Há muito que ando para aqui publicar este excelente artigo sobre este terrível tema que importa trazer sempre à discussão e à reflexão.
Encontrei-o numa das minhas viagens pela Net. É de Laerte Fernando Levai, brasileiro, e reporta-se à realidade desse país, daí a expressão escrita que utiliza e que, obviamente, mantenho.
O meu muito obrigada a Air Antunes que o publicou no seu blogue dia 28.05.2012 - crueldade consentida: a violência humana contra os animais e o papel do Ministério Público no combate à tortura institucionalizada.
Incumbe ao Ministério Público, como guardião do meio ambiente e curador dos animais, zelar pela fiel aplicação desta norma protetora suprema, lutando para que nenhuma lei infraconstitucional legitime a crueldade, que nenhum princípio da ordem econômica justifique a barbárie, que nenhuma pesquisa científica se perfaça sem ética e que nenhum divertimento público ou dogma religioso possam advir de costumes desvirtuados ou de rituais sanguinolentos. Porque toda criatura tem o direito de viver dignamente e sem sofrimentos inúteis, como já o sabiam Pitágoras, Plutarco, Montaigne, Jeremy Benthan, Arthur Schopenhauer, Cesare Goretti, Piero Martinetti e tantos outros pensadores cujo legado de benevolência e compaixão aos animais que sofrem inspirou, na atualidade,as idéias filosóficas de Peter Singer, Tom Regan, Jane Goodall, Silvana Castignone, Leonardo Boff, etc. Contra a injustiça,a hipocrisia social, as tradições cruentas e os subterfúgios jurídicos que permitem esse autêntico massacre de seres inocentes, deve o Ministério Público insurgir-se. Os instrumentos legais da ação civil pública e do inquérito civil, assim como dos procedimentos verificatórios, das peças de informação e dos termos de ajustamento de conduta,surtem bons efeitos no campo preventivo, reparatório e pedagógico. Caso o delito já se tenha consumado, de modo irreversível, medidas penais transformadas em transação penal, suspensão processual ou prestação de serviços à coletividade,mediante atividades ressocializadoras e/ou educativas,podem contribuir para que a Justiça encontre seus verdadeiros fins.
Apesar de sua acentuada feição antropocêntrica, a Constituição da República tem o propósito de conciliar o desenvolvimento econômico, o bem estar humano e o meio ambiente sadio, assumindo – sob certos aspectos – caráter biocêntrico. Há, assim, uma limitação ao princípio geral da atividade econômica previsto no art. 170, VI, da CF, que prega a observância da ética em toda atividade que envolver a exploração da natureza e dos animais. Outros princípios constitucionais informam a política brasileira de proteção à fauna, a saber: a) da legalidade: enquanto é lícito ao particular fazer tudo o que a lei não veda, à Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza (art. 70 caput da CF), de modo que a matança de animais não nocivos à saúde ou à segurança social fere esse princípio; b) da moralidade: condenar à morte um animal saúdável, pelo fato dele não pertencer a ninguém, é o mesmo que admitir que sua vida só tem valor se, de alguma forma, servir ao interesse humano; c) da educação ambiental: o poder público deve ensinar as pessoas a respeitar o meio ambiente e os animais, conforme preconizado no art. 225 caput da CF); d) da precaução: os objetivos do Direito Ambiental, também nas questões relacionadas aos animais, exigem ações preventivas, mesmo porque o sofrimento e a morte são irreparáveis.Não é, infelizmente, o que se vê na prática, em que o animal maltratado acaba tendo seu martírio quase que admitido pelo poder público. Contra o comodismo desse triste estado de coisas e contra a mais injusta e cruel das escravidões,o Ministério Público – instituição devidamente credenciada, do ponto de vista histórico, legal e técnico,para exercer a tutela dos interesse difusos – pode emprestar voz àqueles que não não têm como se defender (princípio da representação).
Essas experiências, invariavelmente macabras, foram descritas pela literatura antivivissecionista: sapos trepanados, ratos eletrocutados, gatos com eletrodos na cabeça, cães estraçalhados em prensas mecânicas, macacos intoxicados, coelhos queimados vivos, pombos submetidos à ação do gelo e cavalos inoculados com veneno constituem apenas alguns exemplos do vasto repertório de aberrações já cometidas pelos pesquisadores em nome da ciência. Aqui, a exemplo do que acontece na indústria da carne, a justificativa é idêntica: mal necessário. Que é um mal, ninguém duvida. Mas quem disse que, realmente, é necessário? Na realidade,cientistas e pesquisadores vêm incorrendo, há tempos, em um grave erro metodológico, ao adotar os animais como modelos experimentais do homem. Em oportuna análise crítica desenvolvida sobre o tema, os biólogos Sérgio Greif e Thales Tréz observaram que, nos séculos posteriores à Renascença, a experimentação com animais tornou-se metodologia padrão de investigação científica e de ensino da medicina’, alicerçada pela filosofia teleológica, a qual sustenta que todas as coisas existem para o proveito humano e que a vida animal não tem valor algum, conceitos esses ‘absorvidos pela Igreja Católica e incorporados aos antigos fundamentos da ciência ocidental’ (in “A verdadeira face da experimentação animal’, Sociedade Educacional Fala Bicho, Rio de Janeiro, 2000).É o que se constata, lamentavelmente, no curso da história. Reforçada pelo mecanicismo de René Descartes (1596-1650) e pelo experimentalismo de Claude Bernard (1813-1878), os quais consideravam os animais criaturas insuscetíveis à dor física e que vieram ao mundo para servir ao homem, a postura antropocêntrica dominante ainda tem sido a causa principal da crise de valores que assola a humanidade.Ao negar aos bichos qualquer possibilidade de valoração ética, a doutrina cientificista se empolou em um pedestal inatingível, permitindo a insana ascenção do racionalismo e, paralelamente, do sistema capitalista de produção. Assiste-se, no cenário político moderno, a derrocada da concepção estóica da natureza, deslocando-se o eixo da ação do ser para o viver, da reflexão para a razão e do existir para o usufruir. A plenitude racionalista, possibilitando o amplo domínio humano sobre o planeta, propagou-se na cultura ocidental a ponto de buscar uma significação funcional para tudo o que existe. Sob os ditames da deusa-razão, o mundo se tornaria o mundo dos homens – usufrutuários da natureza e dos animais -, concepção essa que causou um inegável estreitamento dos nossos valores morais.
No setor dos espetáculos públicos o sofrimento dos animais acaba sendo também respaldado pela lei, que pune não o uso, mas o abuso. É o que se vê nas práticas relacionadas a rodeios e vaquejadas, em que provas de laço e de montaria submetem bovinos e eqüinos a verdadeiro tormento.Sob o efeito compressivo do sedém – seja ele uma cinta de couro, seja uma corda americana, independentemente do material pelo qual é confeccionado –touros e cavalos alteram seu comportamento normal, pulando na arena para tentar se livrar daquilo que os oprime. A impressionante reação dos animais está associada à inflição de estímulos dolorosos em seus órgãos internos (genitália, sistema digestivo, nervos e glândulas vesiculares). O sedém provoca, portanto, dor e sofrimento, sem necessariamente causar lesões na pele ou esterilidade no animal. Da mesma forma as esporas, utilizadas para estocar os animais durante a montaria, mediante seguidos golpes aplicados pelo peão no baixo-ventre e no pescoço do animal, implica em maus tratos. Quanto às provas de laço, típicas das vaquejadas, não raras vezes ocasionam deslocamento de vértebras, rupturas musculares e fratura de ossos dos animais perseguidos no brutal espetáculo de sadismo humano. Apesar disso tudo o Congresso Nacional aprovou, em favor daqueles que exploram esse tipo de empreendimento, duas leis que afrontam abertamente o dispositivo constitucional que protege os animais : a Lei n. 10.220/01, que equiparou o peão de rodeio a atleta profissional, referindo-se às provas de laço, montarias e vaquejadas como ‘práticas esportivas’ (art. 1o, § único)e, mais recentemente, a lei federal dos rodeios, permissiva do sedém macio e da espora romba, como se a crueldade pudesse ser desfeita por mera disposição de lei.
Em 1997 o Supremo Tribunal Federal havia julgado inconstitucional a farra do boi, não obstante os argumentos sociológicos inovocados para que se reconhecesse a pretensa legitimidade dessa carnificida legada pelos imigrantes açorianos a seus filhos brasileiros. Desrespeitando a decisão Suprema, a Assembléia Legislativa de Santa Catarina, fazendo tabula rasa dos princípios elementares da moral e do direito, promulgou, em 4 de abril de 2000, a Lei 11.365, que ‘dispõe sobre a regulamentação da tradição açoriana conhecida como farra do boi’, desde que se realize em fazendas cercadas denominadas mangueirões e sem ocasionar maus tratos aos animais. Lamentando o fato de a decidão do STF estar sendo abertamente afrontada, a advogada Vânia Rall Daró deixou registrado o seu justo desabafo: “Infelizmente, apesar dessa proibição legal, é bem provável que nunca vejamos o fim da chamada farra do boi, pois aos políticos interessa fazer o jogo da situação; os religiosos acreditam que devemos respeito somente aos semelhantes; os intelectuais aplaudem-na – alguns até delas participam – como uma ´manifestação genuína do povo´; os cidadãos comuns, na sua costumeira indiferença, julgam que o sofrimento dos animais não lhe diz respeito; a imprensa, que poderia esclarecer o que se passa, não se preocupa em denunciar as atrocidades dessa diversão macabra. É uma pena, pois, se nessa farra os animais perdem a vida, nós, seres humanos, perdemos a dignidade” (in ‘Farra com Boi’, Jornal da Cidade, Bauru, 12/4/2001).
Encontrei-o numa das minhas viagens pela Net. É de Laerte Fernando Levai, brasileiro, e reporta-se à realidade desse país, daí a expressão escrita que utiliza e que, obviamente, mantenho.
O meu muito obrigada a Air Antunes que o publicou no seu blogue dia 28.05.2012 - crueldade consentida: a violência humana contra os animais e o papel do Ministério Público no combate à tortura institucionalizada.
1. Introdução
A domesticação dos animais e seu uso pelo homem remonta a tempos longínquos. Nas sociedades primitivas a marca desse domínio ficou registrada nos desenhos rupestres simbolizando a caça de bisões, mamutes e renas, sendo que os mais remotos vestígios de sedentariedade humana coincidem com a sujeição de cães, carneiros, bodes, bois, porcos, cavalos, iaques, camelos e alguns tipos de aves. Depois, quando o homem se curvou aos deuses do Olimpo e aos santos das Escrituras, a concepção de mundo tornou-se mítica, relacionando criador e criatura à guisa de imagem e semelhança, respectivamente,de modo a sacramentar a hegemonia de nossa espécie em detrimento das outras.A era das conquistas territoriais e das grandes navegações permitiu aos países colonialistas não apenas a subjugação dos povos vencidos, mas a matança indiscriminada de animais visando ao lucro ou seu aprisionamento para servir a cortejos exóticos, circos e zoológicos. O cão, lobo domesticado, tornaria-se o mais fiel companheiro do homem, enquanto que o gato carregaria em si o estigma das superstições medievais. Originalmente esporte da nobreza, a caça difunde-se pelas classes sociais e firma-se como um dos mais pusilânimes entretenimentos humanos.. Os costumes da cultura popular, como a secular tourada espanhola e os rituais de matança coletiva de carneiros nas festividades muçulmanas, transformam martírio em tradição.Até o início do século passado cavalos e jegues eram utilizados, de maneira impiedosa, nos serviços de tração e transporte de pessoas, enquanto que os bovinos moviam, no campo, o sistema agropastoril de produção alimentar.Após a Segunda Guerra Mundial,o avanço da industrialização e as descobertastecnológicas romperam, de vez, com o modelo tradicional de criação de animais, quando o modelo campestre cedeu vez à perversa metodologia utilizada pela indústria do agronegócio, na qual vacas, bois, porcos, patos, galinhas, carneiros e outros tantos animais destinados ao consumo humano padecem em silêncio. Na área científica, igualmente,a experimentação animal atinge níveis assombrosos, submetendo milhões de animais a tormentos inomináveis, sob a cômoda justificativa de servir ao progresso da humanidade.
A domesticação dos animais e seu uso pelo homem remonta a tempos longínquos. Nas sociedades primitivas a marca desse domínio ficou registrada nos desenhos rupestres simbolizando a caça de bisões, mamutes e renas, sendo que os mais remotos vestígios de sedentariedade humana coincidem com a sujeição de cães, carneiros, bodes, bois, porcos, cavalos, iaques, camelos e alguns tipos de aves. Depois, quando o homem se curvou aos deuses do Olimpo e aos santos das Escrituras, a concepção de mundo tornou-se mítica, relacionando criador e criatura à guisa de imagem e semelhança, respectivamente,de modo a sacramentar a hegemonia de nossa espécie em detrimento das outras.A era das conquistas territoriais e das grandes navegações permitiu aos países colonialistas não apenas a subjugação dos povos vencidos, mas a matança indiscriminada de animais visando ao lucro ou seu aprisionamento para servir a cortejos exóticos, circos e zoológicos. O cão, lobo domesticado, tornaria-se o mais fiel companheiro do homem, enquanto que o gato carregaria em si o estigma das superstições medievais. Originalmente esporte da nobreza, a caça difunde-se pelas classes sociais e firma-se como um dos mais pusilânimes entretenimentos humanos.. Os costumes da cultura popular, como a secular tourada espanhola e os rituais de matança coletiva de carneiros nas festividades muçulmanas, transformam martírio em tradição.Até o início do século passado cavalos e jegues eram utilizados, de maneira impiedosa, nos serviços de tração e transporte de pessoas, enquanto que os bovinos moviam, no campo, o sistema agropastoril de produção alimentar.Após a Segunda Guerra Mundial,o avanço da industrialização e as descobertastecnológicas romperam, de vez, com o modelo tradicional de criação de animais, quando o modelo campestre cedeu vez à perversa metodologia utilizada pela indústria do agronegócio, na qual vacas, bois, porcos, patos, galinhas, carneiros e outros tantos animais destinados ao consumo humano padecem em silêncio. Na área científica, igualmente,a experimentação animal atinge níveis assombrosos, submetendo milhões de animais a tormentos inomináveis, sob a cômoda justificativa de servir ao progresso da humanidade.
Foi no século XX, apenas, que se firmaram pelo
mundo as leis de proteção aos animais. No Brasil, especificamente, a vedação à
crueldade proclamada no decreto federal 24.645/34,tornou-se contravenção penal
(art. 64 da LCP) e, depois, crime ambiental (art. 32 da Lei 9.605/98), ganhando
respaldo constitucional em nossa atual Carta Política (art. 225 § 1o, VII). Não
obstante isso, a situação da chamada fauna doméstica ou domesticada, em plena
era da globalização, é desoladora. Afora a pequena parcela de animais de
estimação que, na companhia de seus donos,tem uma vida digna e sem
sobressaltos, a restante é criada sob o signo do sofrer. Basta um olhar crítico
sobre o que acontece nas fazendas industriais, nos laboratórios científicos,nos
centros de controle de zoonoses e nas companhias de diversões públicas para
concluir que a crueldade, quando justificada pelo uso do animal, acaba tendo –
aparentemente – respaldo legal. Não é exagero dizer que, no Brasil,99% das
hipóteses de sofrimento animal (maus tratos, abusos, ferimentos ou mutilações),
está na indústria dos matadouros, nas atividades de vivissecção e na política
pública de extermínio, além daquela perfazida em eventos supostamente
culturaise recreativos (farra do boi, rodeios, vaquejadas, circos, zoológicos,
caça e pesca esportiva, etc).
O uso econômico do animal e a chamada finalidade
recreativa da fauna, embora atividades contrárias à moral e à ética, buscam
respaldo em diplomas permissivos de comportamentos cruéis, como por exemplo na
lei do Abate Humanitário,na lei da Vivissecção,na lei dos Zoológicos,no Código
de Caça e de Pesca, na lei da Farra do Boi e na lei dos Rodeios.Acima de todas
elas, porém, está a Constituição Federal, cujo artigo 225 §1o, VII obriga o
poder público a coibir a submissão de animais a atos de crueldade.Um preceito
que, longe de vincular a proteção à fauna apenas enquanto bem ambiental,
estende sua tutela a todos os animais, indiscriminada e individualmente, sejam
eles silvestres, nativos ou exóticos, domésticos ou domesticados, terrestres ou
aquáticos.Incumbe ao Ministério Público, como guardião do meio ambiente e curador dos animais, zelar pela fiel aplicação desta norma protetora suprema, lutando para que nenhuma lei infraconstitucional legitime a crueldade, que nenhum princípio da ordem econômica justifique a barbárie, que nenhuma pesquisa científica se perfaça sem ética e que nenhum divertimento público ou dogma religioso possam advir de costumes desvirtuados ou de rituais sanguinolentos. Porque toda criatura tem o direito de viver dignamente e sem sofrimentos inúteis, como já o sabiam Pitágoras, Plutarco, Montaigne, Jeremy Benthan, Arthur Schopenhauer, Cesare Goretti, Piero Martinetti e tantos outros pensadores cujo legado de benevolência e compaixão aos animais que sofrem inspirou, na atualidade,as idéias filosóficas de Peter Singer, Tom Regan, Jane Goodall, Silvana Castignone, Leonardo Boff, etc. Contra a injustiça,a hipocrisia social, as tradições cruentas e os subterfúgios jurídicos que permitem esse autêntico massacre de seres inocentes, deve o Ministério Público insurgir-se. Os instrumentos legais da ação civil pública e do inquérito civil, assim como dos procedimentos verificatórios, das peças de informação e dos termos de ajustamento de conduta,surtem bons efeitos no campo preventivo, reparatório e pedagógico. Caso o delito já se tenha consumado, de modo irreversível, medidas penais transformadas em transação penal, suspensão processual ou prestação de serviços à coletividade,mediante atividades ressocializadoras e/ou educativas,podem contribuir para que a Justiça encontre seus verdadeiros fins.
2. Conflito aparente de normas
O Brasil é um dos poucos países do mundo a tratar do tema da crueldade para
com os animais em nível constitucional. A norma protetiva inserta no art. 225 §
1o, inciso VII, de nossa atual CF, que incumbe ao poder público” proteger a
fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco
sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais
à crueldade”,inspirou o legislador ordinário ambiental a criminalizar, no
artigo 32 caput da Lei 9.605/98, todo aquele que “praticar ato de abuso, maus
tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados,
nativos ou exóticos”. A maioria das constituições estaduais, por sua vez, já
havia acolhido a orientação suprema, como se vê na Carta Política paulista,
cujo artigo 193, inciso X, estabelece que cabe ao Estado, “assegurada a
participação da coletividade, proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos
todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que
coloquem em risco a sua função ecológica e que provoquem extinção de espécies
ou submetam os animais à crueldade”. Conclui-se, diante disso tudo, que o nosso
repertório legislativo é mais do que suficiente para, em tese, proteger os
animais da maldade humana.
Importa definir, desde já, o que vem a ser essa
conduta capaz de ocasionar dor, angústia ou sofrimento ao animal. Do ponto de
vista lingüístico, a terminologia em questão – crueldade – reporta-se àquele
que se compraz em fazer mal, em atormentar, em ser desumano, pungente,
doloroso, sanguinolento (in Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Editora
Nova Fronteira, 3a. edição, Rio de Janeiro, 1993).Segundo o professor Ernesto
Faria, crudelis, -e, em seu sentido próprio, é aquele que se mostra ‘cruel,
desumano, insensível’. Crudelitas, – tatis, por suja vez, significa ‘crueldade,
desumanidade’(in Dicionário escolar latino português, FAE, Rio de Janeiro,
1985). Outro renomado lingüista brasileiro, o professor Antenor nascentes,
escreveu que “Crueldade é a qualidade de cruel ou o ato cruel; sevícia é a crueldade
ferina e, feralmente no plural, significa também maus tratos” (in Dicionário de
sinônimos, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981). Trata-se a crueldade,
portanto, de uma expressão genérica que contém em si outras modalidades de
violência (abusos, maus tratos,ferir e mutilar). Abuso significa uso incorreto,
despropositado, indevido, demasiado, de modo a infligir sofrimento ao animal.
Maus tratos, por sua vez, é um vocábulo que se subsume no sentido de sevícia,
independentemente da ocorrência de lesões físicas, relacionando-se ao rigor, à
dureza ou à indiferença. Já a inflição de ferimentos ou a prática de mutilação
têm natureza material, porque se consuma lesionando o corpo ou, então,
seccionando órgão ou membro do animal.
Em termos científicos, a avaliação da dor nos
animais é feita de forma analógica, mediante observações neuroanatômicas e
comportamentais. Para a professora emérita titular da cadeira de Anatomia da
USP, Irvênia Luiza de Santis Prada, a organização morfofuncional dos mamíferos
e seu Sistema Nervoso estruturam-se segundo um modelo comum. Segundo ela, “a
Etologia (estudo do comportamento) vem demonstrando que, diferentemente do que
pensávamos, o psiquismo dos animais é muito rico. Fazem parte do conteúdo
psíquico dos animais, a vivência de sensações, sentimentos e sofrimentos que,
particularmente por meio do sistema límbico (conjunto de estruturas nervosas
relacionadas à expressão de comportamentos acompanhados de emoção) e so sistema
nervoso autônomo (simpático e parassimpático), manifestam-se no organismo,
caracterizando os chamados sinais fisiológicos”. Inegável que o animal, diante
de uma situação opressiva,procura reagir às agressões que lhe são
impingidas.Muitos bichos silvestres, caso sobrevivam à caçada, morrem de
tristeza no cativeiro, porque seu sistema imunológico enfraquece
demasiadamente. Outros tornam-se apáticos, atrás da jaulas dos zoológicos. No
circo, eles executam seu número forçados pela lembrança de um condicionamento
cruel. Já os animais domésticos, que há milênios vêm sendo subjugados pelo
homem, têm como destino o matadouro (bois, vacas, porcos,galinhas, carneiros,
etc, que servem à alimentação), o labor (cavalos, jumentos, bois-de-carro, etc,
nos serviços de transporte e tração), a guarda (cães utilizados como vigias), o
divertimento público (touros,bois, cavalos, etc., submetidos a cruentas
montarias e às provas de laço), o deleite humano (aves em gaiola), a pesquisa
científica (rãs, ratos e cães destinados à vivissecção), dentre outras tantas
atividades que lhes acarreta notório padecimento físico ou mental.
Em face da vigência daqueles preceitos legais no
plano constitucional e ordinário poder-se-ia acreditar que a voluntária
inflição de sofrimento aos animais estaria, em tese,vedada no território
brasileiro. Doce ilusão. Vigência não se confunde com eficácia.É que os
aparentes conflitos de normas e as leis permissivas de comportamentos cruéis,
diante de uma economia capitalista impregnada pelo estilo antropocêntrico de
viver, acabam ‘legitimando’ a exploração animal. Embora permitida pelo Direito,
a milenar ação escravagista do homem sobre o animal será sempre, do ponto de
vista filosófico, uma prática injusta,principalmente quando oprime, agride,
tortura ou mata. A conveniência humana, ainda que justificada pelo prazer
gastronômico, pela estética da vaidade, pelo divertimento público, pelas
crenças religiosas e pela suposta verdade científica, acaba preponderando sobre
o destino dos animais subjugados. Vale aqui lembrar, como exemplo de genocídio
animal consentido, o que acontece diariamente nos matadouros e frigoríficos,
nas granjas de produção industrial, nos centros de controle de zoonoses e nos
laboratórios de experimentação científica. Também nos criadouros comerciais,
nas fazendas de criação intensiva e nas áreas em que a caça amadora é
permitida,os animais ali mantidos são previamente condenados à morte. Já a
propalada função recreativa da fauna impinge sofrimento a milhares de outros
animais, domésticos ou selvagens,utilizados em rodeios, vaquejadas, circos e zoológicos.
Um cenário deprimente, em que o animal jamais é considerado por sua
individualidade ou por sua capacidade de sofrer, mas em função daquilo que pode
render – em termos monetários ou políticos – àqueles que os exploram .
Não é à toa que, para o direito civil, o animal é coisa ou semovente; no
direito penal, objeto material; no direito ecológico, bem ambiental de uso
comum do povo.No jargão do agronegócio, bois e vacas perdem sua condição
natural de seres sencientes para se tornarem rebanho, plantel, cabeças, peças
ou matrizes; no circo, leões, macacos,tigres e ursos adestrados são
protagonistas do triste espetáculo da dominação humana; nos depósitos
municipais os cães recolhidos das ruas, mesmo sendo dóceis ou sadios, acabam
sendo sacrificados em razão de seu risco potencial à saúde pública; nas mesas
dos centros de pesquisa científica, coelhos, camundongos, rãs, cães e hamsters
são considerados, todos eles,simples cobaias. E assim por diante,a dialética da
opressão faz com que os animais permaneçam sempre curvados às vicissitudes
históricas, culturais, políticas e econômicas dos povos, sofrendo violências
atrozes e desnecessárias. A lei ambiental brasileira, tida como uma das mais
avançadas do planeta, parece ignorar o destino cruel desses milhões de animais
que perdem a vida nos matadouros, nos laboratórios e nos galpões de extermínio,
que tanto sofrem nas fazendas de criação, nos picadeiros circenses e nas arenas
públicas ou, então, que padecem em gaiolas ou em cubículos insalubres, para
assim atender aos interesses do opressor. Existe uma barreira conceitual que
impede aos homens de enxergar uma verdade cristalina. O sabor da carne, a
ditadura da vaidade e os falsos mitos da saúde pública contribuem para erguer
esses gigantescos muros invisíveis.
Condicionar a crueldade à submissão dos animais
ao sofrimento inútil ou desnecessário é, de certa forma, negar à natureza um
valor em si, como se tudo o que existe no mundo gravitasse em função do
interesse humano. Estar-se-ia, assim, separando o homem da natureza, para
torná-lo espécie desfrutadora e transformadora do meio natural. A noção de
crueldade, nesse contexto, submeteria-se às regras do utilitarismo, de modo que
a conduta cruenta somente se caracterizaria como tal se o homem assim o
dispusesse. Embora algumas fórmulas e expressões ecológicas impregnadas de
dubiedade – desenvolvimento sustentável, garantia da sadia qualidade de vida,
manifestação da cultura do povo, atividade cultural e prática necessária ou
socialmente consentida – possam, de certa forma, sustentar o discurso
antropocêntrico dominante, sua tônica não resiste ao confronto filosófico.
Segundo a professora Sônia T. Felipe, da
Universidade Federal de Santa Catarina, “Ao dizermos que animais devem ficar
excluídos de nosso horizonte moral, por não serem capazes de firmar ou de
cumprir contratos, estamos apenas reduzindo o âmbito moral aos parâmetros do
mercado”(discurso apresentado em mesa-redonda sobre o uso de animais, na UFSC,
em 18.06.1999). Há mais de dois séculos, na Inglaterra, o jurista Jeremy
Benthan já afirmava não ser a razão ou a linguagem que tornam os seres dotados
de sensibilidade dignos de nossa consideração ética, mas sim a sua capacidade
de sofrimento (in ‘Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação’,
1879). Já o filósofo alemão Arthur Schopenhauer escreveu que a piedade,
princípio de toda a moralidade, não depende de idéias preconcebidas, de
religiões, de dogmas, de mitos, de educação ou da cultura, tomando os animais
sob o seu manto protetor: “Insistir na suposta inexistência de direito dos
animais,como se nossa conduta para com eles não tivesse importância moral,
porque deveres humanos em relação aos animaisinexistem, é agir de modo
preconceituoso e comum a ignorância revoltante” (in‘Dores do Mundo’, Rio de
Janeiro, Ediouro).
O professor Cesare Goretti, que lecionava
Filosofia do Direito na Universidade de Ferrara, Itália, observou que os
animais, quando domesticados, participam do ordenamento jurídico humano,
surgindo daí nosso dever legal e moral, principalmente, de não tratá-los com
brutalidade: “Se não podemos negar a eles um princípio de moralidade
(companheirismo, gratidão, amizade), que razão temos em recusar sua
participação em nossa ordem jurídica, que é apenas um esfera da moral? (in
‘L´animale quale soggeto di diritto”, Rivista di Filosofia, n. 19, Itália,
1928).
Nosso Direito Ambiental, ao contrário do que
possa parecer à primeira vista,não se limita a proteger a vida do animal em
função dos chamados bons costumes, do equilíbrio ecológico ou da sadia qualidade
de vida. A noção de crueldade, longe permanecer afeita apenas à saúde psíquica
do homem, é universal. Ações agressivas e dolorosas recaem sobre um corpo
senciente, não sobre um conceito abstrato relacionado ao bem-estar da espécie
dominante. Afinal, para os seres desprovidos capacidade de abstração ou
esperança, o universo da dor torna-se amplo, contínuo, permanente. Sua sensação
é traduzida pela angústia e pelo sofrimento, ainda que não possamos
compreendê-la em plenitude.Ao dispor expressamente sobre a vedação à crueldade,
o legislador pátrio erigiu um dispositivo de cunho moral que se volta, antes de
tudo, ao bem estar do próprio animal e, secundariamente, da coletividade.Apesar de sua acentuada feição antropocêntrica, a Constituição da República tem o propósito de conciliar o desenvolvimento econômico, o bem estar humano e o meio ambiente sadio, assumindo – sob certos aspectos – caráter biocêntrico. Há, assim, uma limitação ao princípio geral da atividade econômica previsto no art. 170, VI, da CF, que prega a observância da ética em toda atividade que envolver a exploração da natureza e dos animais. Outros princípios constitucionais informam a política brasileira de proteção à fauna, a saber: a) da legalidade: enquanto é lícito ao particular fazer tudo o que a lei não veda, à Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza (art. 70 caput da CF), de modo que a matança de animais não nocivos à saúde ou à segurança social fere esse princípio; b) da moralidade: condenar à morte um animal saúdável, pelo fato dele não pertencer a ninguém, é o mesmo que admitir que sua vida só tem valor se, de alguma forma, servir ao interesse humano; c) da educação ambiental: o poder público deve ensinar as pessoas a respeitar o meio ambiente e os animais, conforme preconizado no art. 225 caput da CF); d) da precaução: os objetivos do Direito Ambiental, também nas questões relacionadas aos animais, exigem ações preventivas, mesmo porque o sofrimento e a morte são irreparáveis.Não é, infelizmente, o que se vê na prática, em que o animal maltratado acaba tendo seu martírio quase que admitido pelo poder público. Contra o comodismo desse triste estado de coisas e contra a mais injusta e cruel das escravidões,o Ministério Público – instituição devidamente credenciada, do ponto de vista histórico, legal e técnico,para exercer a tutela dos interesse difusos – pode emprestar voz àqueles que não não têm como se defender (princípio da representação).
Inexiste, pois, o suposto conflito de normas
(princípios econômicos x bem-estar dos animais, liberdade de religião e culto x
garantia anticrueldade,meio ambiente natural x meio ambiente cultural, direito
à pesquisa x recursos substitutivos, etc). A legislação brasileira –
independentemente de seu pretenso contexto ecológico – protege os animais
todos, colocando-os a salvo de maus tratos e crueldades, direito esse projetado
no âmbito constitucional. Não se pode aceitar, em hipótese alguma, a vigência
de normas jurídicas ou sanitárias que contrariem o preceito magno que veda a crueldade
para com os animais. O que se vê, em meio à sociedade globalizada pela
indiferença, é um autêntico massacre consentido, em que a essência de
determinadas leis relacionadas a animais acabou contaminada pela insana lógica
capitalista perante a qual seres vivos transformam-se em carcaças, a Moral
sucumbe e o Direito se torna injusto.
3. Ética anticrueldade
Em auspicioso ensaio científico-filosófico
tratando da dor em animais, o professor Bernard E. Rollin, que leciona
Filosofia na Universidade do Colorado/EUA, chegou a um conclusão desoladora:
99% do sofrimento animal provém da crueldade deliberada. Isso significa, a
contrario sensu, que apenas 1% das situações de crueldade para com os animais
acabam sendo coibidas pela lei. Tal constatação, infelizmente, é verdadeira.
Basta que se examine as estatísticas de diversos setores produtivos que se
utilizam de animais, no campo ou na cidade.No ramo do agronegócio, somente no
Estado de São Paulo, a cada dia milhares de animais são confinados,
descornados, queimados, degolados, eletrocutados, escalpelados e retalhados
para servir à indústria da carne. É comum, na chamadas fazendas de criação, que
a propriedade do bovino seja proclamada, a ferro quente, na pele do animal. Os
cortes de cauda nas ovelhas, a extração dos dentes dos suínos, as debicagens
nas galinhas e as castrações de bois e cavalos, tudo sem anestesia, constituem
outras práticas inegavelmente cruentas, porém, toleradas pela lei. Isso sem
falar no perverso sistema de confinamento, na dieta com hormônios para agilizar
o processo de engorda e, por fim, depois de um indigno transporte aos
matadouros ou abatedouros , quando os animais são amontoados nas carrocerias
dos caminhões,a derradeira agonia da morte anunciada. Alega-se, para justificar
tamanho morticídio, o argumento do mal necessário, que se perfaz mediante
modernos métodos de matança (pistola de concussão cerebral, eletronarcose e gás
CO2), apoiados pelo discurso em prol do abate humanitário, o qual é respaldado
pela Organização Mundial da Saúde. Vale dizer que este tipo de entidade, a
OMS,está imersa na ideologia científica dominante, tanto que a definição de dor
aceita pela Sociedade Internacional para o Estudo da Dor parte do pressuposto
que apenas os seres com linguagem articulada são capazes de senti-la. Evidente
que, por essa linha de argumentação, ciência e ética caminham em direções
opostas, tanto que as leis surgidas com motivação científica- industrial
ressentem-se do necessário componente moral.
De fato, em determinados matadouros-frigoríficos,
como o de Bauru e o de Araçatuba, o abate ritual impede que os bovinos recebam
prévia insensibilização. Suspensos em correntes e sangrados vivos, segundo os
preceitos religiosos que regem a jugulação cruenta, esses animais experimentam
atroz sofrimento até que lhes sobrevenha a morte. Há no Brasil 172 milhões de
bovinos sendo criados para o corte, parte dos quais se destinará ao abate
religioso (o mais lucrativo de todos, porque serve à exportação). Triste saber
que, embora tais métodos traduzam a crueldade em seu grau máximo, uma lei
estadual paulista (Lei n. 10.470/99) alterou a eufemística lei do abate
humanitário (Lei n. 7.705/92) justamente para atender aos interesses dos
produtores da chamada carne branca, a qual seguirá, em regra,ao mercado israelita
e muçulmano. Desse modo, uma lei espúria e flagrantemente inconstitucional – a
famigerada lei da jugulação cruenta – vem legitimando a tortura de animais
submetidos aos horrores do abate ritual. Se o Ministério Público,
independentemente da fiscalização do SIF (Serviço de Inspeção Federal) não se
inteirar do que acontece dentro dos matadouros para, conforme o caso, exigir
providências administrativas (TAC) e/ou judiciais (ação civil ou penal) para
sanar as irregularidades, a Justiça continuará cega e impassível diante de um
genocídio que se pretende legal. Porque nenhum costume desvirtuado e nenhum
dogma religioso sanguinolento podem se legitimar com base na tortura.
Outra impune crueldade ocorre nas atividades
científicas relacionadas à experimentação com animais, dentre elas a
vivissecção. Entende-se por experimentação animal todo e qualquer procedimento
que utiliza animais, independentemente do emprego de anestesia, para fins
científicos ou didáticos. Já a vivissecção, modalidade específica daquele
gênero, consiste na dissecação de bichos vivos para estudos de natureza
anatômica ou fisiológica. Seja como for, ambas trazem em si um acentuado
componente de crueldade, porque submetem milhões de animais – a cada ano – a
atos de violência: testes químicos, toxicológicos, comportamentais,
psicológicos, cerebrais, dentários e até bélicos.Essas experiências, invariavelmente macabras, foram descritas pela literatura antivivissecionista: sapos trepanados, ratos eletrocutados, gatos com eletrodos na cabeça, cães estraçalhados em prensas mecânicas, macacos intoxicados, coelhos queimados vivos, pombos submetidos à ação do gelo e cavalos inoculados com veneno constituem apenas alguns exemplos do vasto repertório de aberrações já cometidas pelos pesquisadores em nome da ciência. Aqui, a exemplo do que acontece na indústria da carne, a justificativa é idêntica: mal necessário. Que é um mal, ninguém duvida. Mas quem disse que, realmente, é necessário? Na realidade,cientistas e pesquisadores vêm incorrendo, há tempos, em um grave erro metodológico, ao adotar os animais como modelos experimentais do homem. Em oportuna análise crítica desenvolvida sobre o tema, os biólogos Sérgio Greif e Thales Tréz observaram que, nos séculos posteriores à Renascença, a experimentação com animais tornou-se metodologia padrão de investigação científica e de ensino da medicina’, alicerçada pela filosofia teleológica, a qual sustenta que todas as coisas existem para o proveito humano e que a vida animal não tem valor algum, conceitos esses ‘absorvidos pela Igreja Católica e incorporados aos antigos fundamentos da ciência ocidental’ (in “A verdadeira face da experimentação animal’, Sociedade Educacional Fala Bicho, Rio de Janeiro, 2000).É o que se constata, lamentavelmente, no curso da história. Reforçada pelo mecanicismo de René Descartes (1596-1650) e pelo experimentalismo de Claude Bernard (1813-1878), os quais consideravam os animais criaturas insuscetíveis à dor física e que vieram ao mundo para servir ao homem, a postura antropocêntrica dominante ainda tem sido a causa principal da crise de valores que assola a humanidade.Ao negar aos bichos qualquer possibilidade de valoração ética, a doutrina cientificista se empolou em um pedestal inatingível, permitindo a insana ascenção do racionalismo e, paralelamente, do sistema capitalista de produção. Assiste-se, no cenário político moderno, a derrocada da concepção estóica da natureza, deslocando-se o eixo da ação do ser para o viver, da reflexão para a razão e do existir para o usufruir. A plenitude racionalista, possibilitando o amplo domínio humano sobre o planeta, propagou-se na cultura ocidental a ponto de buscar uma significação funcional para tudo o que existe. Sob os ditames da deusa-razão, o mundo se tornaria o mundo dos homens – usufrutuários da natureza e dos animais -, concepção essa que causou um inegável estreitamento dos nossos valores morais.
A lei ambiental brasileira, no que se refere ao
exercício da experimentação, contém um dispositivo de suma importância que,se
devidamente aplicado, poderia livrar milhares de animais da morte cruel e
desnecessária. Trata-se do § 1o ao artigo 32 da Lei 9.605/98, que penaliza
“quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins
didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”. Ora, se hoje
a lei condiciona os experimentos à inexistência de métodos alternativos ao uso
do animal, isso significa – conforme Greif & Trez – que, ao menos no plano
teórico, a vivissecção foi proibida no Brasil. Afinal, técnicas alternativas à
experimentação animal existem dentro e fora do País, dependendo seu
desenvolvimento e utilização da boa vontade dos pesquisadores, o que nem sempre
se observa na prática. A busca de um ideal aparentemente utópico, o de abolir
toda e qualquer forma de experimentação animal, tanto na ciência como nas salas
de aula, não permite o comodismo e nem o preconceito. Isso porque, a exemplo do
que vem ocorrendo em diversos países da Europa, alternativas ao uso do animal
em experiências já existem, bastando um pouco de boa-vontade aos pesquisadores
para que essa nova metodologia possa substituir, a contento, os tradicionais e
cruentos métodos de pesquisa. Dentre os mais conhecidos recursos capazes de
livrar os animais dos experimentos, podem ser relacionados:
1) sistemas biológicos in vitro (cultura de células, tecidos e órgãos
passíveis de utilização em genética, micribiologia, bioquímica, imunologia,
farmacologia, radiação, fisiologia, toxicologia, produção de vacinas, pesquisas
sobre vírus e sobre câncer);
2) Cromatografia e espectometria de massa (técnica que permite a
identificação de compostos químicos e sua possível atuação no organismo, de
modo não-invasivo);
3) Farmacologia e mecânica quânticas (avaliam o metabolismo das drogas no
corpo);
4) estudos epidemiológicos (permitem desenvolver a medicina preventiva com
base em dados comparativos e na própria observação do processo de doenças);
5) estudos clínicos (análise estatística da incidência de moléstias em
populações diversas);
6) necrópsias e biópsias (métodos que permitem mostrar a ação das doenças no
organismo humano);
7) simulações computadorizadas (sistemas virtuais que podem ser usados no
ensino das ciências biomédicas, substituindo o animal);
8)modelos matemáticos (traduzem
analiticamente os processos que ocorrem nos organismos vivos);
9) culturas de bactérias e protozoários (alternativas para testes
cancerígenos e preparo de antibióticos;
10) uso da placenta e do cordão umbilical (para treinamento de técnica
cirúrgica e testes toxicológicos);
11) membrana corialantóide (teste CAME, que se utiliza de membrana dos ovos de
galinha para avaliar a toxidade de determinada substância); 12) pesquisas
genéticas (estudos com DNA humano), etc.
Várias nações da Europa, atualmente, já utilizam
técnicas substitutivas ao uso do animal em experiências, de modo a poupar os
bichos de sofrimentos inúteis, mesmo porque os experimentos vivisseccionistas
são, em regra, repetitivos e supérfluos,com resultados já conhecidos do
pesquisador. A Comunidade Comum Européia, através do “Convênio Europeu sobre a
Proteção de Animais Vertebrados Utilizados para fins de Experimentação’
(firmado em Estrasburgo, em 18/3/1986), dita essas normas de maneira conjunta,
sem prejuízo das leis de proteção de cada comunidade e sem perder de vista o
critério da real necessidade da experiência, caso inviabilizada a adoção de
métodos alternativos. Na maioria dos países a experimentação animal é submetida
a uma regulamentação restrita, seja através de pessoas, seja por meio de
protocolos. Daí porque deveria ser obrigatório a toda faculdade de ciências
médicas ou biológicas e a todo estabelecimento de pesquisa que porventura
realizem experiências com animais, a submissão de seus projetos à prévia
análise de comissões de ética, paritárias e imparciais,especialmente formadas
para esse fim. E com a possibilidade de se adotar àqueles que se recusarem a
participar do experimento, a cláusula da escusa de consciência à experimentação
animal, de modo a preservar suas convicções pessoais sem o risco deles sofrerem
reprimendas escolares ou administrativas.
No setor dos espetáculos públicos o sofrimento dos animais acaba sendo também respaldado pela lei, que pune não o uso, mas o abuso. É o que se vê nas práticas relacionadas a rodeios e vaquejadas, em que provas de laço e de montaria submetem bovinos e eqüinos a verdadeiro tormento.Sob o efeito compressivo do sedém – seja ele uma cinta de couro, seja uma corda americana, independentemente do material pelo qual é confeccionado –touros e cavalos alteram seu comportamento normal, pulando na arena para tentar se livrar daquilo que os oprime. A impressionante reação dos animais está associada à inflição de estímulos dolorosos em seus órgãos internos (genitália, sistema digestivo, nervos e glândulas vesiculares). O sedém provoca, portanto, dor e sofrimento, sem necessariamente causar lesões na pele ou esterilidade no animal. Da mesma forma as esporas, utilizadas para estocar os animais durante a montaria, mediante seguidos golpes aplicados pelo peão no baixo-ventre e no pescoço do animal, implica em maus tratos. Quanto às provas de laço, típicas das vaquejadas, não raras vezes ocasionam deslocamento de vértebras, rupturas musculares e fratura de ossos dos animais perseguidos no brutal espetáculo de sadismo humano. Apesar disso tudo o Congresso Nacional aprovou, em favor daqueles que exploram esse tipo de empreendimento, duas leis que afrontam abertamente o dispositivo constitucional que protege os animais : a Lei n. 10.220/01, que equiparou o peão de rodeio a atleta profissional, referindo-se às provas de laço, montarias e vaquejadas como ‘práticas esportivas’ (art. 1o, § único)e, mais recentemente, a lei federal dos rodeios, permissiva do sedém macio e da espora romba, como se a crueldade pudesse ser desfeita por mera disposição de lei.
Em 1997 o Supremo Tribunal Federal havia julgado inconstitucional a farra do boi, não obstante os argumentos sociológicos inovocados para que se reconhecesse a pretensa legitimidade dessa carnificida legada pelos imigrantes açorianos a seus filhos brasileiros. Desrespeitando a decisão Suprema, a Assembléia Legislativa de Santa Catarina, fazendo tabula rasa dos princípios elementares da moral e do direito, promulgou, em 4 de abril de 2000, a Lei 11.365, que ‘dispõe sobre a regulamentação da tradição açoriana conhecida como farra do boi’, desde que se realize em fazendas cercadas denominadas mangueirões e sem ocasionar maus tratos aos animais. Lamentando o fato de a decidão do STF estar sendo abertamente afrontada, a advogada Vânia Rall Daró deixou registrado o seu justo desabafo: “Infelizmente, apesar dessa proibição legal, é bem provável que nunca vejamos o fim da chamada farra do boi, pois aos políticos interessa fazer o jogo da situação; os religiosos acreditam que devemos respeito somente aos semelhantes; os intelectuais aplaudem-na – alguns até delas participam – como uma ´manifestação genuína do povo´; os cidadãos comuns, na sua costumeira indiferença, julgam que o sofrimento dos animais não lhe diz respeito; a imprensa, que poderia esclarecer o que se passa, não se preocupa em denunciar as atrocidades dessa diversão macabra. É uma pena, pois, se nessa farra os animais perdem a vida, nós, seres humanos, perdemos a dignidade” (in ‘Farra com Boi’, Jornal da Cidade, Bauru, 12/4/2001).
E os exemplos de crueldade consentida recaindo
sobre os animais não cessam, pelo contrário, multiplicam-se em proporção
geométrica. Circos que subjugam e subvertem a natureza dos bichos,
transformando-os em mudos escravos. Zoológicos transformados em vitrines vivas,
exibindo aos homens suas coleções de animais aprisionados. Touradas que cruzam
as fronteiras ibéricas para difundir, em outros povos, uma cultura de
violência. Fazendas de caça e competições de pesca que promovem a matança
´esportiva´ com o aval dos próprios órgãos incumbidos de proteger a natureza e
os animais ,aprovadas com chancela do ´desenvolvimento sustentável´. O mesmo
acontece nos criadouros comerciais, em que praticamente qualquer animal – doméstico,
exótico ou silvestre – pode ser criado para atender à demanda do requintado
mercado gastronômico e da lucrativa indústria de produtos manufaturados, que
produz e exporta artigos de couro e casacos de pele. Até a recente lei
municipal paulistana da ‘posse responsável’ de animais domésticos (Lei n.
13.131/01), já aprovada, se de um lado obriga os proprietários de cães a
providenciar RG animal,legitima o poder público – em contrapartida – a capturar
e a exterminar os animais errantes e/ou abandonados, com possibilidade de
destiná-los à experimentação, gerando, assim, uma situação de flagrante
desigualdade. Admitir a matança generalizada dos animais recolhidos aos Centros
de Controle de Zoonoses, sem que eles estejam infectados com moléstia incurável
ou sem a comprovação técnica de sua periculosidade social, é confessar que a
vida deles somente tem importância se, de alguma forma, servir aos interesses
do homem. Decididamente, essa prática não se confunde com a eutanásia. Já nas
hipóteses de maus tratos ou abusos cometidos contra animais destinados à tração
ou ao transporte, o drama é o mesmo, com uma agravante:sua vedação esbarra em
problemas de ordem social relacionados à pobreza. Se porventura o animal se
afastar do modelo conceitual ou estético aceito pelo homem, como certos tipos
de mamíferos, aves, batráquios, peixes e insetos, então o caminho estará aberto
– caso ele seja vítima de uma agressão –para o reconhecimento, pela Justiça, do
malfadado princípio da insignificância.
Conclui-se, nessa linha de raciocínio, que a
Justiça atende – caso acionada – apenas 1% das situações de crueldade, o que
não deixa de representar uma estatística desalentadora. Ignoram-se os maus
tratos suportados pelos animais criados nas fazendas industriais e nas granjas,
como se o mercado da carne justificasse os processos de contenção e de engorda
impingidos a uma criatura viva que, em pouco tempo, se transformará em mero
produto. Desconsidera-se, também, a necessidade da adoção de métodos
alternativos à experimentação animal, muito embora a lei assim o preconize,
tampouco da formação de comissões de ética realmente éticas nas universidades.
Desconhece-se que o fenômeno biológico da dor não se traduz, necessariamente,
em lesões físicas, mas em sofrimentos e fadigas decorrentes da compressão, da
carga excessiva, dos adestramentos cruéis e de toda forma de tormento
psíquico.Esquece-se que o animal de estimação, embora tantas vezes
antropomorfizado, tem o direito de viver dignamente em companhia daquele que o
trouxe para junto de si, na cidade que se tornou o seu habitat. Mas,
lamentavelmente, mesmo nas infrações convencionais de autoria conhecida, a
maioria das pessoas deixa de registrar ocorrência por desconhecimento da lei,
indiferença, medo ou descrédito na Justiça, o que apenas eleva o índice de
impunidade nos casos de violência contra animais.
4.O papel do Ministério Público
A história do direito ambiental brasileiro
revela que, até um passado recente, pouco ou nada se fez para coibir a
devastação da natureza ou proteger os animais de tantas agressões.
Derrubaram-se matas e florestas sob a justificativa da expansão urbana ou em
prol das pastagens, sem que se percebesse a dimensão dos danos causados à fauna
silvestre, quando muitos bichos – perdido seu habitat – acabaram sucumbindo. O
crescimento urbano aumentou, em contrapartida, o descaso e o abandono em
relação aos animais domésticos. No campo, substituído o modelo pastoril
agrícola pelo tecnológico, os animais de criação passaram a ter uma vida
anti-natural e opressiva, aglomerados em recintos insalubres, para gerar
aumento de produção.Era preciso que alguma Instituição, em face de tantas
ignomínias e atrocidades humanas, assumisse a defesa do ambiente e dos animais
maltratados. Coube ao Ministério Público – por força de dispositivos ordinários
e constitucionais – exercer esse relevante papel, hoje consolidado pela Lei n.
9.437/85, que regula a ação civil pública. A legitimação do Parquet para
representar os animais em juízo não é nova.Remonta ao decreto federal n.
24.645/34, da época do Governo Provisório de Getúlio Vargas,estabelecendo
medidas protetivas aos animais na esfera civil e penal. Segundo o douto
magistério do Procurador de Justiça Antonio Herman Vasconcellos e Benjamin, tal
diploma – ainda em vigor -, traz em si “a primeira incursão não-antropocêntrica
do século XX, muito antes da era do ambientalismo”. Oportuno lembrar que esse
texto legal, ao prever a representação dos animais na relação processual (munus
atribuído ao MP ou às sociedades protetoras), não os trata como coisa ou
objeto, mas como legítimos sujeitos jurídicos.
Verifica-se, diante de tantos casos concretos,
que a crueldade deliberada – apesar das leis permissivas de comportamentos
cruéis – pode ser combatida, via oblíquia, pela efetiva atuação da Promotoria
de Justiça, de modo a tentar impedir, interromper ou, ao menos, minimizar a dor
dos animais submetidos ao jugo humano. Deve o Ministério Público agir com
sensibilidade e bom senso diante de cada situação, sem perder de vista que – do
outro lado – está uma criatura que não pode se manifestar. E a luta contra as
tiranias, contra a violência, contra a opressão, não distingue vítimas, caso
contrário estar-se-ia compactuando com a arbitrariedade e a injustiça.O
legislador constitucional, facultando ao MP a instauração de procedimentos para
apurar qualquer ofensa aos direitos que lhe cabem proteger (art.129, III, CF),
na qual se inclui a tutela da fauna, possibilitou ao Parquet o alargamento de
seus horizontes institucionais. Desse modo, a atuação extrajudicial e
preventiva, diante de um fato lesivo ou potencialmente lesivo – com objetivos
transacionais e/ou pedagógicos, inclusive – permite ao promotor alcançar
resultados mais rápidos e eficazes do que poderia obter pela via do processo,
em que a variedade de recursos e o duplo grau de jurisdição acarretam,
inevitavelmente, a morosidade do provimento judicial.
Na comarca de Guarujá, em 26 de abril de 2001, a
Promotoria de Justiça celebrou um primoroso Termo de Ajustamento de Conduta com
a municipalidade, impedindo a indiscriminada matança de animais sadios e dóceis
pelo serviço de Controle de Zoonoses local, porque a maioria dos cães
recolhidos pela carrocinha estava apta a receber tratamento veterinário ou,
então, ser encaminhada à adoção. Esse tipo de ajustamento,que vem impedindo
milhares de mortes desnecessárias, foi firmado também em relação às práticas de
vaquejada,provas de laço e rodeio, proibidas naquela comarca litorânea. Em São
José dos Campos, por sua vez, o Ministério Público instaurou procedimentos
verificatórios de natureza preventiva e pedagógica para apurar, por exemplo,
maus tratos em animais utilizados em serviços de tração (cavalos e jegues que
puxam carroças), crueldade nas fazendas de criação de animais para consumo
(marcação a ferro quente, descorna, derrabagem, castração sem anestesia e
debicagem), abate cruel (matadouro que promove a jugulação cruenta) e
experimentação animal (universidades que não adotam os métodos substitutivos).
Não é preciso muito esforço imaginativo,
portanto, para enumerar hipóteses capazes de inspirar a atuação dos membros do
MP que desempenham a função de curadores do ambiente e dos animais. Dentre
tantas medidas permeadas pelo ideal de justiça e pela ética da vida, algumas
merecem ser lembradas: processar, na esfera penal e cível, aqueles que praticam
crueldade em face de animais; opor-se aos espetáculos que se utilizam de
animais para fins de diversão pública; exigir a utilização de métodos
substitutivos à experimentação animal, evitando que a ciência perfaça, impunemente,
a vivissecção; combater a criação de animais pelo método de produção intensiva,
em que a avidez do lucro humano se sobrepõe ao martírio dos bichos confinados;
lutar contra o abate religioso ou ritual, que submete o animal a atroz
sofrimento; atuar contra a caça, seja ela de qual modalidade for, contra o
contrabando de animais, contra a indústria de peles e a biopirataria;fomentar
um processo de ressocialização dos homens, incutindo-lhes o respeito a vida em
todas as suas formas; resgatar e reconhecer, enfim, a individualidade dos
animais, como seres sensíveis que são, não apenas no contexo ambiental.
Importante ressaltar, ainda, que embora
condenados a trabalhos forçados, às prisões perpétuas, ao matadouro, às arenas
públicas, ao extermínio sistemático, aos arpões da indústria pesqueira, aos
obscuros centros de experimentação, ao desprezo, ao abandono, dentre outras
inomináveis atrocidades, os animais têm a capacidade de sentir e de sofrer. A
ciência sabe que nossa diferença em relação a eles é apenas de grau, não de
essência. Longe de representar apenas um componente essencial da natureza ou do
bem-estar psíquico do homem, a fauna é, acima de tudo, um conjunto de criaturas
sensíveis.
Parece cômodo rotulá-la como sendo mansa ou
nociva, classificá-la em categorias, enquadrá-la em definições zootécnicas e
defini-la em função do interesse humano. A garça-vermelha não é apenas uma ave
brasileira de importância ecológica, mas, antes disso, um ser vivo. Também o
mico-leão-dourado, embora reconhecidamente em extinção, é um primata que merece
ser protegido como outro qualquer, porque dotado de sensibilidade. As capivaras
e os búfalos, ainda que possam estar proliferando em regiões nas quais a
interferência humana provocou desequilibrio ambiental, não merecem a execução
sumária ordenada pela espécie dominante. Esse mesmo argumento se aplica aos
animais domésticos, em que o critério da utilidade e da necessidade acabam se
tornando salvo-conduto para sua incondicionada exploração. Em resumo, a
política de proteção à fauna parece não se importar com as espécies enquanto
tais, mas em face de uma possível utilidade – econômica, estética, alimentar,
cultural, ecológica, etc – que os animais possam vir a ter em relação ao homem.
Esquecida a ética, cabe aos promotores de Justiça lembrar de sua importância.
Hoje o MP reúne plenas condições para assumir a tutela jurídica dos animais, na
tentativa de livrá-los das maldades, das torturas e dos sofrimentos que a
humanidade lhes impõe. Nenhum outro órgão estatal possui à sua disposição
instrumentos preparatórios como o inquérito civil e os PVs, a possibilidade de
requisitar investigações e diligências técnicas para instruir eventual ação
penal ou, mesmo, viabilizar desde logo ação civil pública. As ações cautelares,
com pedidos de liminar, podem ser interpostas para impedir situações de
maus-tratos a animais. Já os TACs, inspirados nos princípios da prevenção, têm
como objetivo resolver problemas ambientais e correlatos sem necessidade de
demanda judicial, com a vantagem de fazê-lo com maior rapidez e eficácia. Se os
promotores de Justiça e os procuradores da República utilizassem todas as armas
que a lei põe a seu alcance, em prol dos verdadeiros ideais de Justiça, talvez
um mundo novo pudesse amanhecer, sem cabrestos, sem correntes, sem chibatas,
sem degolas, sem incisões, sem extermínios, sem jaulas, sem arpões e sem
gaiolas, em que se priorizasse a vida, a integridade física e a liberdade de
todas as criaturas.
A questão,enfim, não é apenas jurídica, mas de
ordem filosófica. Enquanto se continuar ensinando às crianças que os animais
existem para servir ao homem e que, como seres inferiores, merecem ser
utilizados ou escravizados, dificilmente essa triste situação mudará. O
filósofo norte-americano Tom Regan, cuja teoria ética em defesa dos animais
considera-os como legítimos detentores de direito, enxergou – como ninguém
–aquil o que os homens não querem ver: “Os animais não existem em função do
homem… eles possuem uma existência e um valor próprio. Uma moral que não
incorpore esta verdade é vazia. Um sistema jurídico que a exclua é cego”.
* * *
CONCLUSÕES ARTICULADAS:
1. Existe um inegável conteúdo ético no art. 225 § 1o, VII, da CF, que se
direciona não apenas ao equilíbrio das espécies e/ou aos chamados bons costumes
da coletividade, mas aos animais enquanto seres sencientes,capazes de vivenciar
dores e sofrimentos,mesmo porque a Moral deve sempre estar acima do Direito;
2. O modelo econômico capitalista e o ritmo industrial de produção faz com
que 99% das hipóteses de crueldade para com os animais seja deliberada, como se
vê nos matadouros, nos espetáculos públicos de rodeios, circos e vaquejadas,
nos centros de controle de zoonoses, nas competições de caça amadora e,
principalmente, nas atividades relacionadas à experimentação animale ao
agronegócio;
3. A lei estadual paulista n. 10.470/99, permissiva da jugulação cruenta nos
matadouros que servem ao mercado judaico e muçulmano, assim como a lei estadual
catarinense n.11.365/2000, que regulamenta a farra do boi em mangueirões,
carecem de ética e de moralidade, uma vez que nenhum dogma religioso e nenhum
costume ou tradição podem se legitimar com base na tortura e na crueldade;
4. Prática originária de um erro metodológico difundido pela doutrina
mecanicista, a vivissecção submete animais a procedimentos atrozes, devendo ser
devidamente fiscalizada por Comissões de Ética e substituída por métodos
alternativos preconizados pela lei ambiental, caso contrário a experimentação
poderá se traduzir em crime;
5. O Ministério Público é a instituição melhor preparada para exercer a
tutela jurídica dos animais, cabendo-lhe, no exercício desse mister, instaurar
inquéritos civis e procedimentos verificatórios, celebrar termos de ajustamento
de consuta, propor ação civil pública, oferecer denúncias e, se o caso, sugerir
transações penais ou medidas pedagógicas que suscitem, no infrator,o respeito
pela natureza e pela vida.
Laerte Fernando Levai (promotor de justiça em São José dos Campos, Brasil)