Bom Natal!
Enquanto a
receita xenófoba der votos, é preciso coragem para fazer como Emmanuel Macron
ou Angela Merkel. 1. Angela Merkel e os seus pares europeus têm direito a umas
merecidas férias nesta época natalícia que as sociedades europeias, livres,
prósperas e relativamente justas, gozam “religiosamente”. Aliás, é melhor que
recuperem forças, porque 2018 vai ser um ano em que muita coisa se joga sobre o
futuro dos europeus e sobre o lugar que a História dará aos seus líderes.
A
chanceler continuará a ser decisiva, mesmo que a opinião pública alemã a veja
com um olhar bastante mais crítico do que é vista, ironia das ironias, por
muitos governos europeus.
O Natal é tempo
de esperança e, talvez por isso, ainda acredito no vaticínio de Wolfgang
Munchau, colunista do Financial Times, quando, no auge da crise, manifestou
algum optimismo com um argumento aparentemente imbatível: Merkel não vai querer
ficar na História como a chanceler que veio do Leste para destruir a União
Europeia. Fará o que for preciso ao mais baixo custo e no último momento. Mas
fará. Espera-se que aproveite o seu último mandato para fazer mais do que
igualar os 16 anos que Helmut Kohl esteve no poder.
Com a sua
quarta vitória consecutiva, ainda que bem mais modesta, e com o fracasso da
“coligação Jamaica”, alguma imprensa internacional, da Spiegel ao Wall Street Journal,
começou a escrever-lhe o obituário político. Porventura cedo de mais. Precisa
de um bom acordo com o SPD e os sociais-democratas vão ter de baixar um pouco o
tom para que isso seja possível. A chanceler sempre justificou a forma como
geriu a crise do euro, impondo uma austeridade cega aos infractores do Sul, com
duas preocupações de longo prazo: impedir o nascimento de um partido de
extrema-direita na Alemanha, justamente o país onde a sua existência seria mais
perturbadora; ter em atenção a catastrófica demografia alemã, contendo a
despesa pública e abrindo as portas a gente vinda de fora para colmatar a
baixíssima taxa de natalidade e garantir as pensões e a prosperidade.
Os estudos
sobre a demografia europeia, mantendo-se as tendências actuais, indicam que a
França e o Reino Unido vão aumentar a sua população nas próximas décadas,
ultrapassando a Alemanha, que verá uma redução acentuada. Pode dizer-se que a
chanceler falhou num destes objectivos, com a entrada no Bundestag de um
partido de extrema-direita, elegendo 95 deputados. No outro, o resultado é
misto. A chegada de um milhão de refugiados vindos da guerra da Síria e de
outros conflitos nas fronteiras da Europa, aos quais a chanceler abriu as
portas com generosidade mas também com racionalidade, acabou por criar-lhe o
seu maior problema político.
2. A
vitória de Macron, com um programa assente na defesa convicta da Europa e de
tudo o que ela representa, foi uma alma nova, mas não chegou, como se tem
visto, para estancar a vaga populista e xenófoba que atravessa a Europa, com
altos e baixos, mas muito longe ainda de regredir. É a alma da integração
europeia que está em causa: o nacionalismo ou a abertura aos outros; a
xenofobia ou a capacidade de integrar; o regresso das fronteiras ou a pergunta
de Monnet sobre essa linha imaginária a que chamamos fronteira, que torna
inimigos os que estão de um lado e do outro. Hoje, a Polónia é o lugar onde
esse confronto de ideias se trava de forma mais visível. A resposta europeia é
tudo menos fácil. A maioria qualificada necessária para a aplicação de sanções
ao Governo de Varsóvia, por sistemática e persistente violação das regras do
Estado de Direito, pode ser anulada por um veto, que Budapeste garante que
utilizará. O fenómeno identitário regressou quase sem o vermos chegar. Com uma
força com que não contávamos. A instabilidade passou a ser o estado natural das
democracias europeias, o que é normal perante a crise que a Europa viveu e a
transformação acelerada que o mundo está a viver. Nada poderia continuar como
dantes. A questão é saber como controlar esta transição sem pôr em causa aquilo
que é essencial. Não estamos em modo de Estados Unidos da Europa, como o líder
social-democrata alemão, Martin Schulz, se lembrou de reclamar. Mas não podemos
ficar indiferentes perante o regresso de uma ideologia identitária e
nacionalista que, como diz Joschka Fischer numa entrevista à Spiegel com uma
brutalidade invulgar, os alemães conhecem demasiado bem. “Sabemos como este
filme termina.” O que vai acontecer na Polónia é ainda uma incógnita.
Dispensa-se qualquer arrogância iluminada de Bruxelas. Frans Timmermans,
vice-presidente da Comissão, não foi por aí. Apelou em vez de exigir. Explicou
em vez de ditar. Uma boa novidade. Mas, de repente, os males que devoraram a
Europa na primeira metade do século passado ousam exprimir-se na praça pública
sem qualquer espécie de vergonha. É isso que é perturbador. É isso que
dificulta a análise e nos faz hesitar sobre as palavras que devemos aplicar.
Populismo? Bom e mau? Nacionalismo? Extrema-direita? Direita radical?
Exageramos ou subestimamos? São os mesmos demónios que assolaram a Europa, só
que com uma patine “civilizada”? Ou forças radicais que não põem em causa a
democracia?
3. Na
Áustria, Sebastian Kurz, o líder dos sociais-cristãos que ganhou o título de
“rapaz maravilha” graças aos seus 31 anos de idade, formou uma coligação de
governo com o “Partido da Liberdade” (um nome que me custa sempre escrever),
xenófobo e populista que, há bem pouco tempo, ainda se declarava antieuropeu
(exigia um referendo como o britânico) e que agora, aparentemente, se rendeu ao
europeísmo moderado do novo chanceler. Herdeiro do velho partido de
extrema-direita de Joerg Haider que assustou a Europa em 2000, ainda que
expurgado das referências anti-semitas e nazis do seu fundador, não pode ser
visto como um partido que partilhe os valores universais de que a integração
europeia é portadora, porque não havia nem há outro modo de a conseguir. A sua
cartilha política é a do costume: contra os imigrantes, em particular os
islâmicos, indo ao encontro do que pensam muitos eleitores. E nem se pode dizer
que a culpa é do centro-direita de Sebastian Kurz. Perante os resultados
eleitorais, que lhe deram a vitória (32%) contra um pouco mais de 27% para os
sociais-democratas, que lideraram a “grande coligação” que governou Viena nos
últimos anos, o líder do centro-esquerda também tentou uma coligação com a
extrema-direita. A Áustria recebeu um grande número de refugiados da Síria, que
atravessaram o chamado corredor balcânico. Muitos ficaram na fronteira, que o
Governo encerrou, outros conseguiram chegar ao “paraíso” alemão e outros,
ainda, ficaram. O Estado social austríaco continua a ser bastante generoso. Os
austríacos bastante menos. Há pequenos sinais inquietantes. Por exemplo, o novo
Governo de Viena quer oferecer às populações de língua alemã que vivem desde a
guerra no Tirol italiano a nacionalidade austríaca. Por que carga de água? Kurz
moderou a proposta do seu parceiro de coligação, dizendo que só o fará em
negociação com o governo italiano. O líder da extrema-direita, Heinz-Christian
Strache, também segue o padrão dos seus congéneres europeus em matéria de
amizades internacionais: não esconde a sua inclinação por Putin. Mais uma vez,
Kurz aceita uma versão mais moderada: tentará levar os seus parceiros europeus
a levantar as sanções contra a Rússia.
4.
Enquanto a receita xenófoba der votos, é preciso coragem para fazer como
Emmanuel Macron ou como Angela Merkel. É por isso que ambos estão hoje tão
fortemente ligados pela mesma responsabilidade política de defender a
moderação, a tolerância e a abertura ao mundo que ditará o destino da Europa. É
por isso, também, que países como Portugal, até agora imunes ao contágio da
xenofobia e do nacionalismo, ganham uma nova responsabilidade política, como se
viu com a escolha de Mário Centeno para presidir ao Eurogrupo. Não foi só
cumprir as metas do défice. Foi também a compreensão desse papel de moderação
política e da criação de alternativas capazes de encontrar um terreno comum.
5. Apenas
uma nota final. A vitória de Inés Arrimadas nas eleições da Catalunha é o
retrato perfeito da autêntica democracia europeia: uma andaluza, casada com um
separatista catalão, que representa um partido de centro liberal e que não tem
medo de defender o que pensa. O “independentismo” dos ricos não é um fenómeno
novo. A Liga Norte da Lombardia, uma das regiões mais ricas da Europa, também
não quer pagar para o Sul de Itália, muito mais pobre. No fundo, é mais ou
menos a mesma coisa, mesmo que em Barcelona tenha a marca da esquerda radical e
em Milão da velha direita nacionalista. Tenhamos esperança.
Teresa de Sousa tp.ocilbup@asuos.ed.aseret - Jornal PÚBLICO
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