadania andam a ser enjauladas, atrás de
muros”, aponta Hermenegildo Borges. “O direito a ter direito é o direito de
cidadania. Sem cidadania não posso aspirar a ter direitos humanos”,
completa.
O grande “desafio contemporâneo” que Hannah Arendt nos
deixa, atira o professor, é o de “sermos capazes de integrar os que chegam e
vivermos em comunidade com diferentes credos, culturas, num espaço que é
defendido com fronteiras rígidas”, e ter a consciência de que “a diversidade
faz riqueza e que a homogeneidade faz pobreza”.
“O património comum da humanidade é uma
riqueza”
As questões da ecologia e do desenvolvimento
sustentável eram já fundamentais no pensamento de Hannah Arendt, nota o
professor, e vêm ao encontro das “necessidades contemporâneas”.
“O homem só habita a Terra se a transformar
artificialmente, para seu conforto. O homem não consegue viver na Natureza tal
como ela nos foi dada. O homem tem que construir pontes, casas, esgotos,
carros, comboios, auto-estradas”, explica. Só que “a vontade do homem de
transformar o mundo não deve esgotar os recursos da Terra”.
É preciso caminhar, portanto, para uma “sociedade qye
não provoque o esgotamento dos recursos, que não polua nem destrua pela vontade
de criar riqueza”, refere o professor, dando imediatamente o exemplo da decisão
do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de retirar o país do Acordo de
Paris sobre as alterações climáticas. “São [acordos] essenciais à sobrevivência
do planeta e isso só mostra que Trump ainda não aprendeu com a lição da Hannah
Arendt”.
Por isso, a perda de património comum, como “a
destruição de estátuas, de monumentos, de coisas antiquíssimas, é uma perda
para a humanidade extraordinariamente grande", considera o professor. “Só
podemos fruir do ar puro se todos os países do mundo se regerem pelo mesmo
princípio da não poluição”, exemplifica.
Segundo explica Hermenegildo Borges, Hannah Arendt
elege como condição humana fundamental a “pluralidade”. “Não é o homem sozinho,
branco, que habita o mundo. É uma diversidade de povos de culturas. É o homem
no seu plural”, para lá dos temperamentos de cada um.
Além da identificação da casa, assinalando a passagem
da filósofa, o deputado Paulo Muacho admite que o partido gostaria de propor
também a criação, naquela zona, de um largo que ficaria o nome da filósofa.
Onde, quem sabe, se pudessem discutir estas questões que são globais, começando
por nos lembrarmos sempre, remata Hermenegildo Borges, que “de cada vez que cai
uma bomba sobre uma biblioteca de Bagdad é a destruição de alguma coisa que é
minha, que é de todos nós" que está a acontecer.
https://www.publico.pt/2017/12/23/local/noticia/hannah-arendt-a-passagem-por-lisboa-a-caminho-da-liberdade-1797052