Estamos agora pior do que há dois séculos
A OCDE acaba de publicar um relatório, em cooperação com a Universidade
de Utrecht, sobre a evolução da vida nos últimos duzentos anos. O relatório tem
por título “How was Life? Global Well-Being since 1820”
(“Como era a Vida? O Bem Estar Global desde 1820”) e a investigação resulta do
trabalho da vida inteira de Angus Maddison, um estatístico que se dedicou
a compilar e estudar a informação disponível sobre o passado recente do nosso
mundo. Outros investigadores, com particular destaque para Anthony B. Atkinson e Thomas
Piketty, contribuíram notavelmente para a área de estudo que é mais
notável neste relatório, a desigualdade. Em Portugal, essa abordagem é
desenvolvida sobretudo por Carlos Farinha Rodrigues, professor do ISEG, e
pelo Observatório das Desigualdades, do ISCTE.
O relatório surpreendeu a imprensa
especializada (aqui e aqui), mas não parece ter merecido ainda
atenção significativa em Portugal. A razão para o choque não é de somenos: os
autores dizem-nos que, se o mundo melhorou espantosamente na saúde e na
educação, entre outros indicadores, é também mais desigual hoje do que há
duzentos anos. A civilização fez-nos regredir.
No caso de alguns países, como a China e
a Alemanha, a desigualdade será hoje equivalente à de 1820: ficaram na mesma.
Noutros, como o Brasil e o México, a vida é mais desigual agora. No entanto,
considerando o mundo inteiro, a desigualdade, medida pelo índice de Gini (em
que 0 seria a situação perfeitamente igualitária, e 1 seria a situação
totalmente desigualitária), teria passado de 0,49 em 1820 para 0,66 em 2000.
Estamos pior, muito pior.
Apesar disso, nem tudo correu mal. Em
1820 haveria algo menos de 20% de pessoas alfabetizadas e estavam concentradas
na Europa; agora aproximamo-nos de 80% no mundo. A esperança de vida em 1830
era de 33 anos na Europa ocidental, agora é de cerca de 70 anos no mundo. A
desigualdade perante a educação e algumas das condições essenciais da vida
diminui, portanto.
Onde a desigualdade se agravou foi, em
primeiro lugar, na diferença entre países. E não foi pouco. A globalização tem
sido a força determinante dessa desigualdade. Quanto mais plano é o mundo,
pior fica.
Mas a desigualdade agravou-se também, em
segundo lugar, com a distorção social dentro de cada país. Como se verifica
pela infografia ao lado, divulgada por Júlio Mota da Viagem dos
Argonautas, a desigualdade variou ao longo dos tempos em sociedades
diferentes: na Roma antiga, os 1% mais ricos teriam 16% do rendimento total; no
tempo da independência dos Estados Unidos, os 1% teriam 7% do total; mas em 1929,
na véspera da Grande Recessão, já teriam 22%, mais do que em roma, sociedade esclavagista.
O seu peso diminuiu nos anos 1960 mas
recuperou agora: têm de novo 22%. (Os dados sobre Roma são de Walter Scheidel and
Steven J. Friesen; sobre os EUA em 1774 1860 de Peter H. Lindert
and Jeffrey G. Williamson; e sobre os EUA em 1929–2012, de Emmanuel Saez e
Thomas Piketty).
Se considerarmos os 10% mais afortunados
ao longo de todo o século XX, a história é comparável, como se verifica no
gráfico (de Piketty): nos Estados Unidos, essa medida do poder económico dos de
cima acentuou-se. Também subiu na Europa, mas não atingiu ainda os valores
de 1900.
A explicação é óbvia: as crises reforçam
o poder dos poderosos. Medindo os ganhos dos 1% mais ricos nos períodos de
recuperação depois de uma crise, os resultados não são surpreendentes:
Com Bush, 65% dos ganhos de rendimento
depois da crise foram para esses 1% mais afortunados, com Obama foram 95%, como
registado na infografia ao lado (dados de Saez e Piketty, Excel).
A
civilização conduziu a este pesadelo: estamos agora pior do que há duzentos
anos.
Antes,
chamava-se progresso a este mundo novo que nos era prometido.
Agora, deve chamar-se a grande regressão a este mundo velho que nos
é imposto.
Francisco Louçã