Não é
submundo, é o capitalismo globalizado
Já sabíamos
da existência dos labirintos financeiros que passam pelas offshores. A novidade
da Panama Papers é que desta vez nos mostraram o mapa do tesouro. “Eles”
passaram a ter nome. Tanto podem ser o primeiro-ministro da Islândia (pouco
tempo depois da direita ter regressado ao poder já está de novo a afogar-se num
escândalo), Vladimir Putin (nada mais nada menos do que dois mil milhões de dólares
debaixo do colchão) ou narcotraficantes mexicanos. Da família do presidente Xi
Jiping ao pai do primeiro-ministro David Cameron. 29 multimilionários da lista
dos 500 mais ricos da “Forbes”. São políticos, grandes empresários, estrelas de
cinema e do futebol, traficantes de droga ou terroristas.
São 40 anos
de história de atividades legais e ilegais, mas quase todas serão danosas para
os Estados. Não estamos a falar propriamente do submundo da finança e das
empresas. Estamos a falar da criação de companhias fantasma (mais de 15 mil)
nas Ilhas Virgens britânicas, no Panamá e outros paraísos fiscais por
instituições como a UBS e a HSBC. Nuns casos serão habilidades legais, noutros
fuga ao fisco, noutros lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de droga ou
de assaltos.
Nas próximas
semanas centenas de jornalistas envolvidos nesta investigação (falarei deste
método de trabalho noutro texto que será, porque a realidade é sempre
complicada, contraditório com este) irão deixando sair informação trabalhada
sobre cada caso. Mas enquanto se trata de cada árvore gostaria de falar da
floresta.
Não foi há
muitos meses que um relatório da Oxfam para o Fórum Económico Mundial de Davos
informava que havia cerca de 7 biliões de euros em paraísos fiscais, que
corresponderiam a uma perda de receitas para os Estados de 174 mil milhões
anuais, e que apenas 13 das 200 maiores empresas do mundo não recorrem a
offshores. Estes números deixam claro que o recurso a paraísos fiscais são a
norma, não a exceção. O caso que agora merece divulgação não é a descoberta de
um escândalo. Para haver escândalo é preciso haver surpresa. Não chega também a
ser uma notícia. É o cão a morder o homem, não o homem a morder o cão. O que é
escandaloso e merece notícia é que, de uma assentada e apenas através de um das
muitas fontes possíveis (o que quer dizer que temos apenas um retrato
muitíssimo parcelar da coisa), podemos ver como funciona o capitalismo
globalizado em que vivemos.
Hoje, o
sistema financeiro e económico legítimo trabalha paredes meias com o crime
organizado, usando estratagemas semelhantes com o mesmo objetivo: esconder o
dinheiro. Nuns casos, a sua origem, noutros o destino, noutros para fugir aos
impostos e em alguns um pouco de tudo. Far-se-á a distinção entre o que em tudo
isto é legal e ilegal. Mas não se faça entre o que é legítimo e ilegítimo. Não
há qualquer razão legítima para a existência de offshores. É mau para os
Estados e para as populações, é mau para a economia e para a transparência. É
bom para quem não quer cumprir os seus deveres ou quer fugir à lei.
O facto de
nesta investigação terem surgido tantos nomes de políticos ajuda a explicar
porque é que não tem sido uma prioridade para os Estados combater esta máquina
misturadora entre crime e economia formal. Mas devemos ter um olhar mais
abrangente. A globalização capitalista, que se sobrepõe às leis das Nações, não
responde perante os Estados individualmente considerados ou, mesmo que se
simule que tal acontece, a organizações internacionais. A permeabilidade ao
crime, por ausência de “polícia” que o contenha, é da sua natureza. Haverá quem
acredite que poderemos caminhar para uma globalização política capaz de voltar
a colocar o poder económico debaixo da alçada do poder político, única forma de
impedir que ele nos destrua e se destrua a si mesmo. Não vejo qualquer sinal
que aponte nesse sentido. Por isso, acredito que o homem descobrirá, com
inteligência ou da mais trágica das formas, que o travão a esta globalização
financeira não é uma opção ideológica. É uma questão de sobrevivência. Porque o
capitalismo globalizado e sem freios (assim como a Internet sem regras)
resultará numa crescente fusão entre a legalidade e a criminalidade até
vivermos no caos absoluto.
Ao contrário
do que tenho lido, não foi o submundo que se revelou com a Panama Papers. Foi o
mundo em que vivemos e que nos recusamos a enfrentar. Apesar de todas as
evidências, parece ser inaceitável dizer que a democracia que conhecemos e o
Estado que impõe a lei não são compatíveis com este capitalismo financeiro
globalizado.
Compreendo a
dificuldade em aceitar que se recue para as nações, até por não ser fácil
imaginar como isso se faz. A questão é se queremos, em alternativa, recuar para
a selva.
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 05/04/2016)