Touradas
No dia 11 de Julho de 2002, depois de a Assembleia da República Portuguesa
ter legalizado a morte de touros em Barrancos, a inteligência civilizada e a
sensibilidade culta ficaram de luto em nome da «tradição» local.
Contudo, como me lembro de alguém dizer no noticiário de um canal público desse
mesmo dia, a única «tradição» autenticamente portuguesa parece ser a da cobardia
política. Foi, de facto, a cobardia e o oportunismo políticos que aprovaram
(ou incentivaram a aprovação de) uma lei de consagração da ignorância
(muitas vezes cândida) e da irracionalidade (quase sempre amparada em
pretensos desideratos de bravura).
A tourada, qualquer forma de tourada, é em si mesma um espectáculo
repugnante. Chamar-lhe arte, como alguns têm o desplante de fazer, é um insulto a
tudo quanto o homem conseguiu alcançar através do progresso da inteligência e
da sensibilidade. Se algum sentimento estético se destaca de uma tourada,
ele será equiparável ao sentimento estético que está associado ao grotesco e a
modos perversos de representação do mundo.
A tourada, qualquer forma de tourada, é em si mesma um espectáculo
repugnante.
Tão repugnante como os maus tratos infligidos a ursos e outros
animais em espectáculos de rua levados a cabo em países ditos economicamente
subdesenvolvidos.
Tão repugnante como as lutas de cães e outros
animais que se desenrolam quase impunemente em países ditos economicamente
desenvolvidos.
A tourada, qualquer forma de tourada, é tão repugnante agora como o eram,
há centenas de anos atrás, os espectáculos de lutas entre animais que se
realizavam em várias cidades da Europa. Espectáculos que eram tão populares
quanto os autos de fé em que se queimavam homens e mulheres acusados de
heresia, crime político ou coisas semelhantes. Contudo, apesar de todas as
contradições que a História regista, a maior parte da Europa foi aprendendo,
aprofundando e exportando a razão moral subjacente à recusa da violência
sacrificial contida em espectáculos como a tourada.
Não vale a pena
repetir argumentos por todos conhecidos. A fronteira está traçada. Se o homem
continuar o percurso, acidentado mas firme, de reavaliação crítica da sua
relação com todas as formas de vida, a tourada está condenada a desaparecer.
Nem a intelectualização que alguns dela fazem (colocando-a no domínio dos
regimes míticos) lhe poderá valer. Neste sentido, a cobardia dos políticos
portugueses (de direita e de esquerda) é apenas um sintoma do fim. Se o
fim está longe ou perto é algo que depende de todos quantos consideram
aberrante e repugnante, toda e qualquer tourada.
A legalização da morte de touros em Barrancos no dia 11 de Julho de 2002
representou a queda da máscara de políticos medrosos e incompetentes mas, se nós
quisermos, podemos dar um sentido nobre e digno à data. Basta sinalizá-la como
uma etapa de referência na luta portuguesa pela dignidade de todos os seres
vivos, bem como pela dignificação do ser humano enquanto ser que tem
irrecusáveis responsabilidades morais perante todos os seres vivos em virtude
do lugar dominante que ocupa no planeta.
Contudo, a luta pela nossa própria dignidade não se pode fechar numa
espécie de concurso de gritarias e insultos. Ela deve passar pelo
reconhecimento do país que somos e, consequentemente, pela necessidade de
elevar os nossos padrões educativos.
Em suma, a luta portuguesa pela abolição da tourada (qualquer tourada), bem
como de todas as práticas e espectáculos aberrantes de desrespeito pela vida
(qualquer vida) deve passar pela insistência na educação e nas
responsabilidades que o Estado tem nesse domínio.
Termino com uma nota de rodapé: E se os professores se lembrarem deste
tópico nas suas aulas e o puserem à discussão? Sem ideias pré-concebidas nem
julgamentos de valor, deixando o essencial ao cuidado da inteligência e
sensibilidade dos seus alunos…!
Por Manuel Frias Martins*
*
Professor, a quem foi recentemente (24 de Junho) atribuído, por unanimidade, o Grande
Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho 2015, com a obra «A
Espiritualidade Clandestina de José Saramago», editada pela Fundação José
Saramago.
Fontes:
arcodealmedina.blogs.sapo.pt/touradas-566699
https://www.facebook.com/friasmartins/posts/829807690448901:0
Nota:
Título e sublinhados da minha autoria (Nazaré Oliveira)
"O espectáculo [de touradas com touros de morte] de Barrancos é verdadeiramente demoníaco, assustador, horrível. É a perseguição de animais pelas ruas seguida da sua morte lenta para gáudio de pessoas".