quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Estamos pior do que há dois séculos atrás



Estamos agora pior do que há dois séculos
A OCDE acaba de publicar um relatório, em cooperação com a Universidade de Utrecht, sobre a evolução da vida nos últimos duzentos anos. O relatório tem por título “How was Life? Global Well-Being since 1820” (“Como era a Vida? O Bem Estar Global desde 1820”) e a investigação resulta do trabalho da vida inteira de Angus Maddison, um estatístico que se dedicou a compilar e estudar a informação disponível sobre o passado recente do nosso mundo. Outros investigadores, com particular destaque para Anthony B. Atkinson e Thomas Piketty, contribuíram notavelmente para a área de estudo que é mais notável neste relatório, a desigualdade. Em Portugal, essa abordagem é desenvolvida sobretudo por Carlos Farinha Rodrigues, professor do ISEG, e pelo Observatório das Desigualdades, do ISCTE.
O relatório surpreendeu a imprensa especializada (aqui e aqui), mas não parece ter merecido ainda atenção significativa em Portugal. A razão para o choque não é de somenos: os autores dizem-nos que, se o mundo melhorou espantosamente na saúde e na educação, entre outros indicadores, é também mais desigual hoje do que há duzentos anos. A civilização fez-nos regredir.
No caso de alguns países, como a China e a Alemanha, a desigualdade será hoje equivalente à de 1820: ficaram na mesma. Noutros, como o Brasil e o México, a vida é mais desigual agora. No entanto, considerando o mundo inteiro, a desigualdade, medida pelo índice de Gini (em que 0 seria a situação perfeitamente igualitária, e 1 seria a situação totalmente desigualitária), teria passado de 0,49 em 1820 para 0,66 em 2000. Estamos pior, muito pior.
 


Apesar disso, nem tudo correu mal. Em 1820 haveria algo menos de 20% de pessoas alfabetizadas e estavam concentradas na Europa; agora aproximamo-nos de 80% no mundo. A esperança de vida em 1830 era de 33 anos na Europa ocidental, agora é de cerca de 70 anos no mundo. A desigualdade perante a educação e algumas das condições essenciais da vida diminui, portanto.
Onde a desigualdade se agravou foi, em primeiro lugar, na diferença entre países. E não foi pouco. A globalização tem sido a força determinante dessa desigualdade. Quanto mais plano é o mundo, pior fica.
Mas a desigualdade agravou-se também, em segundo lugar, com a distorção social dentro de cada país. Como se verifica pela infografia ao lado, divulgada por Júlio Mota da Viagem dos Argonautas, a desigualdade variou ao longo dos tempos em sociedades diferentes: na Roma antiga, os 1% mais ricos teriam 16% do rendimento total; no tempo da independência dos Estados Unidos, os 1% teriam 7% do total; mas em 1929, na véspera da Grande Recessão, já teriam 22%, mais do que em roma, sociedade esclavagista.

 

O seu peso diminuiu nos anos 1960 mas recuperou agora: têm de novo 22%. (Os dados sobre Roma são de Walter Scheidel and Steven J. Friesen; sobre os EUA em 1774 1860 de Peter H. Lindert and Jeffrey G. Williamson; e sobre os EUA em 1929–2012, de Emmanuel Saez e Thomas Piketty).
Se considerarmos os 10% mais afortunados ao longo de todo o século XX, a história é comparável, como se verifica no gráfico (de Piketty): nos Estados Unidos, essa medida do poder económico dos de cima acentuou-se. Também subiu na Europa, mas não atingiu ainda os valores de 1900.
A explicação é óbvia: as crises reforçam o poder dos poderosos. Medindo os ganhos dos 1% mais ricos nos períodos de recuperação depois de uma crise, os resultados não são surpreendentes:

 
 Com Bush, 65% dos ganhos de rendimento depois da crise foram para esses 1% mais afortunados, com Obama foram 95%, como registado na infografia ao lado (dados de Saez e Piketty, Excel).
A civilização conduziu a este pesadelo: estamos agora pior do que há duzentos anos.
Antes, chamava-se progresso a este mundo novo que nos era prometido. Agora, deve chamar-se a grande regressão a este mundo velho que nos é imposto.
 
 
Francisco Louçã