Um dos actos mais chocantes de perseguição política
e religiosa praticado pela ditadura do Estado Novo continua, 74 anos depois, a produzir
os seus efeitos, uma vez que o Estado democrático ainda não corrigiu a
injustiça. A vítima foi Artur Carlos de Barros Basto, um capitão do Exército
português convertido ao judaísmo, que foi banido do Exército por praticar actos
próprios desta religião. O caso é paradigmático por acção (do Estado Novo) e
por omissão (do Estado democrático), uma vez que um pedido de reintegração
formulado pela viúva do militar já depois do 25 de Abril foi rejeitado com base
nas mesmas acusações que haviam fundamentado a injustiça.
Denunciado anonimamente por homossexualidade,
Barros Basto foi totalmente ilibado em tribunal, mas o Exército, embora
declarando também não provados os actos de homossexualidade, condenou-o, em
Junho de 1937, por ter feito a circuncisão a vários alunos do Instituto
Teológico Israelita do Porto (onde era professor) e por os cumprimentar com
beijos nas faces como era normal entre os judeus sefarditas de Marrocos, onde
Barros Basto se convertera ao judaísmo. Os militares acusaram-no, então, de não
ter “a capacidade moral para prestígio da sua função oficial e decoro da sua
farda” e aplicaram-lhe uma sanção que tem tanto de absurda como de degradante.
Foi condenado na pena de “separação de serviço” que o afastou definitivamente
do Exército, o privou das remunerações e respectivos benefícios sociais, o
impediu de usar a farda, distintivos e insígnias militares, mas - pasme-se -
manteve-o sujeito à disciplina militar, podendo a todo o momento voltar a ser
julgado e condenado por qualquer facto que os militares julgassem incompatível
com o “prestígio da função” (que já não exercia) ou ofensivo do “decoro da
farda” (que já não vestia).
Contudo, o verdadeiro “crime” do capitão Barros
Basto foi, de facto, o trabalho de “resgate” dos marranos, ou seja, dos
descendentes dos judeus convertidos à força para escapar à expulsão decretada
pelo rei português D. Manuel, em 1496, e às perseguições que se lhe seguiram,
principalmente pela Inquisição. A maioria desses “convertidos”, também chamados
“cristãos-novos”, manteve-se fiel às suas crenças e continuou a praticar
secretamente os actos de culto do judaísmo. Barros Basto, o “apóstolo dos
marranos” como foi designado, percorreu o país, identificando os descendentes
clandestinos desses cripto-judeus, trazendo-os à luz do dia e fazendo com que
eles não se sentissem civicamente diminuídos por professar a religião em que
acreditavam. Foi um ousado trabalho de recuperação da dignidade de uma religião
cruelmente perseguida durante séculos, mas sobretudo um audacioso combate ao
medo e até à vergonha de a praticar em público. Na verdade, uma das facetas
mais hedionda da perseguição aos judeus em Portugal foi a conversão forçada
daqueles que, por falta de recursos, não puderam acatar a ordem de expulsão e
abandonar o país. Muitos deles acabariam queimados nas fogueiras da Inquisição
ou então linchados por turbas fanatizadas como aconteceu em Lisboa, em 1506, em
frente da Igreja de São Domingos, onde milhares de judeus foram assassinados.
Ora, numa época em que (mais) uma onda de
anti-semitismo varria a Europa e que iria conduzir ao holocausto nazi, a acção
de Barros Basto não podia ser tolerada por um regime de características
fascistas e germanófilas, cujas instituições mais representativas estavam,
também elas, imbuídas de um milenar anti-semitismo e marcadas por séculos de
intolerância religiosa e de perseguição aos judeus. Comparado a Alfred Dreyfus,
por uns, ou a Aristides Sousa Mendes, por outros, Artur Barros Basto continua,
porém, ao contrário desses, com a memória manchada por uma condenação infamante
- talvez porque nunca houve em Portugal um Émile Zola que acusasse publicamente
os seus acusadores.
E, assim, estranhamente, 37 anos depois do 25 de
Abril, ainda ninguém teve a coragem de reparar a injustiça feita a um oficial
do exército português, convertido à religião judaica, condecorado por actos de
bravura durante a I Grande Guerra e que, em 1910, hasteara a bandeira da
República na Câmara Municipal do Porto. Estranhamente!…
Marinho Pinto