Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o
mais infeliz
dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos
veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime
de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário
algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o
mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia
desgraçado.
Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios
fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro
estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje
já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal
suicidado.
Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a
guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.
Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas
mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.
Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe
queria bem
um dia plantou um cravo.
Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma
criança
mas já era a liberdade.
Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da
cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas
também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.
Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem
morre perto
tem de haver distanciação
uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do
mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.
Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo
despojado
lhe punha as armas na mão.
Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.
Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.
Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não
hesite
– pode nascer um país
do ventre duma chaimite.
Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime
nem persegue
– é força revolucionária!
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente
invadiu
a sua própria cidade.
Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.
E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos
veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos
soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E
chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que
despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.
Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as
feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras
na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.
Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te
razão.
Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de
suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a
crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas
disparadas
apenas o fim da guerra.
Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco
de Abril f
ez Portugal renascer.
E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu
o poder a quem quis.
Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali
foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales
socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde
um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o
pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.
Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas
vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias
de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.
Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril
abriu
nunca mais ninguém as cerra.
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu
vermelho
o cravo do mês de Junho.
Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.
Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.
E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu
vermelho
o cravo do mês de Junho.
E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e
carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas
profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.
A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se
desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que
não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.
Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa
mais pura
do que dizer a verdade.
E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores
explorados
ficaram partes iguais.
Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se
espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus
augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados
régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.
Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos
Setembro
a verdade veio acima.
E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da
morte
nos fez voltar ao redil.
Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.
Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a
desgraça
odeia a quem desgraçou.
Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens
sem dono
de que o povo estava à espera.
Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e
carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas
profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.
Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os
bodos
— cumpriu-se a revolução.
Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com
prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem
veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que
tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como
quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios
cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.
Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de
terços
entre ricaços e bufos.
E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não
estar
Portugal suicidado.
Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.
E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.
Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o
firam
consciência nacional.
Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra
entenderam
o que era a libertação.
Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta
gente
que todos ficaram vivos.
Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram
num abraço
toda a história portuguesa.
Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a
desdita
da história colonizada.
Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
– Não havia
estado novo
nos poemas de Camões!
Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à
distância imaginada.
Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na
memória
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que
agora deram
novos países ao mundo.
Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.
E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a
render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes
portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.
Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser
pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de
navegar
de muitíssimas maneiras.
No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da
produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto
Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do
Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra
for do povo
o povo deita-lhe a mão!
É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais
primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa
revolução.
Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se
repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e
entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de
pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o
que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este
Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o
dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.
Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a
voz
e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer
aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse
poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à
barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
José Carlos Ary dos Santos
Lisboa, Julho-Agosto de
1975
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