O Norte
"Primeiro, as verdades. O Norte é mais Português que
Portugal. As minhotas são as raparigas mais bonitas do País.
O Minho é a nossa província mais estragada e continua a ser a
mais bela.
As festas da Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais
impressionantes que já se viram. Viana do Castelo é uma cidade clara. Não
esconde nada. Não há uma Viana secreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em
Viana do Castelo está tudo à vista. A luz mostra tudo o que há para ver. É uma
cidade verde-branca. Verde-rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde
mais escuro, que se vê nas árvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece
tornar-se branco ao olhar. Até o granito das casas.
Mais verdades.
No Norte a comida é melhor. O vinho é melhor. O serviço é melhor.
Os preços são mais baixos. Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer
muito bem e pagar uma ninharia. Estas são as verdades do Norte de Portugal.
Mas há uma verdade maior. É que só o Norte existe. O Sul não
existe. As partes mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira,
Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta. Não se diz
que se é do Sul como se diz que se é do Norte. No Norte dizem-se e orgulham-se
de se dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista? No Norte, as
pessoas falam mais no Norte do que todos os portugueses juntos falam de
Portugal inteiro. Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um
segundo país. Não haja enganos. Não falam do Norte para separá-lo de Portugal.
Falam do Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal. Para um nortenho, há
o Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal. Mas o
Norte é onde Portugal começa. Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar,
a correr por ali abaixo. Deus nos livre, mas se se perdesse o resto do país e
só ficasse o Norte, Portugal continuaria a existir. Como país inteiro. Pátria
mesmo, por muito pequenina. No Norte. Em contrapartida, sem o Norte, Portugal
seria uma mera região da Europa. Mais ou menos peninsular, ou insular.
É esta a verdade. Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma
cidade. O Alentejo é especial mas ibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa
e os Açores são um caso à parte. Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem
no Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do
Algarve - falam do Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade
incompreensível a que chamam, qual hipermercado de mil misturadas, Continente.
No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está
muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem não
quer a coisa. O Norte cheira a dinheiro e a alecrim. O asseio não é asséptico -
cheira a cunhas, a conhecimentos e a arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade.
Em contrapartida, a conservação fantástica de (algum) Alentejo é impecável,
porque os alentejanos são mais frios e conservadores (menos portugueses) nessas
coisas.
O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçura
agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que
luz numa orelha pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso. As
raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis, daqueles em
que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos. Têm o
ar de quem pertence a si própria. Andam de mãos nas ancas. Olham de frente.
Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho
para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem
para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo
queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto
da vergonha delas, da maneira como coram quando se lhes fala e da maneira como
podem puxar de um estalo ou de uma panela, quando se lhes falta ao respeito.
Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atrás das orelhas, e das velhas, de
carrapito perfeito, que têm os olhos endurecidos de quem passou a vida a cuidar
dos outros. Gosto dos brincos, dos sapatos, das saias. Gosto das burguesas,
vestidas à maneira, de braço enlaçado nos homens. Fazem-me todas medo, na
maneira calada como conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas. São
mulheres que possuem; são mulheres que pertencem. As mulheres do Norte deveriam
mandar neste país. Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante
as festas, são as senhoras em toda a parte. Numa procissão, numa barraca de
feira, numa taberna, são elas que decidem silenciosamente. Trabalham três vezes
mais que os homens e não lhes dão importância especial. Só descomposturas, e
mimos, e carinhos.
O Norte é a nossa verdade. Ao princípio irritava-me que todos
os nortenhos tivessem tanto orgulho no Norte, porque me parecia que o orgulho
era aleatório. Gostavam do Norte só porque eram do Norte. Assim também eu.
Ansiava por encontrar um nortenho que preferisse Coimbra ou o Algarve, da
maneira que eu, lisboeta, prefiro o Norte. Afinal, Portugal é um caso muito
sério e compete a cada português escolher, de cabeça fria e coração quente, os
seus pedaços e pormenores. Depois percebi. Os nortenhos, antes de nascer, já
escolheram. Já nascem escolhidos. Não escolhem a terra onde nascem, seja Ponte
de Lima ou Amarante, e apesar de as defenderem acerrimamente, põem acima dessas
terras a terra maior que é o "O Norte". Defendem o "Norte"
em Portugal como os Portugueses haviam de defender Portugal no mundo. Este
sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua pertença particular - o nome da
sua terrinha - para poder pertencer a uma terra maior, é comovente. No Porto,
dizem que as pessoas de Viana são melhores do que as do Porto. Em Viana, dizem
que as festas de Viana não são tão autênticas como as de Ponte de Lima. Em
Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda é mais bonita.
O Norte não tem nome próprio. Se o tem não o diz. Quem sabe
se é mais Minho ou Trás-os-Montes, se é litoral ou interior, português ou
galego? Parece vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas
casas, para as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes, sentir aquelas mãos
em cima de nós, com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para
adivinhar.
O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra,
como nome de nós todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a
maneira que têm de dizer "Portugal" e "Portugueses". No
Norte dizem-no a toda a hora, com a maior das naturalidades. Sem complexos e
sem patrioteirismos. Como se fosse só um nome. Como "Norte". Como se
fosse assim que chamassem uns pelos outros. Porque é que não é assim que nos
chamamos todos?"