sábado, 9 de julho de 2016

Capitalismo, globalização...



Não é submundo, é o capitalismo globalizado


Já sabíamos da existência dos labirintos financeiros que passam pelas offshores. A novidade da Panama Papers é que desta vez nos mostraram o mapa do tesouro. “Eles” passaram a ter nome. Tanto podem ser o primeiro-ministro da Islândia (pouco tempo depois da direita ter regressado ao poder já está de novo a afogar-se num escândalo), Vladimir Putin (nada mais nada menos do que dois mil milhões de dólares debaixo do colchão) ou narcotraficantes mexicanos. Da família do presidente Xi Jiping ao pai do primeiro-ministro David Cameron. 29 multimilionários da lista dos 500 mais ricos da “Forbes”. São políticos, grandes empresários, estrelas de cinema e do futebol, traficantes de droga ou terroristas.

São 40 anos de história de atividades legais e ilegais, mas quase todas serão danosas para os Estados. Não estamos a falar propriamente do submundo da finança e das empresas. Estamos a falar da criação de companhias fantasma (mais de 15 mil) nas Ilhas Virgens britânicas, no Panamá e outros paraísos fiscais por instituições como a UBS e a HSBC. Nuns casos serão habilidades legais, noutros fuga ao fisco, noutros lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de droga ou de assaltos.

Nas próximas semanas centenas de jornalistas envolvidos nesta investigação (falarei deste método de trabalho noutro texto que será, porque a realidade é sempre complicada, contraditório com este) irão deixando sair informação trabalhada sobre cada caso. Mas enquanto se trata de cada árvore gostaria de falar da floresta.

Não foi há muitos meses que um relatório da Oxfam para o Fórum Económico Mundial de Davos informava que havia cerca de 7 biliões de euros em paraísos fiscais, que corresponderiam a uma perda de receitas para os Estados de 174 mil milhões anuais, e que apenas 13 das 200 maiores empresas do mundo não recorrem a offshores. Estes números deixam claro que o recurso a paraísos fiscais são a norma, não a exceção. O caso que agora merece divulgação não é a descoberta de um escândalo. Para haver escândalo é preciso haver surpresa. Não chega também a ser uma notícia. É o cão a morder o homem, não o homem a morder o cão. O que é escandaloso e merece notícia é que, de uma assentada e apenas através de um das muitas fontes possíveis (o que quer dizer que temos apenas um retrato muitíssimo parcelar da coisa), podemos ver como funciona o capitalismo globalizado em que vivemos.

Hoje, o sistema financeiro e económico legítimo trabalha paredes meias com o crime organizado, usando estratagemas semelhantes com o mesmo objetivo: esconder o dinheiro. Nuns casos, a sua origem, noutros o destino, noutros para fugir aos impostos e em alguns um pouco de tudo. Far-se-á a distinção entre o que em tudo isto é legal e ilegal. Mas não se faça entre o que é legítimo e ilegítimo. Não há qualquer razão legítima para a existência de offshores. É mau para os Estados e para as populações, é mau para a economia e para a transparência. É bom para quem não quer cumprir os seus deveres ou quer fugir à lei.

O facto de nesta investigação terem surgido tantos nomes de políticos ajuda a explicar porque é que não tem sido uma prioridade para os Estados combater esta máquina misturadora entre crime e economia formal. Mas devemos ter um olhar mais abrangente. A globalização capitalista, que se sobrepõe às leis das Nações, não responde perante os Estados individualmente considerados ou, mesmo que se simule que tal acontece, a organizações internacionais. A permeabilidade ao crime, por ausência de “polícia” que o contenha, é da sua natureza. Haverá quem acredite que poderemos caminhar para uma globalização política capaz de voltar a colocar o poder económico debaixo da alçada do poder político, única forma de impedir que ele nos destrua e se destrua a si mesmo. Não vejo qualquer sinal que aponte nesse sentido. Por isso, acredito que o homem descobrirá, com inteligência ou da mais trágica das formas, que o travão a esta globalização financeira não é uma opção ideológica. É uma questão de sobrevivência. Porque o capitalismo globalizado e sem freios (assim como a Internet sem regras) resultará numa crescente fusão entre a legalidade e a criminalidade até vivermos no caos absoluto.

Ao contrário do que tenho lido, não foi o submundo que se revelou com a Panama Papers. Foi o mundo em que vivemos e que nos recusamos a enfrentar. Apesar de todas as evidências, parece ser inaceitável dizer que a democracia que conhecemos e o Estado que impõe a lei não são compatíveis com este capitalismo financeiro globalizado.


Compreendo a dificuldade em aceitar que se recue para as nações, até por não ser fácil imaginar como isso se faz. A questão é se queremos, em alternativa, recuar para a selva.



(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 05/04/2016)