A TVE PARA MIM
ACABOU
(Fantástico testemunho de Ricardo Silveirinha contra as touradas)
A minha família nāo desgostava de touradas. Não que se babassem por ir ver o Tito Capristano à Moita ou o Nelo Cagarras a Santarém, mas lá em casa, se passava uma Corrida, a malta ficava a ver. Nas férias andaluzes, chegados ao apartamento com sal mediterrânico, o meu Pai punha na TVE e até ao jantar sorvíamos a cantilena espanhola dos comentadores especialistas e 8 ou 10 toiros de morte.
A minha família nāo desgostava de touradas. Não que se babassem por ir ver o Tito Capristano à Moita ou o Nelo Cagarras a Santarém, mas lá em casa, se passava uma Corrida, a malta ficava a ver. Nas férias andaluzes, chegados ao apartamento com sal mediterrânico, o meu Pai punha na TVE e até ao jantar sorvíamos a cantilena espanhola dos comentadores especialistas e 8 ou 10 toiros de morte.
Não éramos
aficionados mas gostávamos de ver. Do espectáculo. Da arte do matador. Da
faena. Da orquestra. Do tribalismo. Só não podíamos ver os cavaleiros. Gajos de
jaqueta brilhante montados num cavalo a espetar farpas que se transformavam em
bandeirinhas que acenavam ao público. Degradante. O cavaleiro é o cobarde da
tourada, é o puto que insulta e depois foge. Tínhamos, eu e o meu Pai, um
sonho: unir a Ibéria numa só tourada: matadores espanhóis, forcados
portugueses. Os cavaleiros passariam a alisar a areia, a limpar os estábulos e
a dar água aos toiros.
Olho a
televisão com o canal público a dar tourada. Aquelas mesmas caras de sempre de
olhar bovino. Caras de gente laranja, de bigodes falsamente aristocráticos, as
famílias da "tradição", os betos e os que querem passar por betos, as
calças caqui, os penteados, as patilhas, uma portugalidade meio bizarra que
parece advir de promíscuas relações entre primos e irmãos. Esta gente que ali
está atrás das tábuas funde-se com as vacas em noites de Inverno: por isso
aquele bovino olhar, a mansidão das carecas reluzentes, a lhaneza.
Não é fácil questionarmos as coisas que enquanto
crescemos eram naturais. Mais difícil quando as víamos junto aos que amamos. O
meu Pai gostava de ver e eu via e também gostava porque gostava dele. Vamos
continuar a ir aos nossos sítios a que íamos sempre juntos. Vamos a Moledo, a
Ceuta, a Sevilha, a Mijas, ao Forte de Peniche, às Caldas do Luiz Pacheco, a
Vilarelho ouvir o Maestro Coca-Cola Killer ensinar Bach às gentes do campo,
vamos continuar a ir ao Estádio da Luz e a abraçarmo-nos dentro dos golos do
Benfica, mas, Pai, a TVE para mim acabou.
Há qualquer
coisa de profundamente degradante nas touradas. Não é só o sofrimento do
animal, é o espanto com que ele observa os animais da bancada. A incredulidade
de estar perante a maldade do mundo. O toiro leva nos olhos uma tristeza de
estar assistindo à vileza do humano. Porte imponente, músculos fortes, cornos
pontiagudos, nobreza de carácter, mas os olhos... É nos olhos do toiro que nós
vemos a sua ingenuidade. Uma criança perdida no meio da multidão.
O animal sorve
a vida de forma natural. Passa anos a comer ervinhas, a ver pores-do-sol, a
esfocinhar amorosamente com outros animais. Vive a vida em liberdade, em campos
abertos de luz, por onde pode correr, parar, dormitar, ficar só a ver. Ficar só
a viver. Recebe arco-íris com uma chuvinha que lhe molha a língua e as
dentolas, afasta borboletas e mosquitos com um espirro, ressona e acorda os
pássaros da árvore onde está encostado. O animal não reflecte sobre o mundo,
mas vive-o. Sobretudo, sente-o. Os elementos da natureza são-lhe prazenteiros.
É-lhe natural ir beberricar aquela água, comer este molhe de ervas, cagar ou
mijar onde lhe apetecer. O céu é-lhe natural, as nuvens e o Sol, os caminhos de
terra, as plantas, os passarinhos. Aquela brisa que vem em Agosto com cheiro a
cereais. Ele levanta a cabeça, fecha os olhos e sente-a. Não pensa sobre ela,
mas sabe-a.
De repente, uma
arena! Um cubículo de areia com milhares de pessoas e vozes e urros! De
repente, o horror. Chamam-no, assustam-no, dão-lhe palmadas na cabeça,
espetam-lhe ferros frios no lombo. Encosta-se às tábuas, sente a madeira,
procura um caminho para voltar para o campo. Está cercado. Cornetas, luzes,
gritos. Rios de sangue escorrem-lhe pelo corpo. O peso das bandarilhas coloridas
enquanto corre. Não entende aquilo, não sabe o porquê. Cansado, ofegante, em
pânico, investe contra o carrossel de homens e cavalos que o rodeiam.
Baixa a cabeça,
com as patas tenta furar o chão como se pudesse abrir um alçapão que o fizesse
cair da arena para um prado onde corresse e lambuzasse as bochechas de outro
toiro. Um campo aberto a céu aberto. Sem cornetas, sem pessoas, sem gritos, sem
bandarilhas coloridas, sem bigodes quase aristocráticos, sem ferros frios no
lombo, sem rios de sangue pelo corpo, sem maldade. O último sonho do toiro
antes de morrer.
Ricardo Silveirinha (a quem, desde já, agradeço)